Carlos Wagner: Caso yanomami carimba Bolsonaro como persona non grata nos EUA?
Era
fato conhecido pelos jornalistas que os bastidores da tumultuada administração
do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) seria contada pelos esqueletos deixados
nos armários, uma gíria usada pelos velhos repórteres para designar segredos.
Só não se imaginava que seriam tantos esqueletos, a ponto de manter o
ex-presidente nas manchetes mesmo um mês e alguns dias depois de ser
substituído no cargo por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Pelo volume de rolos
que estão aparecendo, Bolsonaro continuará nos noticiários ainda por um bom
tempo. O mais recente aconteceu no início do mês, quinta-feira (02/02), quando
um dos seus aliados, o senador Marcos do Val (Podemos-ES), deu uma entrevista
para a revista Veja na qual afirmou que teria sido convidado pelo ex-deputado
federal do Rio de Janeiro Daniel Silveira, na frente de Bolsonaro, para
participar de um esquema de espionagem com o objetivo de constranger o ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) – há muitas matérias
sobre o assunto na internet. Nas 48 horas seguintes à denúncia, o senador mudou
cinco vezes a sua versão do episódio. Ele tem uma página na internet onde
consta o seu currículo. Eu recomendo aos meus colegas que verifiquem a
veracidade das informações.
Essa
história do senador vai ficar pelo menos mais uma ou duas semanas no
noticiário. E seja qual for o final, o certo é que ela ajudou a manter o nome
do ex-presidente nas manchetes. Outra história que vai manter Bolsonaro na capa
dos jornais ao redor do mundo é a crise humanitária provocada pelos garimpeiros
na reserva dos índios yanomami, uma área de 30 mil hectares na fronteira de
Roraima com a Venezuela. Além da fome que reduziu mulheres, homens e crianças a
pele e osso, nos últimos dias foi descoberto que 30 adolescentes indígenas
foram abusadas pelos garimpeiros e estão grávidas. Há uma comissão de
autoridades federais apurando a tragédia na reserva. Todas as semanas surgem
fatos novos nessa história. Uma das novidades que tem forte potencial para
criar corpo nas próximas semanas é a apuração da responsabilidade na crise
humanitária do ex-vice-presidente da República, o general da reserva Hamilton
Mourão. Ele presidiu o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), órgão
responsável pela execução das políticas governamentais na região. Portanto,
sabia o que estava acontecendo na terra yanomami. Mourão se elegeu senador pelo
Rio Grande do Sul e está envolvido em uma disputa política com o ex-presidente
pelo comando do movimento bolsonarista.
Ahistória
dos yanomami pode tornar Bolsonaro uma pessoa não grata em vários lugares do
mundo. Lembro que nós jornalistas aprendemos que durante o seu mandato
Bolsonaro nunca se preocupou, ou pelo menos não demonstrava preocupação, com os
escândalos do seu governo. Sempre atirava a culpa em um adversário político ou
até mesmo nos seus aliados. Ele tem se comportado de forma diferente na questão
da crise humanitária dos yanomami. Tem demonstrado preocupação. Por que a mudança?
Sempre escrevi que o ex-presidente é um cara esperto, que conseguiu sobreviver
durante mais de três décadas como parlamentar. Uma das condições para
sobreviver no jogo político é se antecipar aos problemas. Ele sabe que as
imagens da tragédia yanomami são fortes e têm potencial para torná-lo uma
pessoa não grata ao redor do mundo. Lembro que o ano passado, em 11 de
novembro, escrevi e publiquei o post Esqueletos nos armários vão contra a
história do governo Bolsonaro. Não deu outra. Também lembrei que o
ex-presidente faria de tudo para disputar espaços na imprensa com o atual
presidente para se manter vivo politicamente. Ele é mestre na arte de se tornar
notícia. Consta que, certa vez, quando era deputado federal pelo Rio de
Janeiro, disse um absurdo que acabou virando manchete em importantes jornais ao
redor mundo. Na ocasião, andava pelos gabinetes dos seus colegas na Câmara dos
Deputados vangloriando-se de ser notícia. Ele é defensor da máxima: “Falem bem
ou falem mal. Mas falem de mim”. Lembro que, na época, ele era um deputado do
chamado “baixo clero”, uma expressão cunhada pela imprensa para designar
parlamentares sem importância. O jogo mudou quando se elegeu presidente, em
2018. Até então, ele corria atrás dos jornalistas para contar histórias fantásticas
na esperança que virassem uma reportagem. Depois que se elegeu presidente foram
os jornalistas que passaram a correr atrás dele em busca de notícias. E pelo
cargo que ocupava, tudo que falava, por mais absurdo que fosse, ganhava espaço
nobre nos noticiários.
Nos
dias atuais, os jornalistas continuam correndo atrás do ex-presidente. Não para
saber o que ele pensa sobre política, economia e outro assunto qualquer. O
interesse é saber sobre a tragédia yanomami. E também sobre os atos terroristas
de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que
encontraram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no STF.
Atualmente, o ex-presidente está vivendo em Orlando, Estados Unidos, para onde
foi um dia antes do término do seu mandato com o objetivo de fugir da cerimônia
de passagem da faixa presidencial para o seu substituto, o presidente Lula.
Ninguém sabe qual será o seu destino nos próximos dias. Duvido que ele saiba. O
que se sabe com certeza é que o seu nome se manterá nas manchetes. E isso que
nem metade dos esqueletos deixados nos armários do seu governo foram
descobertos. Sabe-se lá o que vem por aí. Certa vez, escrevi que o governo do
ex-presidente era um caso de polícia. Acrescentaria que é um caso de polícia
bem complicado, que precisa ser meticulosamente examinado para evitar que
absurdos como a história dos yanomami se repitam.
Indígenas yanomami mostram impactos
sociais graves do garimpo ilegal
A
presença do garimpo ilegal no Território Yanomami causa múltiplos impactos na
vida social dos indígenas. A crise humanitária é mais visível no estado de
saúde delicado, especialmente de crianças e idosos, como visto nas últimas
semanas, mas alcança ainda dimensões culturais desse povo. Na última semana, a
reportagem da Agência Brasil visitou algumas vezes a Casa de Saúde Indígena
(Casai), em Boa Vista, e também esteve no próprio Território Yanomami, no Polo
Base de Surucucu, entre quinta (9) e sexta-feira (10). Durante as visitas,
conversou com os indígenas e especialistas para entender melhor como eles
percebem esses impactos.
“Água
suja para comer, estraga o peixe. Crianças muito fracas. Água bebe-se suja e
barriga dói muito”, diz Enenexi Yanomami, que tenta descrever a situação vivida
por seus parentes na terra indígena. A Agência Brasil encontrou o jovem
indígena, de 21 anos, na entrada da Casai. Segundo ele, já passavam de 60 dias
sua estadia na capital para acompanhar familiares doentes. O retorno ao
território, que depende de transporte aéreo, não tinha previsão. “Faltam mais
horas de voo para Surucucu”.
Para
ele, a presença do garimpo é o que tem causado os danos que afetam seu povo.
“Agora, tem que tirar garimpo. Quando tirar, tranquilo. Tem muito garimpo lá,
[tem que ser] proibido”.
Mãe
de duas crianças internadas na Casai, Louvânia Yanomami já perdeu a conta de
quanto tempo está longe de sua terra. Sem previsão de alta, ela recebeu alerta
dos médicos de que, se voltar, pode colocar a vida do filho menor em risco. A
criança, que tem entre 1 e 2 anos, apresenta quadro de desnutrição severa e
inchaço do abdômen.
“Eu
estou muito cansada, tem muita gente aqui [Casai], dá pra perceber. É uma
situação difícil. Não vou deixar porque é meu [filho] e não posso levar porque
ele vai morrer”, relata, angustiada, com ajuda de um intérprete. Em janeiro, a
Casai chegou a abrigar mais de 700 pessoas, mas o local tem capacidade para
pouco mais de 200. Houve uma redução dessa superlotação, mas o espaço ainda
registra a presença de mais de 500 pessoas, segundo balanço da semana passada
do Centro de Operações de Emergências (COE) do governo federal.
Quem
também reclama dos danos ambientais trazido pela exploração ilegal de minérios
é Arokona Yanomama, com quem a reportagem conversou na Casai. Ele cita como o
maquinário pesado de dragas e tratores afugenta animais de caça e polui a
terra. “Cheiro ruim. Morre caça, morre tudo. A terra não é boa, é muito feio.
Máquina de fumaça entrou, por isso cheiro muito ruim. Contaminaram terra,
contaminaram água, poluíram peixe”, relata. Agora, para caçar um porco do mato,
ele tem que andar por pelo menos 50 quilômetros para se afastar da área mais
deteriorada.
• Referência perdida
“O
garimpo vai justamente atacar a cadeia alimentar básica dos yanomami. Eles são
um povo de mobilidade territorial, vivem da caça, da pesca, da coleta e da
agricultura. Nada mais triste, então, do que um caçador yanomami não ter caça
para suprir a família”, explica a antropóloga Maria Auxiliadora Lima de
Carvalho. Ela trabalha há mais de 20 anos com o povo yanomami, em Roraima.
“O
povo yanomami nunca precisou de doação de alimentos para sobreviver. Todo esse
cenário de vulnerabilidade foi provocado. O maior mal ainda é a presença do
garimpeiro, do garimpo”, afirma o secretário especial de Saúde Indígena do
Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, que visitou o território na última
quinta-feira (9).
Até
mesmo alguns dos rituais mais sagrados dos yanomami estão sendo drasticamente
abalados pela atividade garimpeira e a desassistência generalizada em saúde
dentro do território. É o caso das cerimônias fúnebres. Os yanomami não
enterram seus mortos. Eles cremam os corpos de seus familiares falecidos e,
depois, trituram os ossos até virar pó. O processo pode levar semanas e, muitas
vezes, inclui uma fase final em que a comunidade realiza um ato de tomar mingau
de banana com as cinzar do ente falecido.
“Os
yanomami fazem questão dos rituais fúnebres, mas os mortos são tantos que não
está havendo nem tempo para chorá-los”, afirma a antropóloga. Essas cerimônias
podem incluir também a presença de visitantes de aldeias diferentes e, nesses
casos, os anfitriões costumam oferecer um animal de caça, o que tem ficado
escasso nas regiões afetada pelo garimpo.
A
entrada do álcool na cultura yanomami, que não é recente, mas tem se agravado,
é outro fator desestabilizador. O kaxiri, bebida feita de macaxeira cozida, não alcoólica, e
muito tradicional, passou a ser fermentada pelos indígenas para ficar com alto
teor de álcool, por influência dos garimpeiros, ainda durante a primeira
invasão ao território, no fim da década de 80. “Isso fez aumentar casos de
violência contra as mulheres e de violência de uma forma geral”, explica Maria
Auxiliadora. Também interferiu na produção agrícola, fazendo com que indígenas
aumentassem a plantação de macaxeira para produzir a bebida, ampliando o ciclo
do consumo de álcool nas aldeias.
• Juventude assediada
A
antropóloga também observa outro tipo de desestruturação comunitária causada
pelo garimpo. No primeiro grande surto de garimpagem ilegal na Terra Indígena
Yanomami, a partir da segunda metade da década de 80, a maior parte da
população de indígenas era formada por adultos. Atualmente, no entanto, a base
da pirâmide etária ficou bem mais numerosa, com forte presença de adolescentes
e jovens. No entanto, a grande maioria das escolas dentro do território foi
desativadas pelo governo do estado.
“As
políticas públicas não chegam para esses jovens. E eles são jovens, querem
aventuras. Com isso, o garimpo assediou enormemente essa juventude, com acesso
a armas, que eles apreciam muito, e outros objetos”, acrescenta a especialista.
Ela
cita o caso de assédio sexual de garimpeiros contra as mulheres indígenas, que
observou durante trabalho de campo na comunidade, onde permaneceu por vários
anos, entre 2002 e 2009. Segundo a antropóloga, as denúncias que vêm sendo
reveladas agora, com a explosão de garimpo no território, são bem prováveis.
“Com
o garimpo o tempo todo e cada vez mais, é bem possível que eles tenham feito
sedução. Elas gostam muito de sabonetes, óleo para cabelo, comida. Então, essa
troca por relação sexual, seja consentida ou não, é desigual, porque há
posições de poder bem claras”, argumenta.
O
governo federal investiga o caso de 30 meninas yanomami que estariam grávidas
de garimpeiros que atuam ilegalmente no território.
• Esperança
Em
meio ao caos vivido pelos yanomami, a esperança no futuro passa pela reativação
das escolas na região, fechadas há mais de uma década.
“Aqui
tinha escola, eu ainda lembro”, afirma Ivo Yanomami, tuxaua (cacique) na
comunidade de Xirimifik, com mais de 200 pessoas, grande parte crianças e
adolescentes. A aldeia fica a cerca de 15 minutos de caminhada da pista de
Surucucu.
A
demanda pela retomada das escolas indígenas dentro do território será levada ao
governo federal, assegurou o secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba,
durante visita que fez à região.
Fonte:
Observatório da Imprensa/Agencia Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário