Vigília armada e pagamento em cesta básica:
como atuam os guarda-costas de tartarugas na Amazônia
De agosto a novembro,
a região do médio Juruá, na Amazônia, vive um espetáculo à parte. É nessa época
que as tartarugas que moram no rio se aproximam da praia para a desova.
Elas enterram os ovos
na areia, nos chamados tabuleiros, onde eles permanecem por cerca de 60 dias
até serem rompidos pelas tartaruguinhas formadas.
Até a década de 1990,
esse evento corria o risco de deixar de acontecer. A captura predatória das
tartarugas adultas para venda estava fazendo com que muitas deixassem de se
reproduzir, colocando-as à beira da extinção.
O desaparecimento só
não aconteceu porque as comunidades locais se organizaram para mudar a
situação. Hoje, habitantes de áreas protegidas devolvem às águas do Juruá
centenas de milhares de filhotes todos os anos, e o número vem aumentando a
cada temporada.
Francisco Mendes, 68
anos, conhecido como Bomba, protege as tartarugas há 31. No período em que elas
se reproduzem, ele vigia a praia durante toda a madrugada para evitar que algum
infrator se aproxime. Bomba alterna com a esposa e os filhos o monitoramento.
"Eles representam
milhares de famílias. A história do Bomba se repete em cada curva do rio",
diz o pesquisador João Campos-Silva ao Estadão.
O ecólogo tem
desenvolvido pesquisas para avaliar o impacto da conservação de base
comunitária na megafauna, os animais de grande porte da Amazônia, como parte da
expedição da Iniciativa Perpetual Planet da Rolex, que apoia instituições,
organizações e indivíduos em ações de preservação ambiental.
Segundo ele, que é
presidente do Instituto Juruá, a predação dos ninhos por humanos é de 99% nas
praias sem proteção, e cai para 2% nas áreas protegidas. O preço de uma única
tartaruga grande chega a R$ 1.000 no mercado ilegal.
A remuneração que as
famílias recebem por esse trabalho intensivo e arriscado é de R$ 1.200 mensais
em cesta básica, atualmente fornecida com o apoio do Ministério do Meio
Ambiente.
"Nossos
resultados indicam que a proteção comunitária é a estratégia mais eficiente
para proteger a biodiversidade aquática. Atividades como a dos monitores de
tabuleiros devem ser reconhecidas e valorizadas, porque sem eles muitas
espécies teriam sumido", diz Campos-Silva.
A retirada de
quelônios - nome que engloba tartarugas, cágados e jabutis - da natureza sem a
autorização dos órgãos governamentais é considerada crime ambiental, assim como
o comércio desses animais, conforme a Lei de Crimes Ambientais n.º 9.605, de
1998.
Além de multa, pode
caber pena de seis meses a um ano de detenção, exceto quando a caça é realizada
por necessidade alimentar. A carne desses animais é considerada uma iguaria e
tem um longo histórico de consumo na região.
"Para fazer esse
tipo de trabalho, tem de ter um pouco de coragem. Se o cabra tiver medo, ele
não faz. A gente anda em duas pessoas, no máximo. Trabalha só com fé em Deus e
mais nada", diz Bomba.
Durante décadas, as
comunidades fizeram o monitoramento dos quelônios no Juruá de forma voluntária,
quase sem nenhum apoio institucional. Isso começou a mudar no final da década
de 1990, com a articulação das associações de moradores e a criação das unidades
de conservação.
O tabuleiro que Bomba
monitora fica na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari, gerida pelo
governo estadual com o apoio do ICMBio e situada no município de Carauari (AM).
Existem atualmente 25 tabuleiros na região que, juntos, têm gerado entre 750 e
900 mil filhotes em um ano. A soltura deles na natureza, depois de passarem um
período em berçários, é um dia de festa nas comunidades.
A Associação dos
Moradores Extrativistas da Comunidade São Raimundo (Amecsara) atua em toda a
região do médio Juruá há quase 20 anos e é uma das responsáveis por esse
resultado.
Com o apoio técnico do
projeto Pé de Pincha, ligado à Universidade Federal do Amazonas, a Amecsara
apoia a atividade de monitoramento em várias frentes, desde o fornecimento de
EPIs e combustível, a formação de monitores e agentes ambientais voluntários,
até o diálogo com governos para a captação de recursos.
"A gente usa uma
lanterna boa, porque é muito escuro, e também um binóculo noturno. E anda
armado, com espingarda. Aí fica olhando lá do outro lado do rio. Quando passa
uma canoa e vê que o cabra é desconhecido, tem que ir atrás", conta Bomba.
Há cerca de 70
guarda-praias em atividade na região, distribuídos ao longo de algo em torno de
25 comunidades e mais de 1.500 quilômetros do Rio Juruá. Segundo Cunha, a
associação tem atuado para incluir mais jovens e mulheres na atividade.
Bomba é um dos
monitores mais antigos da região. Quando começou esse trabalho, ainda era a
"época dos patrões", em que o território onde ficam os tabuleiros
pertencia a entes privados.
Hoje, a maior parte
está dentro das unidades de conservação, mas também há tabuleiros fora de áreas
protegidas, onde a predação humana é mais intensa.
Mas Bomba conta que
virava duas ou três e deixava as outras escaparem por pena. "Eu sabia que
se fizesse o que eles queriam, meus filhos, meus netos não iam nem ver
tartaruga desovando. Esse foi o maior sentimento que me fez trabalhar
procurando defender elas", lembra.
Segundo Raimundo
Cunha, a luta por recursos para dar continuidade ao monitoramento acontece ano
a ano. "A gente tem que se adaptar ao recurso que tem, é uma atividade
incerta. Hoje a gente tem apoio, amanhã pode diminuir, aumentar ou nem ter
monitoramento de quelônio", afirma.
<><> Os
entraves na cadeia
O Instituto Juruá atua
na região apoiando a governança territorial e estimulando as cadeias produtivas
sustentáveis, como a do pirarucu, que já se consolidou como um dos pilares da
bioeconomia na Amazônia.
Segundo Campos-Silva,
o trabalho de monitoramento das tartarugas é um dos que menos tem retorno
financeiro e social para as comunidades locais.
Como a venda é
totalmente proibida, as famílias que realizam o monitoramento não podem ganhar
com o manejo sustentável das tartarugas e a venda de uma parte delas. Com isso,
captar recursos é sempre um desafio.
"É um exemplo
claro dos gargalos que a gente tem na Amazônia, da dificuldade de estabelecer
uma cadeia produtiva e da falta de regulamentação por parte do governo",
diz o presidente do Instituto Juruá.
O instituto defende a
criação de um fundo patrimonial para oferecer uma remuneração justa às famílias
envolvidas no monitoramento e garantir a conservação dos tabuleiros.
A estruturação desse
fundo está sendo feita em parceria com a Amecsara, a Associação dos Produtores
Rurais de Carauari (Asproc), a Associação dos Moradores Agroextrativista da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (Amaru), o ICMBio, a Secretaria
Estadual do Amazonas, o projeto Pé de Pincha e outras organizações de base que
atuam no território.
Além disso, as
organizações trabalham na execução de uma experiência piloto da criação
sustentável de quelônios pelas comunidades, com uma primeira venda legalizada
programada para dezembro. A ideia é que o comércio controlado possa gerar
recursos para os habitantes do médio Juruá a partir da regulamentação.
"Como no caso do
pirarucu, a gente acredita que se protege muito mais o que se usa. Não adianta
proibir e fingir que (o comércio) não existe, sendo que os ilegais estão
vendendo diariamente. O que acontece hoje é que os comunitários estão
protegendo, gerando um monte de filhote, e quem está se beneficiando são os
ilegais", diz Campos-Silva.
Fonte: Agencia Estado
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