Verticalização no Brasil: há um limite na
corrida ao céu?
Nos últimos anos, o
cenário urbano brasileiro assistiu a uma reconfiguração acelerada. Em diversas
cidades, surgiram empreendimentos que não apenas ocupam o solo, mas desafiam os
limites do céu. A corrida para construir torres altíssimas, como o One Tower em
Balneário Camboriú, o Kingdom Park Residence em Goiânia e o Platina 220 em São
Paulo, tornou-se uma constante. Inspirada por esse crescimento vertical, o
Balneário Camboriú planeja inaugurar o Senna Tower, que se destaca não só pela
altura, mas também pela ambição de ser o edifício residencial mais alto do
mundo. Mas até onde vão os limites dessa escalada de altura, e qual é o impacto
sobre o espaço que pertence a todos?
A arquitetura sempre
refletiu a identidade, os valores e os desejos de cada era. Desde os templos
antigos até os arranha-céus contemporâneos, cada construção fala sobre quem
somos como sociedade, sobre o que valorizamos e sobre a forma como queremos ser
vistos. A urbanização no Brasil segue essa lógica e, assim como a corrida
espacial simbolizou conquista e expansão, essa nova corrida vertical reflete
uma projeção de poder, status e inovação. No entanto, diferentemente do espaço
sideral, o céu das nossas cidades possui limites que, embora invisíveis, afetam
diretamente quem vive ao redor.
A ampliação das
construções verticais traz reflexões sobre o impacto na qualidade de vida. À
medida que essas estruturas sobem, elas impõem novas sombras nas ruas, alteram
a circulação do ar e influenciam a distribuição da luz solar. Em um país de
clima majoritariamente quente como o Brasil, a alteração desses elementos pode
transformar bairros inteiros, criando microclimas que afetam diretamente quem
transita e reside nas proximidades. O Balneário Camboriú, com seus edifícios
imponentes na orla, viu suas praias ficarem na sombra durante partes do dia, um
fenômeno que simboliza essa ocupação do céu e seus impactos na vida urbana.
Além do aspecto
físico, essa escalada vertical afeta também o espaço simbólico das cidades. Uma
torre não é apenas um prédio, mas um marco visível e duradouro que muda a
paisagem, interfere na linha do horizonte e redefine o visual da cidade. Em um
ambiente onde o espaço já é escasso, os “gigantes de concreto” se apropriam de
uma vista que, teoricamente, pertence a todos. Há uma certa ironia nesse
movimento: enquanto a construção desses edifícios sugere progresso e
desenvolvimento, ela também evidencia uma forma de segregação. Afinal, quem
realmente pode usufruir dessas vistas deslumbrantes e exclusivas?
Do ponto de vista do
mercado imobiliário, a verticalização traz benefícios claros. A demanda por
imóveis em localizações privilegiadas cresce, investidores se interessam, e o
ciclo de valorização do solo se retroalimenta. O valor simbólico de residir em uma
torre que domina o skyline de cidades como São Paulo ou Balneário Camboriú é
poderoso. Porém, o preço dessa exclusividade é, muitas vezes, uma contrapartida
silenciosa para aqueles que vivem ao redor e, em alguns casos, para toda a
comunidade. Questões como mobilidade urbana e infraestrutura pública desafiam o
crescimento desmedido. Sem uma reflexão cuidadosa, os espigões podem se
transformar em “ilhas” que reforçam desigualdades e limitam o acesso aos
benefícios que esses empreendimentos prometem.
Outro aspecto que
merece atenção é a memória urbana e a preservação do patrimônio cultural e
natural das cidades. Quando uma torre ocupa um espaço, ela transforma não
apenas o presente, mas também o legado do lugar. A cidade perde, nesse
processo, parte de sua história, que poderia ser preservada ou adaptada de
formas mais harmoniosas com a modernidade. Em um ritmo acelerado de
construções, muitos dos marcos históricos e espaços da memória coletiva acabam
soterrados por estruturas que, embora imponentes, são efêmeras em essência.
Esse conflito entre passado e futuro é um ponto importante para quem se
preocupa com a identidade urbana.
As transformações
legislativas nas cidades brasileiras acompanham o ritmo acelerado da
verticalização urbana. Nos últimos anos, diversas prefeituras têm revisado
normas de uso e ocupação do solo, autorizando construções cada vez mais altas e
liberando áreas antes preservadas ou restritas para novos empreendimentos. Essa
flexibilização das legislações municipais é, em parte, uma resposta à demanda
do mercado imobiliário e à crescente valorização de áreas urbanas centrais. No
entanto, as implicações futuras dessas permissões vão além do crescimento
econômico. Ao modificar a paisagem urbana, esses arranha-céus alteram a leitura
do espaço público e a relação das comunidades com o entorno, impactando a
identidade visual e dificultando a preservação de marcos culturais e
históricos. A flexibilização contínua dessas leis pode criar um ambiente de
rápida obsolescência dos patrimônios, comprometendo o entendimento e a
convivência das futuras gerações com o passado urbano que constrói a essência
das cidades.
Além disso, surge a
questão sobre o propósito da arquitetura e da construção civil hoje. Qual é o
objetivo de erguer estruturas tão altas? Em muitas ocasiões, essas construções
são símbolos de poder, sem necessariamente atender às reais necessidades de uma
cidade. Em vez de priorizar soluções para habitação e ocupação urbana, cria-se
um mercado de luxo que serve a uma pequena parcela da população, da qual muitos
sonham em se aproximar um dia. E, ao fazer isso, há o risco de que a cidade
perca sua conexão com as pessoas que, de fato, a habitam. A arquitetura deveria
ser uma expressão coletiva, mas quando a construção se torna uma disputa por
altura, ela se desconecta de sua função social.
Conhecida por suas
praias e torres que recortam o horizonte, Balneário Camboriú será palco para um
novo empreendimento que promete impactar o mercado imobiliário e o imaginário
coletivo: o Senna Tower. Com previsão de mais de 500 metros de altura, esta construção
da FG Empreendimentos em parceria com a marca Ayrton Senna posicionará o Brasil
sob os holofotes mundiais, apresentando uma estrutura que combina inovação,
luxo e exclusividade, projetada para estar entre os edifícios mais altos do
país e do mundo.
O Senna Tower
demandará um investimento em torno de R$ 3 bilhões e integrará espaços de lazer
e gastronomia abertos ao público, distribuídos em uma área de mais de 6 mil m².
Além disso, a estrutura buscará a certificação LEED Platinum, um dos mais altos
padrões de sustentabilidade do mercado, garantindo uma construção alinhada às
práticas de eficiência energética e impacto ambiental mínimo. Serão 228
unidades de alto padrão: 18 mansões suspensas que variam entre 420 e 563 m²,
204 apartamentos de até 400 m², quatro coberturas duplex de 600 m² e duas mega
coberturas triplex de 903 m².
Apesar de seu
esplendor arquitetônico e da promessa de tecnologia de ponta, o lançamento do
Senna Tower levanta reflexões sobre o papel do mercado imobiliário e suas
contribuições para a vida urbana. Em uma cidade onde o metro quadrado da orla
pode ultrapassar R$ 75 mil, segundo o índice Fipe/Zap, a comercialização de
imóveis a preços comparáveis a cidades como Nova York, Barcelona e Milão marca
um abismo financeiro que beneficia uma pequena elite, ao passo que exclui a
maioria da população do acesso a espaços centrais e de infraestrutura completa.
Essa busca incessante
pela altura recorde pode ser interpretada de duas formas: como uma façanha que
engrandece a capacidade técnica e arquitetônica do país ou como um sinal de que
as cidades podem estar se distanciando cada vez mais da inclusão e da diversidade.
Afinal, quem realmente se beneficia da verticalização extrema? Para além das
vistas impressionantes e do impacto visual, resta a reflexão sobre o tipo de
legado urbano que esses empreendimentos deixam para as futuras gerações.
Em última análise, o
crescimento vertical das cidades brasileiras representa um reflexo de nossa
época. É um símbolo do desejo de ascensão e conquista, mas também das tensões
da sociedade contemporânea. É necessário refletir sobre o papel das construções
verticais na promoção de uma cidade mais inclusiva e acessível. Se o espaço
urbano é limitado e precioso, não seria mais adequado direcionar os recursos e
a criatividade para desenvolver projetos que beneficiem a todos?
Fonte: Por Lucas Silva
Pamio, no Le Monde
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