Polícia brasileira matou 243 crianças e
adolescentes em 9 Estados em 2023, aponta relatório
O menino Ryan da Silva
Andrade Santos, de 4 anos, brincava em frente à casa de uma prima no Morro do
São Bento, em Santos (litoral de SP) na noite de terça (5/11), quando foi
atingido por um tiro. Ele foi levado ao hospital, mas não resistiu e morreu.
O disparo
“provavelmente” saiu de uma arma da Polícia Militar, segundo a própria PM de
São Paulo.
“Nós entendemos que
provavelmente esse disparo partiu de um policial militar”, afirmou o coronel
Emerson Massera, porta-voz da Polícia Militar, em uma entrevista coletiva na
quarta (6/11).
“O projétil ficou
alojado no abdômen do menino que infelizmente faleceu. Será feito o confronto
balístico para verificar a origem desse disparo”, afirmou o coronel. “Teremos
essa certeza depois do laudo da perícia."
Não é um caso isolado.
Em 2023, Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, foi morto por policiais do RJ na
Cidade de Deus, segundo inquérito sobre o caso feito pela própria polícia. No
mesmo ano, Eloáh da Silva dos Santos, de 5 anos, foi morta pela polícia no
Morro do Dendê, segundo investigação do Ministério Público.
Inquéritos das
próprias polícias ou do Ministério Público apontaram que policiais foram os
autores em outros crimes como esses.
Em 2020, as vítimas
foram João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos; Alice da Silva Almeida, de 3 anos;
Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7
anos.
Em 2019, foi Ágatha
Félix, de 8 anos. Em 2017, foi Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos,
baleada dentro da escola.
Nenhuma dessas mortes
foi computada como resultante de ação policial, mas como homicídio.
Ou seja, as mortes de
Thiago e Eloah em 2023 não estão entre as 243 mortes de crianças e adolescentes
registradas em nove estados brasileiros naquele ano como resultado de
intervenção do Estado.
O número é apontado no
relatório Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão, divulgado nesta quinta
(7/11) pela Rede de Observatórios da Segurança, que reúne institutos de
pesquisa do Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de
Janeiro e São Paulo. O estudo é elaborado com dados das Secretarias de
Segurança Públicas estaduais de cada Estado pedidos via Lei de Acesso à
Informação.
O relatório aponta
também que das 4.025 pessoas mortas pela polícia nesses Estados em 2023, 87,8%
(2782) eram negras, uma proporção bem maior do que a proporção de negros na
população brasileira. Isso equivale a uma pessoa negra morta pela polícia a
cada quatro horas em 2023 somente nesses nove estados.
A BBC News Brasil
procurou as secretarias de segurança dos nove Estados, mas não teve resposta
até a publicação desta reportagem. Sobre o caso de Ryan, a PM de São Paulo
disse que está investigando e providências serão tomadas.
As secretarias só
incluem como mortes causadas em decorrência de ação policial os casos em que a
Polícia alegou ter agido em legítima defesa — os outros casos são registrados
como homicídios, sem uma separação estatística que permita saber quantos deles foram
cometidos por policiais.
Esse tipo de registro
é problemático, afirma Silvia Ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, pois induz a pensar que
em todos os casos de homicídio pela polícia, a responsabilidade é apenas do
policial que atirou individualmente, e não da corporação.
“E essas mortes nem
sequer são contabilizadas como mortes decorrentes de ação policial. Entram para
as estatísticas de homicídios como se fossem efeitos colaterais aceitáveis, ou
balas perdidas, ou azares, ou acidentes pontuais”, afirma Ramos, que é porta-voz
da Rede de Observatórios.
“Não dá para pensarmos
nessas tragédias como casos isolados em que um policial específico abusou da
força ou errou, ou foi indiferente a quem estava no entorno de sua ação”,
continua Ramos. “Os responsáveis pelas políticas de segurança autorizam um tipo
de polícia violenta que causa insegurança e mortes dependendo da área em que
atuam.”
• ‘Faltam investigações’
Segundo as entidades
que fazem parte da Rede de Observatórios, não há, nos Estados, investigações
individuais e transparentes sobre cada um dos casos registrados como legítima
defesa para garantir que de fato foram legítima defesa.
“Foi legítima defesa?
Sem problemas. Mas é preciso haver uma investigação, uma descrição detalhada
das circunstâncias, transparência”, diz Ramos. “Da forma como as coisas
acontecem hoje, no atacado, isso simplesmente não acontece. A polícia mata
tanto que não há investigação.”
Ramos afirma que o
Brasil, na prática, está consolidando a existência de “duas polícias”.
“Uma delas que vê um
menino negro, na periferia, de bermuda e chinelo como elemento suspeito, como
perigoso, e cuja morte pode ser registrada como legítima defesa e fica por isso
mesmo. E outra que vê um menino branco, em um bairro nobre, e entende que está
ali para proteger. A própria atitude inicial é diferente, a polícia não atira”,
diz ela.
Os dados das
secretarias estaduais compilados no relatório mostram que em oito dos nove
estados analisados a proporção de negros mortos em decorrência da ação de
agentes de segurança é muito maior do que a proporção de negros na população.
A análise dos dados
também mostra que cada Estado tem particularidades quanto à letalidade policial
- e que os números são muito sensíveis a políticas públicas e à postura do
governo no poder, afirma Ramos.
“Esse indicador
específico, de mortes decorrentes de ação policial, é diferente de outros como
homicídio ou crimes contra o patrimônio, que são resultantes de muitas
variáveis bem complexas”, diz a pesquisadora.
“As mortes decorrentes
de intervenção policial são claramente resultados da postura da cadeia de
comando. Se chega um governador novo, troca os comandantes, o secretário, dá
uma ordem para haver mais controle, mais responsabilização, já naquele ano a
gente sente a diferença.”
Nos cenários
estaduais, chama a atenção o Estado da Bahia, que tinha uma tendência de
aumento da letalidade policial que explodiu em 2023, quando o Estado superou o
Rio de Janeiro nesse quesito pelo segundo ano consecutivo.
Foram 1.702 mortes
causadas por agentes do Estado na Bahia em 2023 — o segundo maior número já
registrado desde 2019 dentre os estados monitorados.
O ano foi o primeiro
da administração de Jerônimo Rodrigues (PT), depois de dois governos
consecutivos de Rui Costa (PT).
“Chama a atenção que
um governo que se diz progressista tenha um índice tão alto de letalidade
policial”, diz Ramos.
O relatório também
destaca como exemplo dessa relação direta do índice com a política do governo o
aumento de 21% na letalidade policial em São Paulo sob a administração de
Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a diminuição da letalidade após a
intervenção federal no Rio de Janeiro — o Estado apresentou menos de 1 mil
mortes pela primeira vez desde o início do monitoramento.
• A cada 24 horas, 7 pessoas negras são
mortas pela polícia do Brasil
Aproximadamente 90%
dos mortos por policiais no Brasil no ano passado eram pessoas negras. Por dia,
foram 7 pessoas negras assassinadas. Relatório da Rede de Observatórios da
Segurança mostrou que 4.025 pessoas foram mortas por agentes de segurança estaduais,
o que inclui a Polícia Militar.
E das 3.169 vítimas
que há registros de raça e cor, 2.782 eram pessoas negras. Ou seja, ao menos
70% do total de mortos, podendo chegar a 90%, eram negros.
“Ao todo, são 856
vítimas sem registro de dados de raça e cor nos nove estados que fazem parte do
boletim. A transparência é fundamental para uma análise qualificada da
realidade a fim de que o poder público possa direcionar seus esforços para uma
sociedade verdadeiramente segura para todos”, apontou a Rede.
O documento divulgado
nesta quinta-feira (07) já tem no nome o cenário das mortes no Brasil: “Pele
Alvo: a cada 24 horas, sete pessoas foram mortas”. São sete pessoas negras
mortas por dia no país.
“Em sua quinta edição,
o boletim Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão evidencia a norma da
letalidade da ação policial”, apresenta o documento.
Desde a primeira
edição do documento, que buscava somente monitorar a quantidade de pessoas
mortas pela polícia militar e sistemas de segurança estaduais do país, feita em
2020, já indicava um “padrão”: jovens negros.
“Ano após ano, vemos a
reafirmação de que a violência da polícia tem cor, idade e endereço. São
milhares de jovens negros, muitos que nem chegaram a atingir a maioridade, com
suas vidas ceifadas sob a justificativa de repressão ao tráfico de drogas”, afirmou
a cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios.
“Não é aceitável nem
justificável a morte de uma pessoa negra a cada quatro horas pelas mãos de
agentes de uma instituição que deveria zelar pela vida. Nosso objetivo ao
ressaltar esses dados é denunciar a urgência de um debate público acerca do
racismo na segurança e incentivar o desenvolvimento de políticas públicas que
mudem o rumo desta realidade”, completou.
Pela primeira vez, os
9 estados monitorados divulgaram os dados das Secretarias de Segurança Pública
Lei de Acesso à Informação (LAI).
O estado do Amazonas é
o que lidera no ranking desse racismo da segurança pública: 92,6% da letalidade
era de negros. O estado do Ceará também chamou a atenção nos dados de 2023: o
número de negros vitimados foi 8 vezes maior do que de brancos.
Bahia é o estado com a
maior letalidade policial, com 1.702 vítimas e Pernambuco foi o que apresentou
o maior aumento dos óbitos, 117, um aumento de 28,6% desde 2019.
No Rio de Janeiro teve
uma queda nos índices, mas ainda uma pessoa negra é morta a cada 13 horas, e em
São Paulo, houve um aumento de 21,7% no número de mortes causadas pela polícia.
“Com tiroteios e ações policiais violentas noticiadas constantemente, o estado
se destaca por uma política de segurança ineficaz, resultando em 403 jovens de
12 a 29 anos mortos em ações policiais”, apontou o documento.
No caso de São Paulo,
o relatório expõe as falhas do governo de Tarcísio de Freitas na segurança
pública:
“As ações do atual
governo, que iniciou o mandato em 2023, provocaram instabilidade no cenário
policial de São Paulo com a militarização da Secretaria de Segurança Pública,
resultando em aumento de 21,7% no número de mortes causadas pela polícia. Entre
as novas condutas, está a redução de investimento em programas de prevenção,
incluindo as câmeras corporais. O estado interrompeu seu histórico de redução
no número de óbitos e registrou no ano passado 510 casos, sendo negras 66,3%
das vítimas e 52,3% com faixa etária entre 12 e 29 anos.”
Fonte: BBC News
Brasil/Jornal GGN
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