Angela Davis deu sua vida para expor a
repressão do Estado
Aos vinte e seis anos,
Angela Davis se tornou uma das prisioneiras políticas mais famosas do mundo e
um ícone revolucionário, sendo a sua imagem tão reconhecível quanto a de Mao
Zedong ou Che Guevara. As circunstâncias que levaram à sua prisão foram
complexas e parcialmente forjadas.
Em agosto de 1970,
várias armas registradas em nome de Davis foram utilizadas em uma tentativa de
libertar três homens negros encarcerados em um tribunal no Condado de Marin,
Califórnia. Depois que os guardas da prisão de San Quentin abriram fogo, quatro
pessoas foram mortas, incluindo um juiz distrital. Davis não tinha conhecimento
prévio dos eventos, mas ela foi implicada por conta das armas.
Mais
significativamente, ela era um membro conhecido do Partido Comunista dos EUA
(CPUSA) e uma ativista negra em ascensão: o Estado a queria morta ou presa. Foi
emitido um mandado de prisão sob acusações de conspiração, sequestro e
assassinato, que acarretavam pena de morte, e Davis foi colocada na lista dos
mais procurados do FBI.
Davis afirma que a
campanha de pressão internacional travada pelo CPUSA e pelo National
United Committee to Free Angela Davis (NUCFAD) salvou sua vida. Entre
1970 e 1972, ela passou dezessete meses na prisão antes de ser libertada sob
fiança e finalmente absolvida de todas as acusações. Durante esse período,
cartas de solidariedade de lugares como Cuba, França, Alemanha Oriental e União
Soviética inundaram a prisão e o tribunal de San Jose, onde ela seria julgada.
Para seu público global, não era Davis julgada ali, mas o próprio sistema de
justiça criminal dos Estados Unidos: uma mulher negra comunista que era tão
obviamente inocente poderia ser absolvida?
O que torna o exemplo
de Davis notável é que ela nunca parou de pagar a dívida que sente que tem com
a esquerda internacional para garantir sua liberdade — e sua vida. Do movimento
de boicote contra o apartheid sul-africano ao Occupy e à
rebelião de George Floyd, ela apareceu em quase todas as mobilizações em massa
no último meio século. Em meio à crescente repressão e censura, ela tem sido
firme em seu apoio à luta de libertação palestina. Mais significativamente, ela
forneceu à esquerda uma das críticas mais incisivas ao profundo envolvimento do
Estado de segurança dos EUA na exploração e opressão, identificando o nexo de
obstáculos à organização revolucionária no presente.
<><> A
Joanesburgo do Sul
Davis nasceu em 1944
sob um sistema de apartheid racial em Birmingham, Alabama. Seu pai administrava
um posto de gasolina; sua mãe era ativa no Southern Negro Youth
Congress [Congresso Sulista da Juventude Negra], uma organização de
direitos civis de esquerda com uma forte filiação comunista.
Em Birmingham,
conhecida como a “Joanesburgo do Sul”, a ameaça de violência branca era
constante. A família Davis vivia em um bairro que era chamado de “Dynamite
Hill” por causa dos frequentes atentados a bomba sofridos por proprietários
negros. Eles perderam vizinhos e amigos para ataques racistas, incluindo o
atentado a bomba da Ku Klux Klan em 1963 na 16th Street Baptist
Church, que moldou a consciência política de Davis de forma contundente.
“Em Birmingham,
Alabama, conhecida como a ‘Joanesburgo do Sul’, a ameaça de violência branca
era constante.”
Davis frequentou
escolas segregadas até os quatorze anos, quando foi aceita por um programa
Quaker que colocava alunos negros do Sul em escolas integradas no Norte. Ela
escolheu a Elisabeth Irwin High School de Nova York por sua
reputação progressista.
Na Elisabeth Irwin,
Davis leu o Manifesto Comunista, que a atingiu “como um raio”, como
lembrou mais tarde. Ela começou a conceber a libertação negra como parte de uma
luta mais ampla dos trabalhadores. Ela se juntou à Advance, uma
organização socialista juvenil fundada por vários de seus colegas “red
diaper”, filhos de membros do CPUSA. Eles incluíam Eugene Dennis Jr, filho
do líder comunista de mesmo nome; Bettina Aptheker, filha do historiador
comunista Herbert Aptheker; e Mary Lou Patterson, cujo pai, o advogado
comunista William L. Patterson, havia entregue a famosa petição “We Charge
Genocide” [Acusamos Genocídio] às Nações Unidas em protesto contra os
linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos.
O grupo de jovens
organizou manifestações contra os testes nucleares e fez piquetes na Woolworth’s por
causa de seus balcões de almoço segregados. Eles se reuniram no porão dos
Apthekers entre os papéis de WEB Du Bois, que Herbert Aptheker estava guardando
na época.
Muito mais tarde,
Davis retornaria à noção de “democracia abolicionista” de Du Bois para
conceituar o que a transformação social radical implicaria na ausência da
derrubada do Estado. Mas aos dezessete anos, a revolução ainda parecia
distintamente no horizonte para ela.
<><> A
frente estrangeira
Em 1961, Davis
matriculou-se na Brandeis University. Ela era uma das três alunas
negras em sua turma de calouros. Sua atenção logo foi atraída para o principal
intelectual de esquerda do campus, Herbert Marcuse.
Marcuse pertencia a um
grupo de intelectuais marxistas judeus alemães conhecido como Escola de
Frankfurt. Forçados ao exílio nos EUA na década de 1930, eles começaram a
reinterpretar categorias marxistas clássicas como classe e exploração para dar
conta de sua experiência histórica de antissemitismo eliminacionista. Na década
de 1950, eles acumularam um extenso catálogo de impedimentos materiais e
psíquicos à revolta coletiva. Em sua leitura, a violência racializada
funcionava como uma manifestação externa das tendências de crise do capitalismo
e um componente-chave no arsenal do estado para interromper as lutas de
libertação dos trabalhadores.
“A interpretação do
marxismo da Escola de Frankfurt foi uma escolha natural para Davis, já atenta
aos interesses compartilhados, embora muitas vezes frustrados, do comunismo e
da libertação negra.”
A interpretação do
marxismo da Escola de Frankfurt era um ajuste natural para Davis, já alerta aos
interesses compartilhados, embora frequentemente frustrados, do comunismo e da
libertação negra. Por sua vez, sua ânsia intelectual e notável propensão para
lidar com as contradições da filosofia idealista alemã — a estrutura analítica
preferida da Escola de Frankfurt — impressionaram Marcuse, que se tornou um
mentor ao longo da vida.
Por meio da conexão
com Marcuse, Davis mudou-se para Frankfurt em 1965 para fazer pós-graduação em
filosofia com Theodor Adorno. Rapidamente se integrou ao núcleo duro da filial
de Frankfurt da União Socialista de Estudantes Alemães (SDS). Ela se mudou para
um prédio de fábrica dilapidado com vários membros da SDS, incluindo o líder
estudantil Hans-Jürgen Krahl.
De dia, eles
frequentavam aulas na universidade com Adorno, Max Horkheimer e Jürgen
Habermas. De noite, transcreviam e mimeografavam obras fora de catálogo de
teoria crítica, criando edições piratas que vendiam em eventos do SDS para
financiar suas atividades políticas.
Entre 1965 e 1967, as
atividades políticas do SDS alemão centraram-se em lutas de libertação
anticoloniais, mais agudamente no Vietnã. Os estudantes estavam convencidos de
que a descolonização romperia o continuum capitalista global, e estavam
determinados a obstruir as maquinações neocoloniais dos Estados Unidos, para as
quais a Alemanha Ocidental serviu como um crucial posto militar avançado. Eles
exigiram a dissolução da OTAN, construíram formas organizacionais
extraparlamentares, contestaram a desinformação da mídia e lutaram contra a
polícia.
A militância deles
impressionou Davis, que mais tarde se lembraria da seriedade com que seus
camaradas do SDS buscaram desenvolver “formas de resistência prática” capazes
de romper a apatia de sua própria sociedade e transpor divisões globais. A
experiência ressaltou as possibilidades de construção de coalizões
interclasses, multirraciais e internacionais, que Davis defenderia pelo resto
de sua vida.
Em 1967, Davis decidiu
voltar para casa para se juntar à luta de libertação negra. Marcuse havia se
mudado para a recém-criada University of California, San Diego
(UCSD), então ela se matriculou no programa de pós-graduação em filosofia e
começou a explorar o rico cenário de organizações políticas radicais no sul da
Califórnia.
Nos dois anos
seguintes, Davis organizou com o Student Nonviolent Coordinating
Committee (SNCC), o Black Panther Party for Self-Defense (BPP)
e o Che-Lumumba Club, uma seção totalmente negra do CPUSA onde
conheceu alguns de seus camaradas mais próximos, incluindo o casal Franklin e
Kendra Alexander e os irmãos Charlene e Deacon Mitchell. Todo o trabalho
político de Davis se concentrou na violência policial racista e na
conscientização pública. No entanto, as organizações nas quais ela era ativa
tinham visões diferentes sobre o caminho estratégico e o conteúdo da libertação
negra, e às vezes elas se desentendiam.
“Todo o trabalho
político de Davis se concentrou na violência policial racista e na
conscientização pública.”
Em 1969, Davis foi
contratada como professora assistente de filosofia pela Universidade da
Califórnia, Los Angeles (UCLA), tendo oficialmente avançado para candidatura na
UCSD com um tópico de dissertação sobre o problema da força, ou violência, na
filosofia de Immanuel Kant. Seu trabalho preliminar indicou que a noção ampla
de liberdade moral de Kant sancionou logicamente um direito individual de
resistência e até mesmo revolução, que de outra forma era negado em sua
filosofia política protoburguesa. Fiel à sua formação marxista, Davis
argumentou que essa contradição teórica, que encontrou seu corolário
contemporâneo em debates em torno da legalidade do ativismo, só poderia ser
resolvida na prática, por meio da transformação total do Estado constitucional
burguês.
Antes que o semestre
de outono na UCLA pudesse começar, no entanto, um informante do FBI revelou
publicamente que Davis era membra do Partido Comunista, e ela foi demitida pelo
Conselho de Regentes da Universidade da Califórnia. Da noite para o dia, se tornou
um para-raios para ataques anticomunistas, racistas, misóginos,
anti-intelectuais e ameaças de morte.
Davis contestou com
sucesso sua demissão no tribunal, citando seus direitos da Primeira Emenda à
liberdade de expressão e reunião e seu direito como professora à liberdade
acadêmica. Mas ela encontrou um inimigo determinado no governador de direita da
Califórnia, Ronald Reagan, que tramou para que ela fosse demitida novamente no
final do ano acadêmico.
Enquanto isso, Davis
usou sua nova publicidade para destacar o trabalho do Soledad Brothers
Defense Committee, ao qual ela se juntou em fevereiro de 1970. George
Jackson, Fleeta Drumgo e John Clutchette eram três homens negros encarcerados
na Prisão de Soledad que foram acusados do
assassinato de um guarda prisional branco. O comitê de defesa sustentou que eles estavam sendo
alvos por sua agitação política na prisão e buscaram angariar apoio público para o caso.
Foi por meio de seu
trabalho no comitê de defesa que Davis fez amizade com o irmão mais novo de
George Jackson, Jonathan, que acabaria liderando a tentativa fracassada de
libertar três outros homens negros — James McClain, William Christmas e Ruchell
Magee — no tribunal do Condado de Marin em agosto de 1970. Os Soledad Brothers
foram finalmente absolvidos em março de 1972, embora George Jackson já
estivesse morto naquela época, tendo sido assassinado por um guarda da prisão
durante outra tentativa de fuga em agosto de 1971.
<><> Uma
luta constante
Em novembro de 1970,
Marcuse escreveu a Davis, então encarcerada em Nova York, contando que ele
havia feito uma importante descoberta filosófica ao reler seus escritos
acadêmicos: “A liberdade não é apenas o objetivo da libertação, ela começa com
a libertação; ela está lá para ser ‘praticada’. Isso, eu confesso, aprendi com
você!” Davis ainda segue essa crença, como é evidente em seu mantra mais
conhecido, “A liberdade é uma luta constante”.
Liberdade, ela
insiste, não é uma propriedade fixa. Ela não pode ser concedida a uma pessoa,
muito menos por um Estado. Da mesma forma, ela não pode ser reduzida à
demonstração negativa de que somos livres porque há outros que não são livres —
os outros que o Estado trancou. Para ser digna do conceito, a liberdade deve
ter seu próprio conteúdo material positivo, que, por ainda não existir,
deve primeiro ser promulgado.
A própria experiência
de Davis atrás das grades foi formativa para sua compreensão crítica não apenas
da negação material da liberdade que a prisão constitui, mas também da prática
dinâmica da liberdade. Por sua vez, o projeto abolicionista que ela começou a
imaginar da prisão de San Jose transformou a compreensão da esquerda sobre o
cenário político contemporâneo.
“O projeto
abolicionista que Davis começou a imaginar na prisão de San Jose transformou a
compreensão da esquerda sobre o cenário político contemporâneo.”
Enquanto estava presa
em 1971, Davis escreveu com sua camarada e amiga comunista Bettina Aptheker que
o recurso do Estado à repressão violenta indicava que suas instituições,
incluindo a prisão, eram “impermeáveis a reformas
significativas” e “devem ser transformadas no sentido
revolucionário”. Uma página depois, elas exigiam “a abolição” do sistema prisional como tal.
O chamado
abolicionista de Davis e Aptheker partiu do foco ortodoxo na organização do
chão de fábrica industrial intencionalmente. Nos Estados Unidos, o emprego de
colarinho azul estava em declínio desde a década de 1950, e aqueles
trabalhadores que historicamente foram os últimos a entrar na relação salarial
industrial — negros e outras minorias — foram os primeiros a serem excluídos
dela, reduzidos ao status de uma subclasse definida pelas portas giratórias da
precariedade salarial e o que Davis então chamou de “aparelho
policial-judicial-penal”.
Ao reorientar seu foco
na polícia e nos obstáculos carcerários à luta de classes, Davis buscou
aproveitar o que ela acreditava ser o maior impulso oposicionista daqueles
proletários que eram mais vulneráveis à redundância econômica e à violência do Estado. Ela
também pretendia combater
diretamente a capacidade do Estado de continuar coagindo-os à submissão muito depois que a ordem capitalista racial havia cessado de
fornecer os salários necessários para a auto-reprodução da classe trabalhadora. A abolição foi uma estratégia revolucionária, em
outras palavras, sintonizada com as contradições do capitalismo tardio.
Mas a abolição, como
ficaria claro, também era uma estratégia revolucionária condizente com uma era
de retração da esquerda. A esperança da New Left [Nova
Esquerda] por uma ruptura revolucionária não deu certo, principalmente por
causa da enorme capacidade de repressão do Estado. Podemos debater as
deficiências e os pontos cegos da estratégia da Nova Esquerda, mas seu
“fracasso” teve mais a ver com programas governamentais como o COINTELPRO do
que com hippies e horizontalismo.
Após sua derrota, os
objetivos de fechar prisões, reescrever leis de sentença, bloquear a construção
de novas cadeias e prisões e institucionalizar alternativas restaurativas ao
encarceramento tornaram-se formas difusas e fragmentadas de estender a visão de
transformação social radical, ao mesmo tempo em que corroem a capacidade
contrarrevolucionária do Estado. O significado estratégico desse trabalho só se
tornou mais claro à medida que os ativistas do Stop Cop City enfrentam
acusações do RICO, enquanto os ativistas pró-Palestina são submetidos à
violência policial e de vigilantes, à censura e à perda de emprego.
Agora que ela tem
oitenta anos, o apoio contínuo de Davis aos protestos em massa está começando a
se assemelhar ao de seu antigo mentor. Na década de 1960, Marcuse adquiriu o
título honorífico de “avô da Nova Esquerda”, e jovens ativistas até mesmo alteraram
seu slogan para: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos — exceto Herbert
Marcuse.”
Embora estivesse
lisonjeado, Marcuse insistiu que não era a causa das revoltas. Em vez disso, o
que ele tentou fazer foi identificar as fissuras materiais e psíquicas dentro
da sociedade que estavam maduras para a ruptura, e então consolidar
teoricamente os grupos incipientes que emergiram dessas fissuras em uma
coalizão revolucionária. Davis fez algo semelhante, e ainda podemos aprender
com seu exemplo.
Fonte: Por Cecilia
Sebastian – Tradução de Pedro Silva, em Jacobin Brasil
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