Reforma Agrária: Pobre retomada na
redemocratização
De Sarney a Lula III,
programa sequer arranhou a concentração de terras no campo: só partilhou áreas
da União. O orçamento é mínimo. Faltam dados. Muitos assentamentos estão
irregulares. E, sem apoio, há êxodo rural. Como reverter este quadro?
• As condições em que se faz a reforma
agrária no Brasil
O elemento central da
análise é a constatação de que a correlação de forças entre os donos da terra e
os que aspiram por ela sempre foi negativa para estes últimos. Os grandes
proprietários de terra no Brasil foram por muitos séculos o eixo central das classes
dominantes, controlando, junto com a propriedade de escravizados, os principais
meios de produção e os poderes político, administrativo e judiciário. Mesmo
quando o desenvolvimento econômico trouxe outros atores para compor a elite
econômica, os latifundiários formaram relações com os setores industrial,
comercial e financeiro e nunca perderam o protagonismo. Isto nunca foi tão
visível como no momento presente, quando o Congresso tem uma forte maioria de
parlamentares relacionados como “bancada ruralista”, de longe a mais importante
na Câmara e no Senado.
Os anos pós-ditadura
militar permitiram que a luta dos sem-terra polarizasse a política e surgisse
como uma aparente ameaça ao monopólio da terra. Mas foi uma ilusão. Arrancou-se
uma legislação que indicava uma mudança radical nesta correlação de forças,
quando a Constituinte definiu o conceito de “uso social” da terra e a
possibilidade de desapropriações com pagamentos em títulos da dívida pública.
Mas tudo ficou dependendo de regulamentação e, na prática, nada mudou.
A aplicação da lei e a
operação dos sucessivos programas de reforma agrária, desde Sarney até Lula III
(40 anos de tentativas de descentralizar a posse da terra), mostraram que tudo
se fez com entraves que, em grande parte, inviabilizaram o processo. Pode-se
dizer que a reforma agrária no Brasil foi executada onde a linha de resistência
do latifúndio foi mais fraca.
Para começar, nunca
foi admitido qualquer limite para o tamanho da propriedade rural. O resultado
foi o contínuo crescimento da área média e uma concentração de terras sem
parelho em qualquer lugar do mundo. Com todos estes anos de distribuição de
terras, o resultado, tal como registrado no censo agropecuário de 2017, é o
número das propriedades com área superior a mil hectares somarem apenas 51.203
(1% do total de proprietários rurais) e ocuparem 167 milhões de hectares (48%
do total). Mesmo entre estes superproprietários, a concentração também é
grande. Os donos de mais de dez mil hectares são apenas 2.450 (0,05% deste
grupo) e ocupam 51,6 milhões de hectares (31% da área do grupo).
Os números dos
sucessivos censos mostram que este processo de concentração de terras nunca
deixou de ocorrer, variando apenas na intensidade.
Outro indicativo do
poderio do latifúndio no seu embate com os reformistas agrários é o fato de que
a maior parte das terras distribuídas pelos sucessivos governos não foi objeto
de desapropriação, mas de partilha de áreas públicas pertencentes à União. Outra
parcela importante de terras “distribuídas” sequer poderia ser considerada como
“reforma agrária”, por se tratar de casos de regularização de propriedades que
já estavam na posse de agricultores familiares havia tempos.
Os casos de
desapropriação foram quase todos o resultado de invasões organizadas pelos
movimentos sociais do campo. Elas foram selecionadas criteriosamente por não se
tratar de “áreas produtivas”. Na maior parte dos casos as ocupações se deram em
latifúndios com amplas áreas sem uso agrícola ou pecuário, em geral degradadas
por mal manejo. Existem cerca de 80 a 100 milhões de hectares nestas condições,
mas isto nunca levou o Incra a desapropriá-los massivamente. Discussões sem fim
sobre a definição de uso econômico do solo não levaram a qualquer ajuste dos
indicadores definidos em 1988, totalmente superados pela evolução da
tecnologia. Na verdade, o agronegócio não tem interesse nestas áreas e poderia
até admitir a sua desapropriação, desde que fosse remunerado. Mas o embate
político e ideológico sobre o direito sacrossanto à propriedade da terra
empurra o conjunto dos proprietários rurais para a resposta negativa e
agressiva às pretensões reformistas.
• Os percalços da reforma agrária
Enquanto o processo de
concentração de terras prossegue implacável ao longo da história do Brasil,
vamos assistindo a sua contrapartida, a desaparição paulatina do campesinato.
Os números dos censos
são pouco confiáveis e os do Incra pararam de ser divulgados desde 2015.
Entretanto, é possível fazer algumas constatações. A mais importante e que
merece discussão profunda, é o fato de que entre 2006 e 2017 desapareceram
468.859 unidades produtivas da agricultura familiar. No mesmo período, foram
assentadas aproximadamente 500 mil famílias. No balanço entre famílias que se
vão e famílias que chegam, concluímos que cerca de 970 mil famílias deixaram o
campo.
Não há como saber quem
são estes migrantes. Quantos são assentados da reforma agrária? Quantos são
minifundistas? Quantos são originários de biomas vulneráveis como a semiárida
Caatinga? Há apenas indicações com graus variados de consistência.
Estudos com base em
dados do Incra até 2015 indicam que dos 1.178.891 lotes distribuídos, 207.103
(17,6%) estavam vagos. Quase metade destes abandonos se deram em áreas
classificadas pelo Incra como “em consolidação” ou “consolidadas”. Quase um
quarto estavam em áreas “em instalação” ou “em estruturação”, o que é mais
compreensível, sobretudo quando se sabe que estes processos de instalação e
estruturação estavam sujeitos a longos atrasos e percalços que desanimavam os
assentados. Mas por que do abandono em áreas consolidadas?
Há outros indicadores
de problemas nas áreas de assentamento, com quase metade dos lotes distribuídos
até 2016 em situação irregular. É considerado em situação irregular um lote
ocupado por outra família que não a documentada pelo Incra. Este lote pode ter
sido vendido, arrendado ou cedido a outra família, mas tudo isso é irregular.
Também é considerado irregular o lote “ocupado” por uma família não residente
no mesmo município. Ainda estou para entender este último caso.
Os percalços dos
assentados e o aparentemente alto número de fracassos e abandonos tem uma
explicação que se relaciona com o fator indicado acima neste artigo: a reforma
agrária se faz nas áreas de menor resistência do latifúndio. Isto quer dizer
que são terras localizadas em biomas mais frágeis ou em regiões distantes e com
solos mais degradados. Na maior parte dos casos os assentados foram deslocados
para onde foi possível encontrar terras disponíveis. Isto representou graves
problemas de adaptação dos conhecimentos agrícolas dos assentados para
agroecossistemas mais ou menos distintos dos que conheciam. Foi o caso da maior
parte dos assentados na região Norte, vindos do Nordeste ou mesmo do Sudeste e
Centro Oeste.
Por outro lado, os
sucessivos governos que executaram programas de reforma agrária gastaram o
mínimo possível de seus orçamentos e isto significou, frequentemente, colocar
mais famílias do que o indicado tecnicamente. Os já mencionados atrasos na
estruturação dos assentamentos levaram muitas famílias a sobreviverem
explorando madeira e carvão das áreas recebidas, deixando os lotes no bagaço.
E, para completar, os planos de produção orientados pelo Incra e financiados
pelo Pronaf, foram voltados para um modelo convencional, caro e arriscado e que
gerou não poucos casos de inadimplência.
Um importante efeito
negativo estratégico tem que ser apontado neste quadro de evolução da
agricultura familiar e de fracasso da reforma agrária. Trata-se da erosão dos
conhecimentos tradicionais das famílias camponesas. Isto vem se dando quer
pelos deslocamentos regionais entres os assentados, quer pela evasão de
agricultores, quer pela adoção de sistemas produtivos convencionais no lugar
dos tradicionais, o que ocorre sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. Para
terminar, uma grande parte do campesinato brasileiro é hoje composto por
minifundistas com menos de 2 hectares de terra para cultivar, o que leva a
rápido desgaste dos solos e sistemas produtivos muito vulneráveis, incapazes,
no seu desenho atual, de prover o sustento de uma família.
• Como o golpe sufocou os camponeses
No Brasil, esta
migração de agricultores familiares europeus se dirigiu para as regiões Sul e
Sudeste, trazida pelos interesses dos barões do café que buscavam substituir a
mão de obra escravizada. Os que vieram espontaneamente buscaram o Sul, pela sua
maior similaridade com seus ecossistemas de origem. No Nordeste essa migração
não vingou porque a grande seca dos anos 1850 arruinou a produção familiar de
algodão e criou um imenso exército de miseráveis dispostos a trabalhar por
qualquer salário, verdadeiros neoescravizados.
O fim da escravidão,
no final do século XIX, não significou um aumento da agricultura familiar, como
seria de se esperar. Perto de um milhão de pessoas deixaram as fazendas onde
trabalhavam buscando outra forma de sobreviver. O Estado branco deu aos escravizados
o estatuto de libertos, mas não se preocupou em dar-lhes condições de vida. Com
a amplitude das terras disponíveis no país naquele momento não teria tido
custos maiores distribuí-las aos libertos, mas isto não aconteceu. O resultado
foi, em muitos casos, o retorno dos libertos ao trabalho nas fazendas, agora
com assalariamento. No entanto, os patrões passaram a cobrar por tudo
necessário para trabalhar e sobreviver (instrumentos, alimentação, moradia…),
tudo descontado dos magros salários. Foram poucos os que conseguiram se
estabelecer como agricultores de subsistência, em geral os que conseguiram
migrar para oeste, para longe das fazendas.
A ocupação do
território foi seguindo este traçado histórico. Os marginais do sistema de
produção em larga escala para a exportação vão desbravando as terras a oeste,
até o dia em que os grandes produtores, na sua sede de terras novas e ainda não
desgastadas, chegam para expulsá-los, com ou sem ajuda da lei. Por outro lado,
os grandes latifúndios passaram a segurar a sua mão de obra oferecendo pequenas
áreas de cultivo familiar, desde que o produto fosse partilhado com o patrão.
Surge a categoria, que já foi muito importante, dos meeiros e dos moradores,
vivendo sob a asa do latifúndio e sob seu controle, econômico, social e
político.
Toda esta história se
conta em número de conflitos, de assassinatos, de violências cometidas com um
duplo objetivo: controlar o acesso às terras e controlar a força de trabalho. A
história dos oprimidos e espoliados não costuma ser registrada na sociedade
dominada pelos opressores. São poucos os ecos dos gritos de dor e de terror que
atravessam os séculos da nossa formação enquanto país. Milhões de indígenas e
milhões de escravizados sofreram horrores e foram assassinados, com pólvora,
aço, doenças e castigos. Na sociedade de hoje, dominada pelos descendentes dos
opressores do passado, os heróis dos massacres estão homenageados em estátuas e
dão nomes a ruas, cidades e municípios. Mas os dados sobre os oprimidos são
poucos e pouco conhecidos, pelo menos até os últimos cinquenta anos.
A luta pela terra foi
constante e feroz ao longo da história do Brasil, mas ganhou mais relevância
política na segunda metade do século passado.
A criação das Ligas
Camponesas nos anos 1950 e sua implantação como movimento de massas
radicalizado no Nordeste, Sudeste e Sul e as ações de governos locais em favor
da reforma agrária, como os de Leonel Brizola e de Miguel Arraes no início dos
anos 60, colocou o tema na ordem do dia da política, sendo incorporado pelo
presidente Goulart no seu programa de reformas de base. Goulart foi o primeiro
presidente a tomar uma medida concreta de redistribuição de terras, com a
desapropriação das que estavam localizadas ao longo das estradas federais ou
açudes públicos. Eram propostas moderadas no seu objetivo e alcance, mas foram
tratadas como uma provocação comunista ao direito de propriedade e um dos
fatores que precipitaram o golpe contra Goulart em 1964, implantando a ditadura
militar.
Apesar do
reacionarismo dos golpistas e de suas relações com a oligarquia latifundiária,
os governos militares adotaram várias políticas que pretendiam alterar as bases
sociais do campo. Segundo o pensamento dos estrategistas inspirados pelo
Pentágono, era necessário fazer algumas reformas para evitar uma revolução no
campo. O resultado foi o Estatuto da Terra, que dava garantias aos meeiros e
moradores, em particular o direito de cultivar dois hectares de terra na
propriedade do patrão. A reação do latifúndio foi eliminar esta categoria de
camponês, que quase desaparece entre dois censos seguidos. Uma segunda medida,
visando favorecer a redistribuição de terras foi o Proterra, do início dos anos
70 e que taxava terras não produtivas do latifúndio. Depois de alguns
arreganhos ameaçadores no Congresso, pouco habituado a críticas aos governos
militares, a oligarquia aderiu ao programa, vendendo terras degradadas a preços
valorizados para o governo fazer assentamentos. Finalmente, já nos anos 1980, o
governo Figueiredo reformou o imposto territorial rural, aumentando muito as
taxas para latifúndios improdutivos e quase eliminando-os para as empresas
rurais. Foi a última medida de pressão para induzir a modernização dos
latifúndios, estimulada por créditos negativos para o uso de insumos químicos e
compra de tratores, apoiada na recém-criada empresa de pesquisa agropecuária,
Embrapa e na empresa nacional de assistência técnica e extensão rural, a
Embrater. Tudo isto foi o pontapé inicial na criação daquilo que, nos anos
1980, era chamado de agrobusiness e que mais recentemente foi traduzido para
agronegócio.
A classe dominante no
Brasil, que sempre misturou os interesses dos setores agrários com os
industriais e, mais recentemente, os financeiros, conseguiu fazer uma reforma
agrária no topo da escada social, capitalizando e modernizando o andar de cima,
enquanto o campesinato seguia arrochado pela repressão da ditadura, sem
vislumbre de chegar ao direito a um pedaço de chão.
Apesar da repressão, o
campesinato se moveu no período ditatorial, mas com muitos limites. O efeito
dos anos JK (“cinquenta anos em cinco”) e do chamado “milagre econômico” do
regime militar foi uma maciça migração rural urbana, que levou quase 30 milhões
do campo às cidades entre os anos 50 e 80.
Esta migração aliviou
muito a pressão pelo acesso à terra no campo. Mesmo assim, assistiu-se (apesar
da censura) a um gigantesco movimento de massas de camponeses afetados pela
seca de 1970/72 e que provocou a tomada de cidades de médio porte como Mossoró,
interrupções de estradas de rodagem e de ferro, assaltos a armazéns. Pela
primeira vez os militares e as polícias estaduais não ousaram tentar controlar
os grandes bandos de camponeses que se formaram, lutando pela vida, por comida
e água. Criou-se um programa de assistência aos “flagelados”, dando emprego em
frentes de trabalho enquadradas pelos militares e que se dedicaram a consertar
estradas e açudes. Milhões foram atendidos, tendo garantias de alimentação e
alojamento.
Com o fim do regime
militar, a Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura,
Contag, assumiu a liderança de um movimento reivindicativo através dos
sindicatos de trabalhadores rurais, apesar da herança de peleguismo deixada
pelos anos de controle militar. A Contag organizou, em fins de 1985 um grande
congresso de camponeses, em Brasília e afirmou com ênfase a proposta da reforma
agrária. O governo Sarney convivia ainda com o ministério escolhido pelo quase
presidente Tancredo Neves e o ministro da Agricultura, Pedro Simon, apoiou
política e materialmente o congresso.
Mas o primeiro
programa de reforma agrária pós-regime militar, dirigido pelo progressista José
Gomes da Silva, foi sendo limado pouco a pouco e, com a reforma ministerial que
alinhou o governo ao seu presidente, a proposta foi engavetada. Apesar disso, Sarney
chegou a distribuir terras para 90 mil famílias nos seus cinco anos de governo,
mais que os 25 anos anteriores.
Fonte: por Jean Marc
von der Weid, em Outras Palavras
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