Porque os remédios de HIV seguem muito
caros
A 25ª Conferência
Internacional sobre a Aids (AIDS 2024) foi realizada de 22 a 26 de julho de
2024 presencialmente em Munique, Alemanha, e virtualmente sob a organização da
International Aids Society (IAS). Este evento, o maior encontro global sobre
HIV/aids, reuniu cientistas, profissionais de saúde, formuladores de políticas,
ativistas e pessoas vivendo com HIV/aids para discutir avanços na pesquisa,
prevenção, tratamento e políticas públicas.
Nós do Grupo de
Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI/Rebrip) e da Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids participamos da conferência, apresentamos trabalhos e
nos envolvemos nas manifestações que ocuparam os stands da Indústria Farmacêutica,
em especial a GSK/ViiV e a Gilead.
A Conferência de Aids
deste ano, sob o tema “Put people first” (Priorizar as Pessoas), trouxe
discussões cruciais sobre o futuro do tratamento, da prevenção e da
possibilidade de cura do HIV. Dentre os temas abordados, destacamos neste
artigo as apresentações sobre o dolutegravir (DTG) e o novo medicamento para
profilaxia pré-exposição (PrEP), o lenacapavir (LEN), que predominaram durante
a Conferência.
A partir destes casos,
discutiremos brevemente as barreiras estruturais, que impedem justamente a
concretização da primazia dos direitos humanos, se assim lemos o tema da
conferência – “priorizar as pessoas” (mas como?). Explicamos ainda a realidade
brasileira, que se no passado recente foi referência internacional com o
Programa Nacional de HIV/aids, depois destruída pela “política da morte” do
último governo, hoje, mesmo com um governo “progressista”, mostra-se distante
de acompanhar os avanços e, de certa forma, refém da indústria farmacêutica
transnacional.
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Dolutegravir: patente prejudica remédio nacional
Nossa participação na
Conferência foi fruto da aprovação de dois estudos: i. “Os desafios da
sustentabilidade do programa nacional de HIV/aids no Brasil: uma análise
crítica do impacto econômico do dolutegravir e das barreiras patentárias” e,
ii. “Melhorando o acesso e accountability: o papel da tabela política na
abordagem das disparidades de preços dos medicamentos no Brasil”, da concessão
de bolsas pela IAS e ajuda de custo do consórcio Make Medicines Affordable.
Ambas as pesquisas apresentaram como o Brasil paga caro para disponibilizar
medicamentos em comparação com o mercado internacional.
Vejamos o caso do DTG,
medicamento utilizado por mais de 580 mil pessoas vivendo com HIV, e como a
barreira da patente impede a aquisição de genéricos e redução de preços através
da concorrência. No estudo, utilizamos a metodologia de Pinheiro et al (2006)
para estruturar os custos de produção do DTG e, assim, indicar o preço que este
ARV poderia ser oferecido. Os cálculos foram baseados no preço do insumo
farmacêutico ativo, que é a principal matéria prima do medicamento e
influenciador do preço final. O custo potencial de produção calculado indica
que o preço poderia ser tão baixo quanto US$0,06 e 0,07 ou US$0,14 (em reais
aproximadamente R$0,29, R$0,34 ou R$0,69, a um câmbio médio de R$4,98). Este
valor calculado não se distancia do menor preço internacional encontrado, US$
0,060 (Global Fund PPM) e US$ 0,063 (GHS-PSM E-catalog).
Entretanto, no Brasil,
em 2023, o Ministério da Saúde (MS) adquiriu 201 milhões de comprimidos do DTG
ao preço de R$4,40, o equivalente a US$0,88. A soma entre as aquisições do DTG
e do comprimido de dose única de DTG/3TC, totalizou aproximadamente R$948
milhões. O orçamento total em 2023 para todas as atividades do Departamento de
HIV/aids foi de R$ 2.382.296.914,00, desse total, para a compra de medicamentos
foram destinados R$ 1.816.014.574,00, apenas o DTG representa respectivamente
39,79% e 52,21% desses valores. A nossa análise sugere que o Brasil paga um
preço excessivo, apesar da demanda significativa e crescente, do monopólio
estatal nas compras e da venda por meio da Fiocruz. Importante destacar ainda,
para não nos distanciarmos da realidade regional de outros países na América do
Sul, que na Argentina o DTG é 800% mais barato do que o preço no Brasil. Na
Colômbia, o preço era ainda mais excessivo, mas lá, o governo emitiu o decreto
de licença compulsória, justificado pelo interesse público e abusividade dos
preços.
É importante relembrar
que o DTG foi objeto de uma parceria para o desenvolvimento produtivo (PDP)
entre a empresa nacional Blanver e o laboratório farmacêutico oficial Lafepe,
que foi barrada pelas titulares da patente concedida, e hoje o MS realiza a aquisição
do medicamento da aliança estratégica entre a GSK/ViiV e a Fiocruz. Não há
justificativa para um preço tão elevado praticado no Brasil, o que exige uma
maior transparência nos termos desse contrato de transferência de tecnologia,
que também não se justifica, uma vez que já tínhamos a tecnologia sendo
desenvolvida por um outro laboratório público, o Lafepe. A comercialização do
DTG no Brasil está sob proteção da patente, o que constitui uma barreira à
entrada de concorrentes genéricos.
A diferença entre o
custo de produção e o preço de aquisição no Brasil mostra que o preço não está
relacionado ao custo de produção, o que reflete o poder de fixação de preços do
setor farmacêutico em situações de monopólio. O alto preço pago pelo governo
compromete o orçamento público já pressionado pelo ajuste fiscal e os tubarões
do congresso nacional. É importante mencionar, que o MS tem ciência da
abusividade do preço praticado no Brasil, inclusive com trabalho aprovado e
apresentado na Conferência de Aids, que compara os preços internacionais e
nacional.
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Lenacapavir: novo medicamento, mesmas exclusões
O alto preço ameaça a
sustentabilidade do programa nacional de HIV e também a viabilidade de
incorporação de novos medicamentos, como os de ação prolongada, caso do
cabotegravir (CAB-LA) e LEN, ambos para PrEP. O cabotegravir foi aprovado pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em junho de 2023, mas ainda
sem aprovação do preço máximo pela Câmara de Regulação do Mercado de
Medicamentos (CMED). Contudo, ensaios clínicos que compararam a eficácia de
CAB-LA com a PrEP oral e demonstraram que houve redução do risco de infecção
por HIV, em especial devido à melhor adesão, tiveram contribuição e
participação de instituições e cidadãos brasileiros.
O medicamento está sob
proteção patentária no Brasil (múltiplas patentes concedidas), permanecendo sob
monopólio até 2031. Em 2022, o preço do tratamento por pessoa/ano, nos Estados
Unidos era de US$ 22.000,00. Embora haja um acordo de licenciamento voluntário
para produção e comercialização de versões genéricas em cerca de 90 países,
Brasil e outros países de renda média foram excluídos, o que agrava as
barreiras de acesso, especialmente em regiões com altas taxas de novas
infecções por HIV. Em resumo, contribuímos para aprovação do medicamento com os
estudos clínicos que comparavam sua segurança e eficácia, mas fomos uma vez
mais excluídos da possibilidade de acessar genéricos a partir da licença
voluntária ampla no âmbito internacional.
O LEN foi o grande
destaque na Conferência de Aids, mencionado em todas as plenárias e simpósios,
permeando como o tema central. Houve chamada pública na abertura por Winnie
Byanyima, diretora executiva da UNAIDS, para que a Gilead realize uma licença
voluntária e amplie para alcançar países como o Brasil. Mas também
manifestações de protesto, que evidenciaram a disparidade entre o preço
praticado nos EUA e a estimativa de preço apresentada pela equipe de Andrew
Hill e Joseph Fortunak de US$40,00 em dois anos para 10 milhões de pessoas.
O LEN atualmente é
utilizado nos EUA para tratamento de pessoas com HIV multirresistente, com duas
injeções ao ano, ao preço aproximado de US$40.000. Entretanto, resultados do
estudo de fase 3 Pupose 1 destacou que o LEN, injetável semestral, demonstrou 100%
de eficácia na prevenção do HIV em mulheres cisgênero em comparação com a PrEP
oral. O estudo, que envolveu mais de 5.300 mulheres em locais da África do Sul
e Uganda, não registrou nenhum caso de infecção por HIV entre as 2.134 mulheres
que receberam LEN. Com base nesses dados, foi interrompida a fase cega do
estudo para que todas as participantes passassem a receber o LEN.
Como Dulce Ferraz, da
Fiocruz Brasília, afirmou em sua palestra sobre pesquisas de base comunitária,
na plenária realizada em 25 de julho, “devemos reconhecer e celebrar o
importante papel que as mulheres e comunidades africanas desempenharam neste
ensaio” acrescentando brilhantemente “esperamos que a Gilead aja rapidamente
para traduzir esses resultados em acesso real no mundo, e eu acrescentaria que
também estamos esperando ações das instituições globais de saúde, que têm a
responsabilidade de exercer uma liderança mais forte no cenário global de
saúde, implementando mecanismos de governança guiados pelo princípio da
solidariedade global para garantir acesso igual para aqueles que mais podem se
beneficiar”. Aqui lembramos que estatísticas da UNAIDS de 2023 revelam que,
globalmente, 44% de todas as novas infecções por HIV ocorreram entre mulheres e
meninas.
Há também, em
andamento, o estudo cliníco Purpose 2, entre homens cis, homens trans, mulheres
trans e indivíduos de gênero não binário que fazem sexo com homem, com 16 anos
ou mais. O estudo acontece no Brasil e em outros países. Certamente, a história
se repetirá e injustificadamente seremos excluídos do acordo de licenciamento
voluntária da Gilead, ocorra ele no âmbito da Medicines Patent Pool (MPP) ou
não. Em caso do licenciamento voluntário bilateral, como a aliança estratégica
entre a GSK/ViiV e Fiocruz, reconhecemos que ele pode ser danoso para a
sustentabilidade do programa.
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Governo terá ousadia de mudar rumos?
As patentes, os preços
abusivos e as disputas legais travadas por empresas como a GSK/ViiV, que está
contestando a licença compulsória do DTG na Colômbia, são exemplos claros de
barreiras comerciais no acesso à medicamentos. Essa situação não apenas impede
o acesso a novos medicamentos, mas também sobrecarrega financeiramente o SUS,
colocando em risco a saúde da população e a viabilidade econômica do programa
nacional de HIV/aids a longo prazo. Diante desse cenário, a adoção de decisões
políticas corajosas é essencial. Neste ponto, lembramos o discurso do
presidente Lula em 2007, na ocasião da assinatura do decreto de licença
compulsória do efavirenz:
“É importante deixar
claro: não importa se a firma é americana, alemã, brasileira, francesa ou
argentina. O dado concreto é que o Brasil não pode ser tratado como se fosse um
país que não merece ser respeitado, ou seja, pagarmos 1 dólar e 60 centavos, quando
o mesmo remédio é vendido para outro país a 60 centavos de dólar. É uma coisa
grosseira, não só do ponto de vista ético, mas do ponto de vista político e
econômico. É um desrespeito. Como se o doente brasileiro fosse inferior ao
doente da Malásia. Não tem nenhuma possibilidade de aceitarmos isso. Eu quero
que o Temporão saiba, como ministro da Saúde, que está valendo agora para este
remédio – que eu não aprendi a falar o nome – o efavirenz, mas vale para
qualquer outro. Hoje é o efavirenz, mas amanhã pode ser qualquer outro
comprimido, ou seja, se não tiver com os preços que são justos, não apenas para
nós, mas para todo ser humano no Planeta que está infectado, nós temos que
tomar essa decisão. Afinal de contas, entre o nosso comércio e a nossa saúde,
vamos cuidar da nossa saúde. Como tenho uma tese em que eu acho que toda
descoberta de interesse da humanidade deveria ser fixada como patrimônio da
humanidade, o inventor, o criador, poderia ter os seus benefícios, ganhar o seu
dinheiro, mas isso deveria ser da humanidade. Não é possível alguém ficar rico
com a desgraça dos outros.” (Disponível na Biblioteca da Presidência)
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Ajudamos a eleger Lula e a derrotar a política da morte do governo Bolsonaro,
mas hoje o questionamos: sua opinião mudou?
O governo brasileiro
precisa priorizar a incorporação de tecnologias de saúde inovadoras e enfrentar
as barreiras comerciais que limitam o acesso a medicamentos e tratamentos. Isso
inclui a defesa das licenças compulsórias, a revisão política de preços dos
medicamentos e o fortalecimento de alianças internacionais para garantir que a
saúde não seja tratada como mercadoria.
Fonte: Por Susana van
der Ploeg e Carolinne Scopel, para a coluna Saúde não é mercadoria, em Outra
Saúde
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