Mergulho no baile de Rebeca Andrade
A apresentação de
Rebeca Andrade no solo começa antes mesmo de soar a sirene que indica o início
da exibição. A caminhada da brasileira rumo ao tablado ostenta pernas e braços
rígidos, e o semblante, sério, como se estivesse marchando. Foi assim nesta segunda-feira
(5), quando a ginasta conquistou a medalha de ouro, a quarta nesta edição dos
Jogos de Paris e a sexta em toda carreira, tornando-se a atleta mais vencedora
do esporte brasileiro em Olimpíadas.
“[A entrada] é similar
à da Beyoncé no show do Super Bowl, olhando para os lados, uma coisa meio
diva”, disse à piauí o coreógrafo da equipe feminina de ginástica artística do
Brasil, Rhony Ferreira, relembrando o show ocorrido em 2013. A aproximação com
a estrela pop vai além. Em 1 minuto e 30 segundos, a trilha sonora que
acompanha os giros e piruetas da brasileira é formada por duas músicas: End Of
Time, da popstar norte-americana, e Movimento da Sanfoninha, da funkeira
Anitta, outra personalidade do showbiz mundial.
A performance começa
com a melodia de End Of Time. A mão direita está na cintura e a esquerda sobre
o rosto, com a palma aberta em direção ao céu. O rufar inicial da bateria é
acompanhado pelos trompetes, que conduzem Rebeca para uma das pontas do tablado.
Ela balança os braços com graciosidade enquanto arquiteta as primeiras
acrobacias. A corrida é sucedida por uma sequência de piruetas e um duplo
mortal com as pernas encolhidas junto ao peito – o Tsukahara grupado.
Assim que a brasileira
aterrissa no solo a música diminui o ritmo. “É o intervalo que ela pediu para
respirar”, comenta à piauí Andy Bianchini, produtor e DJ carioca responsável
por criar a trilha que acompanha a esportista. A exibição segue. O grave do bumbo
soa desacompanhado enquanto a ginasta realiza movimentos de dança para
recuperar o fôlego e planejar o salto seguinte, um Tsukahara esticado. Após
alguns segundos de respiro, os trompetes voltam a ecoar anunciando a corrida em
alta velocidade, que termina com um duplo mortal com as pernas estendidas e uma
pirueta. Na aterrissagem, a bateria e os trompetes ganham a companhia de um
apito para dar ênfase ao momento.
Após concluir as duas
acrobacias, Rebeca faz uma sequência de giros e saltos menos exigentes que
servem de transição para a segunda parte da apresentação. A brasileira deita as
costas no chão para cumprir um requisito da regra e, neste momento, o bumbo dá
lugar à sanfona em uma transição que introduz Movimento da Sanfoninha. A
transição entre o pop e o funk tem nuances. Um deles é a mudança do bpm, ou
batimentos por minutos, cuja frequência determina a velocidade da música. “A
[música] da Beyoncé estava baixa, na casa dos 90. A da Anitta estava em 140,
bem acelerada. Essa transição deu trabalho, porque não pode ser uma mudança
brusca”, diz Bianchini. A estratégia é perceptível na apresentação quando a
sanfona é executada isoladamente por alguns poucos segundos. É o suficiente
para demarcar a variação de ritmo na performance e instaurar a nova melodia sem
solavancos.
A transição solo tem
outro detalhe, este relacionado à coreografia. “A Rebeca vai para o chão
respirar e porque precisa, segundo a regra, deste movimento. É o período em que
ela mostra sensualidade, joga o cabelo e, ao levantar, rebola um pouco. Mas não
dá para ser como a Anitta. Tem que ser clássico e suave. Bonita e sensual, mas
não erótica”, explica Ferreira, que comanda a coreografia da equipe feminina
desde os anos 2000.
Rebeca, então, se
levanta, emenda mais alguns saltos e prepara uma nova acrobacia. Nesse momento,
aproveita uma sequência percussiva marcada por uma batida mais acentuada para
dar socos no ar com as duas mãos, relembrando um trecho de sua antiga coreografia,
que juntava Baile de Favela de MC João, e Toccata and Fugue, do alemão Johann
Sebastian Bach. A mistura ajudou na conquista de duas medalhas importantes,
ambas no individual geral: a prata dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, e o
ouro no Mundial em Liverpool, no ano seguinte.
Rebeca, então, parte
para a reta final da sessão. O momento de nostalgia lhe garante alguns segundos
de respiro antes da corrida em alta velocidade para um duplo mortal com as
pernas estendidas. Após o salto, ela conecta alguns movimentos no solo e finaliza
a série com uma nova acrobacia, um duplo mortal carpado, com pernas e pés
esticados, e o corpo dobrado na altura do quadril. Após o salto, a esportista
faz alguns passinhos de funk com a melodia de Baile de Favela para encerrar a
exibição.
A coreografia de
Rebeca utilizada na prova do solo nas Olimpíadas de Paris começou a ser
desenhada após o Mundial na Antuérpia. De acordo com a Federação Internacional
de Ginástica, a ginasta precisa trocar sua trilha de acompanhamento a cada
quatro, em compasso com o ciclo olímpico. Mas o coreógrafo da seleção afirma
que boa parte das ginastas troca de música a cada dois anos, para não saturar o
público e a própria atleta, que ouve a composição não só nas competições, mas
também nos treinos.
“As músicas vieram
como uma surpresa para mim nesses últimos três ciclos olímpicos. Aquela foi a
primeira vez que eu consegui escolher as faixas com o pessoal do Comitê
Olímpico. Peguei referência de artistas de quem eu gosto, como Anitta e
Beyoncé. Mandei as que eu gostava, que eu achava que iam ficar legais, aí eles
fizeram a junção de tudo e deu certo”, disse a ginasta em entrevista à revista
Billboard Brasil, no fim de julho.
Além de Anitta e
Beyoncé, Rebeca cogitou usar canções de Rihanna e Iza, mas o resultado final
não agradou. “A primeira versão ficou horrível”, comenta Ferreira. “Aí, fomos
limpando e tirando o que não queríamos.” Bianchini lembra que a música demorou
um ano para ficar pronta, porque precisou ser ajustada à performance da
ginasta. “Conforme ela ia ensaiando, às vezes mudando algum movimento, eu tinha
que fazer as alterações para ficar sincronizado.”
Diretor técnico da
Confederação Brasileira de Ginástica, Henrique Motta foi um dos responsáveis
por fazer a mediação entre a ginasta e o produtor. Ele diz à piauí que a
composição atual tem o mesmo andamento da anterior utilizada em Tóquio, que
uniu o funk brasileiro ao clássico alemão. “Apesar de os passos coreografados
serem diferentes, a construção da série é parecida. Os saltos acontecem no
mesmo momento.”
Os homens disputam
provas na ginástica artística desde a primeira edição dos Jogos na era moderna,
em 1896, em Atenas. A inserção das mulheres aconteceu apenas em 1928, em
Amsterdã. Como forma de dar maior sutileza aos movimentos, a Federação
Internacional de Ginástica instituiu a música para provas femininas no Mundial
de Moscou, em 1958. A própria federação cogitou a possibilidade da trilha
sonora para homens nos Jogos de 1952, em Helsinque, mas a proposta não avançou.
A justificativa é de que enquanto as mulheres fazem movimentos mais estéticos,
relacionados à dança, os homens precisam dar ênfase a acrobacias que mostrem
força física.
Durante as
competições, a música utilizada pelas ginastas é alvo de avaliação dos juízes.
O regulamento da Federação Internacional de Ginástica diz que o som “deve ser
sem cortes abruptos, impecável e contribuir com um sentido de unidade para a
composição geral e desempenho do exercício”, além de “ajudar a destacar as
características da ginasta”. A voz humana está liberada, desde que não seja
pronunciando uma palavra. Grunhidos, assobios e afins podem ser entoados.
A nota no solo é
dividida em duas categorias: dificuldade e execução. No primeiro caso, a
avaliação começa com zero e vai crescendo à medida que a esportista acerta suas
acrobacias. A execução, onde estão inseridos critérios artísticos, como a
música, é diferente: a nota começa em 10 e é descontada conforme os erros da
apresentação. O Brasil vai bem no quesito. No Mundial do ano passado, 3 das 10
ginastas com menor número de descontos no quesito execução eram brasileiras –
Rebeca foi a segunda, com 0.17 décimos de punição. É muito pouco.
“Os movimentos
profissionais artísticos dela são perfeitos”, comenta à piauí Maria Beatriz
Licursi, professora associada da Escola de Música da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e especialista em percepção musical, que é a capacidade de ouvir
um som e identificar variações de notas e ritmos. “Sua percepção musical e
rítmica é muito bem sincronizada com o que se ouve. Ela tem um pulso em relação
a velocidade do tempo musical que a faz sentir a trilha no corpo e se expressar
sem perder a sincronicidade.”
O fato de Rebeca
utilizar como inspiração canções do pop internacional ou ritmos brasileiros do
mainstream é resultado de uma mudança mais profunda na ginástica. Até o fim da
década de 1990, as composições inseridas nas performances eram retiradas do repertório
erudito, resultado da influência soviética na difusão do esporte, marcado pela
relação com o balé clássico e o piano. Licursi explica que as provas eram
acompanhadas por pianistas ao vivo, que dedilhavam a sequência melódica olhando
para a ginasta. “Era mais artesanal. Agora são superposições de várias
gravações”, analisa. Ela não está errada. “A Rebeca queria usar vários trechos
de Movimento da Sanfoninha e ela tem seis batidas diferentes. Tive que
condensar isso em 40 segundos cortando a canção em pequenos pedaços”, explicou
Bianchini.
Para Luísa Parente,
ginasta brasileira que competiu nas Olimpíadas de Seul, em 1988, e Barcelona,
em 1992, a tecnologia foi uma aliada. “Na minha época tudo era feito na fita
K7.” A ginasta, à sua maneira, permitiu um pouco de ousadia nas suas evoluções,
ao incorporar The Entertainer, do pianista americano Scott Joplin (1868-1917),
tema do filme Golpe de Mestre (1973), junto com o tema de Um Tira da Pesada
(1984), comédia que transformou Eddie Murphy em astro do cinema.
A entrada de temas
voltados ao pop se acentuou em Atlanta, em 1996, quando a equipe olímpica
norte-americana uniu YMCA, do grupo Village People, e Macarena, do Los Del Rio.
No Brasil, o ponto de inflexão ocorreu no Mundial de 2003, quando Daiane dos
Santos apresentou uma recriação de Brasileirinho, a partir do choro composto
por Waldir Azevedo em 1947. Ela conquistou a medalha de ouro no solo, feito
inédito para o Brasil à época.
Diferentemente de
Rebeca, onde o processo foi todo digital, com Daiane houve a participação do
produtor e maestro curitibano Misael Jr., que reuniu músicos para gravar
trechos melódicos que remetem à escola de samba e à sanfona típica do Rio
Grande do Sul, onde Daiane nasceu. “Um ginasta de outra nação pode replicar uma
coreografia de um compositor erudito, mas dificilmente reproduz o nosso
gingado”, explica Ferreira.
O coreógrafo, que
concebeu os passos da histórica performance, diz ainda que a estratégia
escondia uma carência da atleta brasileira. “A maioria das meninas inicia no
esporte aos 5 ou 6 anos e tem uma base no balé. Daiane começou mais tarde, com
11 ou 12 anos, e não teve esse aprendizado. Em uma competição internacional, o
árbitro internacional conhece os movimentos do balé, mas quem vai descontar
dois décimos dela com a justificativa de que sambou errado?”
Além de Rebeca, as
misturas também aconteceram entre as outras integrantes da equipe brasileira em
Paris. Julia Soares conseguiu com que o samba-rock do Raça Negra conversasse
com o canto dramático de Edith Piaf, no medley de Cheia de Manias com Milord; Flávia
Saraiva optou pelo tradicional Galope Infernal, do francês Jacques Offenbach
(1819-1880), aquela que todo mundo chama de Can Can, deu toques de modernidade
à obra com uma batida que se assemelhou aos pancadões dos bailes funk.
O mais importante
nessa atualização musical das performances de solo é o envolvimento que ela
aproxima a competição do público, digamos, leigo. Assistir a um festival de
movimentos complicados e tentar adivinhar os temas que são ali apresentados é
também chamar a atenção do público para o esporte olímpico. No princípio, era o
balé. Agora é o rock, o funk, o soul, o pop e o que mais couber na minutagem.
Fonte: Por Guilherme
Henrique e Sérgio Martins, na Piauí
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