Gilberto Lopes: ‘A longa marcha da OTAN
para o Leste’
Defensor do
desarmamento nuclear após sua aposentadoria, o contra-almirante interveio no
debate sobre a ampliação da OTAN para o leste, que a então secretária de estado
Madeleine Albright, da administração Clinton (1993-2001), defendeu com
entusiasmo. “Minha visão de uma OTAN nova e melhor pode ser resumida numa
frase”, diria a secretária: “queremos uma Aliança reforçada por novos membros;
capaz de se defender coletivamente; comprometida em enfrentar uma ampla gama de
ameaças aos nossos interesses e valores compartilhados”. “Sei que há quem
sugira que falar de interesses comuns euroatlânticos, para além da defesa
coletiva, afasta de alguma forma a intenção original do Tratado do Atlântico
Norte. Já disse antes e volto a repetir: isso é uma bobagem!”.
Nascida em Praga,
Madeleine Albright morreu em março de 2022, tendo publicado vários livros. Num
deles, sobre o fascismo – Fascism, a warning –, publicado em
2018, demonstra mais uma vez seu gosto pelo resumo, pela capacidade de definir
seus objetivos em uma frase. “Para mim”, diria Madeleine Albright em seu livro,
“um fascista é alguém que se identifica totalmente com toda a nação ou com um
grupo em nome do qual afirma falar. Desconsidera os direitos dos outros e é
capaz de utilizar todos os meios necessários, incluindo a violência, para
atingir seus objetivos”.
Mais adiante, no mesmo
livro, refere-se aos objetivos da política externa, cuja pasta chefiou de 1997
a 2001, durante a administração de Bill Clinton. “Digo aos meus alunos que o
objetivo fundamental da política externa é muito simples: convencer os demais
países a fazer o que queremos que eles façam. Para isso, temos diversos
instrumentos à nossa disposição, desde uma exigência educada até o envio de
fuzileiros navais”.
Entusiasmada com a
perspectiva de incorporar à OTAN os três primeiros países da Europa Oriental –
República Tcheca, Hungria e Polônia –, Madeleine Albright, num discurso em
Bruxelas em 8 de dezembro de 1998, falou da importância desses novos membros
juntarem-se ao debate então em curso sobre “as iniciativas essenciais para
preparar a Aliança para o século XXI”. Era a primeira ampliação da OTAN para o
leste após a Guerra Fria. Em 2004, mais seis países se juntariam.
Embora as estimativas
variem, o Pentágono calculava então que a ampliação da OTAN poderia custar
entre 27 e 35 bilhões de dólares nos dez anos seguintes, dos quais Washington
deveria assumir cerca de 200 milhões por ano. Um número ridículo (mesmo se atualizado
para o valor atual do dólar) se comparado com os mais de 175 bilhões de dólares
já destinados à Ucrânia desde 2022. Para não falar de montantes semelhantes
concedidos por países europeus, que, somados, superam amplamente os 223,7
bilhões de dólares destinados no ano passado à Assistência Oficial ao
Desenvolvimento (AOD).
·
Não era uma ameaça
Para Bill Clinton e
sua secretária de estado, a expansão da OTAN para o leste não representava uma
ameaça para a Rússia. Era a véspera da cúpula de Washington, em abril de 1999,
na qual a organização celebraria seus 50 anos, em meio à operação militar no
Kosovo (uma operação polêmica realizada sem autorização do Conselho de
Segurança da ONU), e na qual seria discutido seu novo conceito estratégico e a
adoção do plano de adesão dos novos parceiros, ex-aliados da União Soviética e
membros do Pacto de Varsóvia.
Na Rússia, Boris
Yeltsin terminava seu período à frente do governo (iniciado em 1991), após uma
reforma política e econômica caótica, uma privatização de empresas públicas que
despertou o apetite do Ocidente, interessado nos vastos recursos do país. Em 31
de dezembro de 1999, entregou o poder ao primeiro-ministro Vladimir Putin, que
assumiu a presidência interinamente antes de ser eleito para o cargo três meses
depois. Durante sua década de governo, o PIB da Rússia diminuiu quase à metade.
A OTAN ainda tinha
esperança de poder convencer a Rússia “a fazer o que nós queremos que façam”.
Madeleine Albright falou longamente sobre as implicações para a Rússia das
propostas de ampliação da OTAN. Em seu testemunho perante a Comissão dos
Serviços Armados do Senado em 23 de abril de 1997, lembrou os senadores que era
diplomata e que “o melhor amigo de um diplomata é uma força militar efetiva e
uma capacidade crível de utilizá-la”. “Deixem-me explicar o objetivo
fundamental de nossa política”, dizia ela aos senadores, “é construir, pela
primeira vez, uma comunidade transatlântica pacífica, democrática e não
dividida”.
O que, em sua opinião,
lhes daria maior segurança de que não seriam chamados, outra vez, a combater em
solo europeu. Já naquele momento destacava a importância de fortalecer a
cooperação com a Ucrânia, promover uma reforma militar neste país e melhorar a
interoperabilidade com a OTAN.
“A OTAN é a âncora de
nosso compromisso com a Europa. “É prometendo lutar, caso seja necessário, que
tornaremos menos necessário lutar”. Um argumento que não leva em consideração
que, hoje em dia, essa luta seria com armas nucleares (pensavam então que podiam
ganhá-la). Sequer, como veremos, levou em consideração os muitos avisos de que
os resultados dessa ampliação poderiam ser contrários aos que Madeleine
Albright prometia.
Insistiu que essas
medidas não deveriam ser evitadas apenas por causa da oposição russa. “Os
piores elementos da Rússia poderiam sentir-se fortalecidos, convencidos de que
a Europa poderia ser dividida em novas esferas de influência e de que essa
confrontação com o Ocidente valeria a pena”. Em sua opinião, não podiam esperar
que a Rússia se manifestasse a favor da democracia e dos mercados para
construir “uma Europa unida e livre”. Também não pretendia fazer a Rússia
aceitar tal ampliação da OTAN para o Leste.
·
Um erro de proporções
históricas
Madeleine Albrigth
discursou no Senado em 23 de abril de 1997. Dois meses depois, em 26 de junho,
um grupo de 50 importantes políticos e acadêmicos norte-americanos expressou
uma opinião diferente numa carta aberta ao presidente Bill Clinton.
O contra-almirante
Carroll Jr. lembrou em seu artigo do que o general Dwight D. Eisenhower, o
primeiro comandante supremo aliado da OTAN, disse pouco depois de tomar posse
em fevereiro de 1951: “se todas as tropas norte-americanas estacionadas na
Europa para fins de defesa nacional não regressarem aos Estados Unidos dentro
de dez anos, então todo este projeto terá fracassado”.
O contra-almirante
questiona o que Dwight D. Eisenhower pensaria sobre os planos para expandir a
OTAN e sobre a permanência dos EUA na Europa. Cita uma iniciativa de Susan
Eisenhower, neta do general e especialista em segurança, que “reuniu um grupo
impressionante de 50 líderes militares, políticos e acadêmicos” (incluindo Paul
Nitze, Sam Nunn e Robert McNamara) para assinar uma carta aberta ao presidente
Clinton, chamando o plano de ampliação da OTAN de “um erro político de
proporções históricas”.
Na Rússia, diz a
carta, “a expansão fortalecerá a oposição não democrática, reduzirá o número
dos que são a favor de reformas e da cooperação com o Ocidente e levará os
russos a questionarem todos os acordos pós-Guerra Fria”. Na Europa,
acrescentam, a expansão fixará uma nova linha entre os que estão “dentro” e os
que estão “fora”, fomentará a instabilidade e diminuirá a sensação de segurança
dos que não estão incluídos e, em última análise, envolverá os Estados Unidos
na segurança de países com graves problemas de fronteiras e de minorias
nacionais.
Os signatários da
carta propunham outras coisas. Entre elas, a cooperação entre a OTAN e a
Rússia, política, econômica e militarmente. Naturalmente, não foram ouvidos.
Farah Stockman, membro do Conselho Editorial do New York Times,
publicou um artigo em 7 de julho sugerindo algumas mudanças na OTAN. Referia-se
a um crescente mal-estar que sentia na Europa, onde vários países estavam
ficando desconfortáveis com a dependência da organização em relação aos
recursos e interesses de Washington. Citou o caso dos presidentes da Finlândia
e da França, que pediam uma OTAN “mais europeia” e perguntou-se por que essa
dependência persistia.
Uma das razões era
estrutural, histórica. A OTAN foi criada quando a Europa saía de uma guerra
devastadora, que criou enormes hostilidades entre os países europeus. “Alguém
tinha que juntar os gatos”, diz Farah Stockman. Mas há outras razões. Stockman
cita os lucros do complexo militar-industrial norte-americano que, no período
de 2022-23, forneceu 63% do equipamento militar dos países da União Europeia.
Esta dependência é acompanhada por uma dependência política importante, à qual
Washington não pretende renunciar.
·
Um diplomata notável
O contra-almirante
Carroll Jr. lembra de outro personagem notável da diplomacia norte-americana,
George Kennan, embaixador na União Soviética durante alguns meses, em 1952,
durante o governo de Stalin, e na Iugoslávia de Tito, durante a administração
Kennedy, além de outros cargos no Departamento de Estado e de uma carreira
acadêmica destacada.
Para George Kennan, a
ampliação da OTAN seria também “o erro mais desastroso da política
estadunidense na era pós-Guerra Fria. É de esperar que tal decisão… leve a
política externa russa a direções que decididamente não serão de nosso agrado”.
Um diário de quase 700
páginas, publicado por Frank Costigliola em 2014, registrou, ano após ano, de
1916 a 2004, os mais diversos comentários deste personagem extraordinário – que
nasceu em fevereiro de 1904 e morreu aos 101 anos, em março de 2005 – sobre a
política norte-americana, as relações internacionais, as relações familiares e
seus estados de espírito.
Figura-chave na
política de contenção da União Soviética no início da Guerra Fria, na concepção
e implantação do Plano Marshall para a reconstrução da Europa após a Segunda
Guerra Mundial, conselheiro informal de Henry Kissinger quando este foi nomeado
secretário de estado na administração de Richard Nixon, interlocutor dos mais
variados líderes internacionais de seu tempo, considero o diário de George
Kennan uma leitura fascinante.
Esta tarde – diria, em
junho de 1960 – sentei-me com Willy Brandt e sua mulher norueguesa e outras
pessoas num restaurante em Berlim. Conversamos longamente… No mês seguinte, em
julho, a convite do presidente Tito da Iugoslávia, passaram uma hora conversando.
Ele estava interessado em Cuba, diz George Kennan. Alguns anos depois, o
presidente Kennedy ofereceu-lhe a embaixada dos Estados Unidos em Belgrado, que
assumiria também por um curto período.
São famosos na
história diplomática o “Long telegram” enviado por George Kennan de
Moscou para o secretário de estado em fevereiro de 1946 e o artigo “The
sources of Soviet conduct”, publicado na revista Foreign Affairs em julho
de 1947, assinado por “X”. Neles analisava a conduta soviética, suas raízes e
sua importância no cenário internacional, e sugeria uma linha de contenção que
deu origem à Guerra Fria.
·
A lua de mel acabou
Mas isso não foi tudo.
Afastado do Departamento de Estado, suas recomendações posteriores, que
evoluíram para posições um pouco diferentes das iniciais, foram muitas vezes
ignoradas, e algumas dessas ideias estão reunidas em seu diário. “Quando eu
falava, em 1947, por exemplo, contra as políticas pró-soviéticas dos anos da
guerra, havia grandes aplausos e tudo estava bem. Quando eu dizia que devíamos
permanecer fortes diante do poder soviético, todos estavam de acordo”, afirma
George Kennan.
Mas, de repente,
acrescenta, a lua de mel acabou: “quando me atrevi a sugerir que talvez
estruturar nossa força ao redor da bomba de hidrogênio não era a melhor ideia,
houve apenas perplexidade. Quando expressei ceticismo sobre a intenção dos
russos de nos atacarem e sugeri que pensássemos em nossa força militar não
tanto para dissuadir um ataque russo como elemento central de nossa política,
mas antes como um elemento discreto, para uma política orientada para uma
solução pacífica, houve uma grande e duradoura incredulidade”.
George Kennan tinha
então 56 anos. Estávamos em 1960. A administração Eisenhower não lhe tinha
oferecido nenhum cargo diplomático. Kennedy já estava em campanha e George
Kennan regressou de Berlim e Belgrado para preparar uma carta de oito páginas,
com seus pontos de vista sobre a política externa norte-americana, para lhe ser
enviada. Fala das relações com a URSS e com a OTAN. “Quando sugeri”, diz ele no
diário, “que algumas das coisas que os russos faziam era uma reação ao que nós
estávamos fazendo, as pessoas pensaram que eu estava louco. E quando,
finalmente, sugeri que poderíamos estar interessados em negociar um acordo
entre as grandes potências para uma retirada conjunta tanto da Europa como do
Extremo Oriente, houve uma indignação geral”.
George Kennan já não
estava otimista quanto ao rumo da política externa norte-americana. “Em nenhum
momento nos últimos dez anos a política externa dos Estados Unidos se
assemelhou ao que eu pensava que deveria ser e em nenhum momento se baseou numa
interpretação da natureza do poder soviético semelhante à minha”, afirma.
“Agora estamos enveredando por caminhos que me parecem equivocados, que nos
conduzirão a maus resultados, e fomos tão longe nesses caminhos que sou
obrigado a reconhecer que minhas antigas opiniões perderam completamente sua
relevância”.
Considerava ser muito
tarde para falar em retirar os russos da Europa de Leste, uma questão
particularmente sensível nos anos da Guerra Fria. “Eles estão ali para ficar, e
não vejo hipocrisia maior dos políticos ocidentais do que a afirmação piedosa
de que queriam outra coisa”.
Falou também das
negociações sobre o desarmamento. “A corrida aos armamentos nucleares, a cuja
promoção nossa política parece ter sido dedicada com singular intensidade nos
últimos quinze anos, agora avança com tal ímpeto que não há a menor
possibilidade de pará-la; e aqueles que outrora temeram que fossem colocados
obstáculos de qualquer tipo à proliferação de armas nucleares nas mãos de um
número x de governos, podem agora ficar tranquilos. Não haverá tais obstáculos;
quem as quiser poderá obtê-las”.
Em 1975, o
primeiro-ministro polonês Adam Rapacki tinha proposto a criação de uma zona
livre de armas nucleares na Europa Central, o que estava em sintonia com a
proposta de retirada conjunta de George Kennan. Mas, acrescenta, “os esforços
dos poloneses para promover uma discussão sobre a proibição de armas atômicas
na Europa Central foram rejeitados com sucesso”.
Atualmente, a Polônia,
juntamente com os países bálticos, está entre as nações mais comprometidas no
apoio à Ucrânia, tendo sugerido, entre outras coisas, a possibilidade de
derrubar mísseis russos sobre o território ucraniano.
George Kennan
lamentava, nas suas memórias, que tinha insistido, durante todos estes anos,
“que, se agirmos como se pensássemos que a guerra é inevitável, podemos
contribuir para que assim seja. Se tratarmos os líderes soviéticos como se não
tivessem outra intenção que não fosse declarar-nos guerra, eventualmente isso
poderia tornar-se realidade. Se agimos como se o perigo militar fosse o mais
importante, poderíamos acabar tornando isso verdadeiro”.
O incidente do avião
espião U-2, que os Estados Unidos tinham enviado para se assegurarem de que a
URSS não preparava um ataque surpresa contra eles (e que os soviéticos
abateram, sobre seu território, em 1 de maio de 1960), foi o resultado da visão
dos governos ocidentais, que priorizavam o ponto de vista militar em suas
relações com a União Soviética. E, naturalmente, atuavam de acordo com isso.
Uma política que George Kennan considerava totalmente desnecessária,
equivocada. Ironicamente, concluía que era “mais fácil identificar a
personalidade soviética com a conhecida personalidade de Hitler, cujas
intenções eram tão ambiciosas e agressivas que só podíamos esperar que ele
tentasse o pior, do que tentar compreender o que um tipo como Kennan tem a
dizer sobre a Rússia”.
Hoje, a porta-voz do
bloco militar, Farah Dakhlallah, exibe, como um ponto forte, o fato de que a
OTAN tenha mais de 500 mil soldados em estado de alerta máximo para o que
considera ser a ameaça de um conflito direto com a Rússia. Como a OTAN entende
esse “conflito direto” com a Rússia? Faz algum sentido uma política orientada
não para evitá-lo, mas para travar uma guerra como essa?
Como afirmou o
contra-almirante Carroll Jr., a expansão da OTAN para o leste é uma tentativa
de prolongar as divisões da Guerra Fria e de reforçar a aliança contra a
expectativa de que a Rússia procure impor sua hegemonia na Europa Oriental.
Algo que, em todo o caso, parece, política ou militarmente, fora de questão no
cenário atual e tem sido repetidamente rejeitado por Moscou.
O contra-almirante
conclui que, naquele momento (em 1997), podia parecer seguro tratar a Rússia
como um inimigo quando esta não podia impedir a expansão da OTAN. Mas, avisou,
havia o perigo, a longo prazo, de que “uma coalizão antiocidental de linha dura”
se fortalecesse em Moscou, provocando reações contra a OTAN no futuro. Uma
realidade que acabou por explodir, interrompendo-se essa longa marcha da OTAN
para o leste, um movimento sobre o qual – segundo Albright – a Rússia não tinha
direito de veto.
Fonte: A Terra é
Redonda
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