Como fragilidade de Dilma e Bolsonaro abriu
caminho para crise das emendas bilionárias
Parlamentares e
integrantes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deverão
ter uma série de reuniões nesta semana para tentar resolver um assunto que
envolve dezenas de bilhões de reais e, em última instância, poder. As reuniões
deverão definir detalhes do acordo firmado na semana anterior sobre como
funcionarão as emendas parlamentares ao orçamento federal.
Segundo especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil, o cerne do debate é aparentemente simples. De um
lado, deputados e senadores querem manter sua influência sobre aproximadamente
R$ 44 bilhões do orçamento federal deste ano, o que seria equivalente a 20% de
todo o dinheiro livre que o governo pode gastar ou investir como quiser, também
conhecido como despesas discricionárias.
Do outro lado dessa
disputa está o governo Lula. A atual administração quer impedir que essa fatia
cresça ainda mais e ter algum controle sobre o que já está nas mãos dos
parlamentares e, assim, ter mais poder de barganha nas negociações políticas.
Em meio ao embate
entre Legislativo e Executivo, coube ao Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF),
tentar arbitrar a questão. Na semana passada, a Corte suspendeu a execução das
emendas neste ano até que o Congresso Nacional estabeleça
regras mais transparentes sobre os autores das emendas e suas destinações. A
decisão foi uma resposta a uma ação que cobrava mais transparência e
rastreabilidade nas emendas.
A decisão do STF, como
era de se esperar, gerou revolta entre os parlamentares e levou a uma reunião
entre representantes dos três Poderes para que uma solução fosse dada ao
problema.
O acordo, ao final,
não mexeu no volume de recursos nas mãos dos parlamentares, mas estabeleceu
diretrizes para que a autoria das emendas e a destinação dos recursos sejam
mais fáceis de identificar, aumentando as chances de identificar eventuais
irregularidades.
A reunião, realizada
na semana passada, teve a presença de representantes do governo como o ministro
da Casa Civil, Rui Costa, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e os
presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Arthur
Lira (PP-AL).
O encontro entre
alguns dos homens mais poderosos da República e a ameaça de uma "rebelião
parlamentar" chamaram a atenção para o volume de recursos do Orçamento que
hoje está sob o controle do Parlamento, os motivos que levaram a esse crescimento
nos últimos anos e o impacto disso para o país.
A BBC News Brasil
ouviu três especialistas em finanças públicas que elencaram os principais
motivos que levaram ao crescimento vertiginoso do valor das emendas. Dados de
um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apontam que esse valor saiu de R$
3,43 bilhões em 2015 para R$ 35,3 bilhões em 2023. No ano passado, isso foi o
equivalente a 16,6% de todo o dinheiro livre que o governo pode gastar ou
investir.
Segundo os
especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o avanço do Legislativo sobre o
orçamento aconteceu em momentos em que os parlamentares se aproveitaram da
fragilidade política dos ex-presidentes Dilma Rousseff (PT) e Jair Bolsonaro (PL).
De acordo com eles, os
parlamentares aproveitaram momentos de crise do Executivo para mudarem a
legislação e aumentarem suas fatias de recursos públicos por meio das emendas
orçamentárias.
Dois deles argumentam
que essas mudanças criaram uma série de problemas para o governo federal que
vão desde a dificuldade em negociar com o Congresso, a diminuição de recursos
para investimento em programas prioritários, abertura de brechas para a
corrupção e a destinação sem critério de recursos públicos.
Outro aponta que mesmo
que isso prejudique o governo federal, não haveria dados empíricos que provem
que o Poder Executivo seja melhor que o Legislativo na alocação de despesas.
·
Orçamento,
fragilidades e uma disputa por poder
A legislação
brasileira prevê que parte dos recursos do orçamento pode ter a sua destinação
definida pelos parlamentares com o objetivo de atender às suas bases políticas.
O objetivo é
descentralizar a execução do orçamento, muitas vezes concebido longe das
demandas dos redutos eleitorais responsáveis pela eleição dos parlamentares.
Até 2015, havia apenas
três tipos de emendas.
- Individuais: propostas
por deputados ou senadores individualmente
- De bancada: apresentadas
por bancadas estaduais ou regionais no Congresso
- De comissão: são
feitas pelas comissões permanentes do Congresso
- De relator-geral: são
propostas pelo relator-geral da Lei Orçamentária Anual (LOA)
Até então, não havia
regras rígidas sobre o pagamento ou não dessas emendas. Essa
discricionariedade, embora não fosse o único, foi um dos principais
instrumentos utilizados pelo Executivo para exercer influência sobre o
Parlamento ao longo dos anos.
"Os governos
agiam assim: 'Se você me apoia, eu executo suas emendas. Se você não me apoia,
eu não executo'. Isso nem sempre era verdade. Havia exceções, claro, mas era
mais ou menos assim que funcionava", disse à BBC News Brasil o doutor em
Ciência Política e professor da FGV Sérgio Praça.
Em 2015, porém, esse
mecanismo começou a mudar.
Naquele ano, a então
presidente Dilma Rousseff vivia uma crise política e econômica. A economia dava
sinais de forte desaceleração.
Por outro lado, a
Operação Lava Jato se aproximava cada vez mais do núcleo do seu governo e sua
relação com o Congresso estava deteriorada, especialmente na Câmara dos
Deputados, então presidida pelo agora ex-deputado Eduardo Cunha.
Foi neste contexto de
fragilidade política do governo de Dilma Rousseff que Cunha, apoiado por parte
significativa do Parlamento, fez avançar uma proposta de emenda constitucional
(PEC) que obrigava o governo a pagar parte das emendas individuais. São as
chamadas "emendas impositivas".
Além disso, a PEC
também estipulou um valor do orçamento que deveria ser destinado às emendas.
Esse montante era
equivalente a 1,2% da receita corrente líquida (RCL), que são as receitas
tributárias do governo sem contar as transferências constitucionais.
Para o doutor em
Ciência Política e professor da FGV Sérgio Praça, essa mudança enfraqueceu o
Poder Executivo.
"A principal
mudança é que o presidente da República perdeu muito do seu poder político ao
não poder mais pagar as emendas conforme o comportamento político dos
parlamentares [...] Depois disso, o Executivo teve que encontrar outras
maneiras de atrair parlamentares para a sua base", disse Praça à BBC News
Brasil.
Os dados da FGV
mostram o impacto imediato dessa mudança.
Em 2015, o governo
empenhou R$ 3,43 bilhões em emendas parlamentares. No ano seguinte, foram R$
12,22 bilhões.
·
Brecha ampliada
A brecha aberta durante
a gestão de Eduardo Cunha na Câmara foi ampliada nos anos seguintes.
A segunda mudança no
funcionamento das emendas aconteceu em 2019.
Em meio aos atritos do
então presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, o Parlamento aprovou uma PEC
que ampliou a impositividade para as emendas de bancada e determinou em 1% da
RCL o valor a ser gasto com elas.
Naquele mesmo ano, o
Congresso aprovou outra PEC e criou as chamadas "emendas pix", que
são emendas orçamentárias que não precisam estar vinculadas a projetos
específicos e cujos recursos são enviados diretamente a prefeituras ou governos
estaduais.
"Essa proposta
otimiza e democratiza o gasto público. Nós vamos ter o poder de aprovar o
próximo orçamento, as políticas públicas do governo, os investimentos. O
Parlamento recompõe a sua prerrogativa", comemorou o então presidente da
Câmara, Rodrigo Maia (PSDB-RJ).
No ano seguinte, o
Congresso ampliou o volume de recursos destinados às emendas de relator em um
movimento que criou o chamado "Orçamento
Secreto", no qual parlamentares indicavam emendas
orçamentárias ao relator-geral do Orçamento sem que ficasse claro quem eram os
seus autores.
Reportagens apontavam
que parte dessas emendas estavam sendo destinadas à compra de equipamento e a
obras superfaturadas.
Em meio à repercussão
negativa do "Orçamento Secreto", o STF votou pela
inconstitucionalidade das emendas de relator. A expectativa era de que isso
pusesse um freio nas emendas orçamentárias, mas o Congresso reagiu.
Em 2022, o Parlamento
aprovou uma mudança na legislação e aumentou ainda mais a sua fatia no
orçamento destinada às emendas individuais. Em vez dos antigos 1,2% da RCL, o
valor subiu para 2%.
A mudança teve efeitos
praticamente imediato. Em 2022, o valor empenhado pelo governo em emendas foi
de R$ 25,46 bilhões. No ano seguinte, o valor foi de R$ 35,48 bilhões.
·
Ponto fora da curva
Para o pesquisador
associado do Insper Marcos Mendes, o avanço do Parlamento em direção ao
orçamento federal fez com que o Brasil se transformasse num "ponto fora da
curva" em relação aos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Mendes e o consultor
aposentado da Câmara dos Deputados Helio Tonini coletaram dados de nove países
vinculados à instituição. Segundo Mendes, os números mostram que a fatia do
orçamento brasileiro destinada a emendas parlamentares é muito maior que a registrada
em países como a Alemanha, Chile ou os Estados Unidos.
Segundo ele, na média,
esses países destinam apenas 1% do equivalente às despesas discricionárias para
emendas orçamentárias. No Brasil, esse percentual, segundo a FGV, foi de 16,66%
em 2023 e pode chegar a 20% em 2024.
Para ele, isso gera
problemas em série para o país.
"Isso distorce o
investimento em áreas como a saúde. Uma política eficiente precisa que o gasto
seja feito com base em um planejamento [...] Na hora me que você coloca um
parlamentar dizendo para onde vai o recurso, um hospital ou um posto de saúde,
você bagunça todo esse planejamento", disse Mendes à BBC News Brasil.
O pesquisador também
disse acreditar que esse aumento no valor das emendas parlamentares pode abrir
brechas para a corrupção.
"O outro tipo de
problema é uma vulnerabilidade muito grande à corrupção porque, por mais que
você tente dar transparência ao uso dos recursos, sempre haverá uma forma de
viciar licitações e o Tribunal de Contas da União (TCU) não tem condições de fiscalizar
mais de 5,7 mil municípios", disse.
O doutor em Economia e
professor da FGV Manoel Pires admite a vulnerabilidade das emendas à corrupção,
mas, segundo ele, uma das raízes desse avanço sobre recursos públicos seria uma
visão "equivocada" dos parlamentares sobre qual é o papel do Congresso
Nacional em relação ao Orçamento.
"Temos uma
situação paradoxal na qual o Congresso deseja participar do Orçamento, mas está
querendo participar de forma a distorcer o processo orçamentário", disse
Pires à BBC News Brasil.
Segundo ele, a atuação
dos parlamentares brasileiros no processo de formulação e execução do orçamento
não é adequada.
"O Congresso
deveria debater políticas públicas, autorizar ou não os recursos e fiscalizar
os resultados do Executivo. Não é papel do Legislativo dizer qual rua deve ser
asfaltada por meio de emenda", afirmou.
O professor Sérgio
Praça, também da FGV, discorda da avaliação de que parlamentares não deveriam
interferir na execução do orçamento.
"Quem diz e prova
que o Executivo gasta melhor que o Legislativo? Deputados e senadores também
foram eleitos e têm legitimidade. Podemos questionar a proporção de recursos
nas mãos dos parlamentares. Mas foram escolhas institucionais tomadas ao longo
dos anos. Se o Executivo quer mais dinheiro, que negocie com o Congresso ou
faça reformas", disse o professor.
·
O que muda com acordo
no STF?
Os especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o acordo firmado entre Executivo,
Legislativo e Judiciário na semana passada sobre as emendas representou pouca
mudança em relação ao que já está em funcionamento.
De acordo com a nota
divulgada pelo STF após o encontro, foi decidido que:
- As emendas individuais continuam impositivas
- As "emendas pix" continuam impositivas, mas agora
precisam conter a identificação de para qual projeto vão.
Prioritariamente, devem ser destinadas a obras inacabadas
- As emendas de bancada continuam impositivas, mas devem ser
enviadas a "projetos estruturantes" nos Estados ou na região
representada pelos parlamentares
- As emendas de comissão, que não são impositivas, serão
destinadas a projetos de interesse nacional ou regional
- Executivo e Legislativo terão de negociar uma fórmula sobre
o cálculo da proporção de recursos destinados às emendas para evitar que
esse valor aumente em ritmo maior que o volume das despesas
discricionárias
Na avaliação de Sérgio
Praça, a mudança é praticamente nula.
"Na minha
opinião, não muda nada. Há a previsão de que as emendas individuais não sejam
pagas em caso de impedimento técnico, mas isso já existe na prática. O problema
não é a falta de normas. O problema é a aplicação delas", disse o
professor.
Marcos Mendes disse
avaliar de forma semelhante.
"Para o processo
orçamentário não vai ter muita diferença. A reunião botou panos quentes num
conflito institucional, mas acabou legitimando algumas práticas questionáveis
como as emendas pix e a ampliação das emendas de comissão. Isso acabou dando um
atestado de constitucionalidade a essas práticas", afirmou.
Para Mendes, diante
deste cenário, uma mudança no equilíbrio de forças entre Executivo e
Legislativo só aconteceria em um cenário muito específico.
"Somente com uma
crise política é que a gente teria a oportunidade para uma reforma
institucional que conseguiria retirar do Congresso o que me parece ser uma
prerrogativa excessiva sobre o orçamento", disse.
Na avaliação de Manoel
Pires, da mesma forma como as fragilidades de Dilma e Bolsonaro teriam levado
ao avanço do Legislativo sobre o orçamento, um governo forte pode mudar este
cenário.
"Da mesma forma
como uma crise política pode enfraquecer o Executivo, um governo bem avaliado
cria condições para uma mudança institucional que possa reverter o atual
equilíbrio de forças", afirmou.
Fonte: BBC News Brasil
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