Valerio
Arcary: Remediados e pobres
A
apresentação pela bancada evangélica, apoiada pelo bolsonarismo com a
cumplicidade do Centrão, de um projeto que nivela a criminalização, até do
aborto que é considerado lega, após 22 semanas ao homicídio incendiou uma
mobilização nacional de repúdio que foi capaz de realizar as maiores passeatas
de 2024 nas grandes cidades em 2024. Foi espetacular. O movimento feminista
revelou força social de impacto. Foi uma resposta contundente a uma provocação
ultrarreacionária. Mostrou um caminho.
Mas
no marco de uma situação defensiva, e com o apelo de uma bandeira democrática
humanitária. Não deve iludir a esquerda, em especial, a anticapitalista, que um
problema vital permanece intacto. A extrema-direita fraturou a sociedade,
profundamente, porque conquistou uma poderosa base de massas na classe
trabalhadora. Sem reconquistar a maioria, unindo os assalariados “remediados”
com ou sem carteira assinada, com a parcela mais pobre do povo, não será
possível derrotar social e politicamente a corrente neofascista. Essa deveria
ser nossa estratégia: construir uma maioria social entre os explorados e
oprimidos.
Mas
não é a linha do governo Lula. A orientação do governo Lula é tentar repetir,
teimosamente, em 2026, a tática eleitoral de 2022, com a estratégia
econômico-social de 2006: manter a Frente Ampla, se não no primeiro turno, pelo
menos no segundo turno, arrastando os votos da fração burguesa liberal. Será
possível? Sim, mas provavelmente, não será o bastante, e perderemos as
eleições.
Por
quê? Porque o Brasil mudou e a vitória eleitoral de 2022 foi circunstancial, em
grande medida em função do impacto da pandemia. Não é provável que se repita. A
representação política tradicional da classe dominante, desde o fim da
ditadura, sempre teve o apoio da maioria da classe média, que se dividia entre
MDB e suas rupturas e os herdeiros da Arena. Mas conseguiam arrastar o voto da
maioria do “povão”, em função das relações de clientela, nos interiores rurais
e nas extremas-periferias urbanas.
Isso
mudou. Depois dos treze anos de governos de colaboração de classes liderados
pelo PT, ocorreu uma mudança político eleitoral muito progressiva. O impacto de
algumas reformas progressivas – Bolsa-família, aumentos do salário-mínimo,
redução do desemprego, cotas nas universidades, expansão do SUS, entre outras –
garantiram a consolidação do apoio eleitoral de massas entre os mais pobres ao
lulismo. Antes de 2002, a esquerda não vencia eleições entre os mais pobres,
por variadas razões.
Só
que, nos últimos dez anos, outra grande mudança qualitativa aconteceu, desta
vez reacionária: a extrema direita conquistou posições entre as camadas médias
da classe trabalhadora. É uma tragédia, mas uma “divisão” aparta duas parcelas
da classe trabalhadora: os remediados e os pobres. Enquanto uma maioria dos
condenados à miséria “giraram à esquerda”, pelo menos metade dos remediados
“giraram à direita”.
Na
raiz deste processo encontramos transformações sociais profundas. A “crueldade”
histórica é que a desigualdade social entre os que vivem do trabalho
assalariado diminuiu, porque o piso da extrema pobreza subiu, mas a remuneração
das camadas médias de trabalhadores estagnou com viés de queda. A distribuição
funcional da renda entre capital e trabalho somente oscilou, sem sair do lugar.
Nestas
duas parcelas há gente de esquerda e de direita com visões de mundo
irreconciliáveis. Mas uma perigosa ilusão de ótica alimenta conclusões míopes.
Não é correto concluir que a maioria dos remediados, que estudaram mais e vivem
um pouco melhor, ainda têm hoje uma inclinação para a esquerda. Ou que os mais
pobres têm preferência pelo reacionarismo.
Na
verdade, quando consideramos os pesos proporcionais, há mais lealdade ao
lulismo entre os miseráveis, e maior consolidação do reacionarismo entre os
remediados, uma inversão histórica. A miopia é mais grave quando associamos a
preferência religiosa pentecostal na análise. O bolsonarismo é, amplamente,
majoritário entre os evangélicos, mas minoritário entre os mais pobres. A
percepção desta divisão fica mais enviesada ainda quando integramos a fratura
racial na avaliação. A maioria dos remediados não é autodeclarada negra, ou a
maioria dos mais pobres não é branca. Medo e preconceito envenenam a
compreensão deste paradoxo.
O
pentecostalismo da prosperidade continua crescendo. Mas a ideia de que o
reacionarismo religioso se concentra, essencialmente, na parcela mais pobre do
povo não corresponde à realidade. Lula mantém um apoio majoritário entre a
população que ganha até dois salários-mínimos, não só na região Nordeste.
Há
uma correlação entre baixa escolaridade e influência das grandes igrejas
evangélicas, mas não há causalidade entre pobreza e bolsonarismo. O núcleo duro
da força social e eleitoral da extrema direita repousa nos remediados,
assalariados ou “empreendedores”, não entre os despojados. Assim que a renda
permite as famílias de trabalhadores contratam trabalho doméstico, matriculam
os filhos em escolas privadas, compram planos de saúde para seus pais, alugam
por uma semana uma casa na praia para férias, compram automóveis e por aí vai:
imitam o padrão de consumo da classe média proprietária ou de alta escolaridade
em funções executivas.
Não
assimilam somente um estilo de vida, mas as ideias de uma visão de mundo:
repudiam os impostos porque não usam a educação e saúde pública, odeiam o
Estado porque foram envenenados pela Lava Jato de que tudo é corrupção, e
abraçam a perspectiva de que na vida social é o “cada um por si mesmo”. A
estagnação da mobilidade social e a pressão inflacionária nos serviços
empurraram uma parcela dos remediados para o bolsonarismo. Mas, infelizmente, é
ainda mais complicado. A parcela dos remediados que apoia o bolsonarismo tem
ressentimento político contra a esquerda porque acredita que são injustas as
massivas transferências de renda para a pobreza extrema. Abriu-se uma brecha
entre remediados e muito pobres.
Lula
venceu entre as mulheres que são o núcleo duro da corrente pentecostal, mas têm
em média mais escolaridade que os homens. Lula venceu entre os pretos que são a
parcela mais pobre entre os negros, mas têm em média, a mais baixa escolaridade
do povo. Não é possível identificar, portanto, causalidade direta entre o nível
educacional-cultural das pessoas e a preferência política pela extrema direita.
Não
era assim. A esquerda, essencialmente, o PT, foi majoritária entre os trabalhadores
que ganham entre três e cinco salários-mínimos entre 1978, quando se abriu a
fase final da luta contra a ditadura, até pelo menos 2013. Passou a ser
majoritária entre os mais pobres, que ganham até dos salários-mínimos, após o
primeiro mandato de Lula entre 2003 e 2006, garantindo a reeleição.
Dilma
Rousseff foi eleita em 2010 e reeleita, em um segundo turno apertado, em 2014.
Lula venceu por margem, dramaticamente, estreita em 2022. Mas Fernando Haddad
perdeu para Jair Bolsonaro em 2018. Qual foi o deslocamento social decisivo? A
conquista do voto dos miseráveis pela extrema direita, em função do apoio
pentecostal? Ou a perda de influência entre os remediados?
Resumo
da ópera: por que parece tão difícil para a esquerda reconquistar confiança
entre os trabalhadores remediados que votaram no bolsonarismo? Porque o projeto
lulista para vencer em 2026 aposta em “mais do mesmo” e está errado. Não vai
ser possível repetir em 2026 o que deu certo em 2006, vinte anos atrás.
A
fórmula da vitória, em 2006, foi essencialmente:
(a)
redução do desemprego pelo crescimento econômico dinamizado pela exportação de
commodities com preços turbinados pela demanda chinesa;
(b)
controle da inflação pela acumulação de reservas cambiais, e taxas de juros
reais entre as maiores do mundo;
(c)
distribuição de renda através de políticas públicas focadas na extrema-miséria.
Esta
estratégia ignora que o Brasil não é mais o mesmo. Não vai dar certo, “mesmo
que dê certo”. A economia pode crescer, apesar do arcabouço fiscal? Não é o
mais provável, porque sem investimentos públicos parece difícil que o mercado
interno mantenha a dinâmica de 2023, mas ninguém pode saber porque depende das
demandas do mercado mundial. A inflação vai se manter abaixo de 4% ao ano?
Ninguém pode ter certeza, é até improvável, mas não é impossível, se o Banco
Central mantiver as taxas de juros entre as cinco mais elevadas do mundo. O
Bolsa-Família turbinado com piso de R$600,00, algo em torno de US$120,00,
garantirá a lealdade dos mais pobres ao lulismo? Provavelmente, sim. Ainda
assim não será o bastante. Porque esta estratégia não permite recuperar o que a
esquerda perdeu entre os trabalhadores remediados.
Seria
possível outra estratégia? Sim, sempre há alternativas. Mas ela teria que
passar por uma “revolução” na educação pública que torne as escolas atraentes,
não somente porque são gratuitas, mas porque oferecem ensino de qualidade pelo
menos equivalente á média das escolas particulares. Teria que passar por uma
“revolução” no SUS, para que a marcação até de uma simples consulta, não seja
somente para dois ou três meses depois. Teria que passar por uma substancial
redução dos impostos de renda sobre os remediados.
Isso
não será possível sem impostos sob as grandes fortunas, heranças e renda, por
exemplo. Seria indispensável uma corajosa luta política. Mas, também,
ideológica. a defesa da legalização do aborto, que já tem um atraso de meio
século em comparação com os países centrais. A defesa de políticas
antirracistas mais audaciosas como cotas de 50% nos concursos públicos. A
defesa da descriminalização das drogas como resposta ao poder do crime
organizado e à insegurança pública.
Luta
política, inclusive, para garantir a expropriação de fazendeiros que fazem a
expansão da fronteira agropecuária para que queimadas no Cerrado e Amazônia não
se repitam, e catástrofes como as inundações no Rio Grande do Sul não caiam no
esquecimento.
Fonte:
A Terra é Redonda
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