O protesto de operários há 100 anos que
levou Brasil a adotar feriado do Dia do Trabalhador
O período em que o
advogado e político Artur da Silva Bernardes (1875-1955) ocupou o cargo de
presidente do Brasil foi bastante atribulado.
Mobilizações populares
e levantes marcaram aqueles anos 1920, com o início do Movimento Tenentista e a
Revolta dos 18 do Forte de Copacabana tornando conturbada a campanha eleitoral.
Já durante sua gestão,
eclodiram episódios como a Revolta Paulista de 1924, a Revolta de 1924 no Rio
Grande do Sul, a Revolta em Sergipe, a Comuna de Manaus, a Campanha do Paraná,
a Coluna Prestes e a Coluna Relâmpago.
Bernardes presidiu o
país de novembro de 1922 a novembro de 1926. Ele é o responsável pelo decreto,
o mesmo vigente até hoje, que instituiu há 100 anos o feriado nacional do dia
1º de maio no Brasil, o Dia do Trabalhador. O documento, datado de 26 de setembro
de 1924, tem apenas um artigo.
"É considerado
feriado nacional o dia 1 de maio, consagrado à confraternidade universal das
classes operárias e à comemoração dos mártires do trabalho", diz o texto.
A data ecoava o que já
vinha ocorrendo em outros países, em alusão ao movimento grevista ocorrido em
Chicago, nos Estados Unidos, em 1º de maio de 1886 — o episódio terminou em
conflito com a polícia, sendo que houve trabalhadores presos e mortos.
"A relação de
Artur Bernardes com o movimento operário é um tanto ambígua. Por um lado, ele
era a favor de combater os movimentos de protesto com repressão e violência.
Por outro, uma de suas plataformas de campanha foi avançar na criação de uma
legislação que protegesse os interesses dos trabalhadores", diz à BBC News
Brasil o pesquisador Paulo Rezzutti, membro do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo.
Rezzutti pontua que
foi no governo Bernardes que foi promulgada a chamada Lei Elói Chaves, que
determinou a instituição de caixas de pensões e aposentadorias nas ferrovias e,
mais tarde, em outros tipos de empresa.
"É um ancestral
do nosso sistema previdenciário."
Também foi criado no
período o Conselho Nacional do Trabalho, um órgão dedicado a discutir questões
de interesse dos trabalhadores, como a jornada de trabalho e os sistemas de
remuneração.
"Durante seu
governo, foi proibido o trabalho de menores de 12 anos e surgiu a primeira lei
determinando a obrigatoriedade de férias remuneradas", ressalta o
pesquisador.
O historiador Paulo
Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista, classifica como
"sempre tensa e com tímidos ensaios de aproximação, de natureza
assistencial e demagógica, visando à domesticação da revolta e do protesto
operário" a relação entre o governo Bernardes e o proletariado.
"Houve maior
integração entre governo e interesses patronais, sobretudo no controle social
dentro e fora das fábricas, de um lado, pela ostensiva repressão e engajamento
da polícia com os empregadores e, de outro lado, pelo debate sobre a legislação
trabalhista", contextualiza ele, em entrevista à BBC News Brasil.
"Esta ficou em
banho-maria durante a década de 1920, oscilando entre propostas abertamente
repressivas e a manipulação política, como o adiamento na atenção às principais
reivindicações operárias, tais como melhores salários, jornada de trabalho, regulamentação
do trabalho de crianças e de mulheres na indústria."
• Plataforma política não era trabalhista
Pesquisador na
Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie
Tamboré, o historiador Victor Missiato diz à BBC News Brasil que "não
havia nenhum projeto de campanha de Artur Bernardes voltado ao mundo do
trabalho", porque não existia interesse eleitoral na pauta, dado que
"o Brasil daquela época limitava demais o acesso ao voto".
"A preocupação
eleitoral daquela época era muito mais aristocrática do que necessariamente
social, operária. Os políticos tinham um controle muito grande do sistema,
então não havia necessidade de se aproximar da classe operária", afirma o
historiador, lembrando que, ao longo do mandato, essa aproximação se tornou
necessária diante do contexto de tensões sociais, sendo então uma questão de
"sobrevivência política".
Martinez frisa que
"no projeto político oligárquico" vigente "não havia espaço para
a coexistência autônoma e democrática com segmentos populares",
"vistos com preconceito e discriminação de todo tipo".
"O
estabelecimento de uma data para a celebração do trabalho é emblemática do
desejo projetado para o comportamento da mão de obra, tanto por parte dos
empregadores quanto dos governantes: conformismo e disciplina", pontua.
"Esses valores
permanentes deveriam assegurar a intensidade da exploração da força de
trabalho."
Desta forma, o
professor argumenta que a celebração do Dia do Trabalho "atendia ao
patronato, convidando ao congraçamento artificial entre capital e trabalho e o
abafamento dos conflitos de classe".
"Atendia ao
imaginário político das camadas médias urbanas, dedicadas a obter prestígio
profissional, inebriadas com as possibilidades de ascensão social e de alcançar
padrões de vida e de consumo da moderna sociedade industrial", completa
ele.
Mas, ressalta
Martinez, não atendia "aos reclamos do operariado industrial".
"Pois no lugar das condições materiais de vida e de trabalho, promovia uma
mistificação festiva, circunstancial e enganadora dos reais sentidos que
assumiam a divisão social do trabalho e a desigual distribuição da renda gerada
pela industrialização no Brasil", diz ele.
"Artur Bernardes
criou o decreto do Dia do Trabalho em função das pressões que ele sofria, com o
sudeste, principalmente a cidade de São Paulo, em amplo processo de
transformação, com o fortalecimento da classe operária", analisa à BBC
News Brasil o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de
Sociologia de São Paulo e na Escola Superior de Propaganda e Marketing.
"Embora ele não
tenha se esforçado muito para resolver os problemas trabalhistas, ele fez
pequenas concessões [aos operários], inclusive permitindo que as empresas
reduzissem jornadas. Mas nada muito obrigatório, nada que fosse universal no
Brasil", completa o sociólogo.
"As concessões
serviam apenas para manter os privilégios oligarcas. Bernardes era um
aristocrata paulistano."
As tensões do período
eram tantas que o governo de Bernardes ocorreu sob declarado estado de sítio.
"Ele lidou com os
movimentos operários em um jogo de aproximação e distanciamento", diz
Missiato.
"Por um lado,
institucionalizou leis em relação ao mundo do trabalho, por outro, foi
repressivo. Vejo como uma via de mão-dupla. Não era um governo popular,
operário, mas contava com o apoio do estado de São Paulo que, naquele momento,
já se destacava como o estado com maior operariado do Brasil. Isso fez com que
a base de Bernardes girasse em torno desse universo."
Para o historiador
Marco Antonio Villa, professor na Universidade Federal de São Carlos e autor
de, entre outros livros, O Nascimento da República no Brasil, Bernardes foi
"um presidente colocado contra a parede, com enorme dificuldade de
negociação com a sociedade civil e os partidos".
"Seu governo foi
marcado pela tensão política e suspensão de garantias constitucionais. Foi uma
espécie de sinal de que aquela estrutura da República Velha já tinha dado o que
poderia ter dado", comenta ele, à BBC News Brasil.
• Contexto histórico
Mas este cenário do
Brasil dos anos 1920 era consequência das movimentações das décadas anteriores,
naquilo que se convencionou chamar de Primeira República, ou seja, de 1889 a
1930. Nessa época, conforme explica, em e-mail à BBC News Brasil, a historiadora
Isabel Bilhão, professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, "a
organização dos trabalhadores [no país] foi marcada pelo surgimento de
distintas correntes de militância".
Anarquistas,
socialistas, comunistas e sindicalistas reformistas, dentre os quais os
positivistas e os cooperativistas, eram os mais atuantes.
"Esses últimos
buscavam a obtenção de direitos sociais, sem questionamentos do sistema
político", afirma Bilhão.
Já os socialistas e, a
partir de 1922, os comunistas propunham a conquista de direitos sociais aliada
a direitos políticos, e defendiam a participação dos trabalhadores no processo
eleitoral. Os anarquistas, por sua vez, negavam-se a participar da política
institucional, enxergando na ação direta, com greves, boicotes e sabotagens, a
via de pressão para obter conquistas sociais e trabalhistas.
De acordo com a
historiadora, essas diferenças também se manifestavam na forma de lidar com o
1º de maio.
"As mais antigas
referências jornalísticas apontam para comemorações da data no Brasil, a partir
de 1891, no Rio de Janeiro, por iniciativa de militantes socialistas. Na época,
a exemplo da versão social-democrata internacional, as manifestações congregavam,
sem maiores problemas, o caráter festivo e de protesto, apresentando o dia como
um grande feriado da confraternização universal", comenta.
A data escolhida era o
14 de julho, em alusão à tomada da Bastilha, na França — o marco da Revolução
Francesa, ocorrida em 1789.
"Alguns anos mais
tarde, com o crescimento da influência anarquista no movimento operário
nacional, o 1º de maio passou a ser apresentado como o dia de recordar o
enforcamento dos operários Engels, Spies, Fischer, Parsons e Lingg, ocorrido na
cidade de Chicago", pontua.
Essa vertente defendia
que a o dia deveria ser encarado não como festivo, mas sim com uma pauta de
protesto, com greve e luto pelos "mártires de Chicago".
Bilhão ressalta que na
falta de consenso, governo, empresariado e até a Igreja Católica disputavam a
primazia dos discursos — e da definição da data.
"Assim, entre
meetings de protestos, cortejos ao som de bandas musicais pelas ruas das
cidades, almoços festivos oferecidos nas chácaras dos patrões, missas ou
solenidades oficiais, o 1º de Maio passou por transformações tanto em seu
significado quanto em suas formas de representação. E essas contribuíram para
forjar concepções no imaginário social e na memória operária, servindo não
raras vezes como emblema das condutas e atitudes esperadas dos
trabalhadores", acrescenta a professora.
O contexto trazia
demandas proletárias urgentes. Nas principais cidades do país as jornadas se
estendiam de 12 a 16 horas por dia, analfabetos e estrangeiros não podiam
votar. Diante disso e das pressões todas, o decreto de Bernardes parecia querer
apaziguar as tensões.
Isto fica claro na
abertura da sessão legislativa de 1925, conforme pesquisou Bilhão, quando o
presidente Bernardes prestou contas dos atos do Executivo durante o ano
anterior. Em seu pronunciamento, ele disse que o decreto legislativo que criou
o feriado de 1º de Maio tinha uma razão um tanto matreira.
"A significação
que esta data passou a ter […] consagrando-se não mais a protestos subversivos,
mas à glorificação do trabalho ordeiro e útil, justifica plenamente o nosso
ato", declarou o presidente.
Para a historiadora,
"Bernardes justificou a transformação da data em feriado devido às
transformações pelas quais ela teria passado, pois este não seria mais um dia
de greves e de protestos obreiros e sim dia de glorificação do trabalho, ou
seja, estabeleceu-se como mote comemorativo a ação de trabalhar e produzir de
forma ordeira e útil para o progresso do país".
Contudo, ao longo
daquela década as celebrações foram tímidas. Durante a gestão de Bernardes não
houve comemorações nem de sindicatos nem de militantes. No governo seguinte, de
Washington Luís (1869-1957), atos do tipo ocorreram. Nos anos 1930, Getúlio Vargas
(1882-1954) transformou o 1º de Maio em uma festividade importante — seu
governo apropriou-se da data, fazendo dela a ocasião perfeita para a divulgação
de novas leis trabalhistas e toda a sorte de benesses ao trabalhador.
• Aqui e lá
Se no país o governo
de Bernardes havia sido precedido por uma onda de greves massivas, sobretudo de
1917 a 1919, "o movimento operário entrou em refluxo", como define
Martinez.
"Houve a derrota
política do ideário anarquista e do anarco-sindicalismo. Ambos tinham na greve
geral e na insurreição dos trabalhadores a estratégia de luta social, de
conquista do poder político e de extinção do Estado", explica.
"Nos anos
seguintes, entre 1921 e 1927, houve severa e implacável repressão e perseguição
ao movimento operário, de lideranças sindicais, anarquistas, socialistas e
comunistas e mesmo liberais", diz o historiador.
A criação do Partido
Comunista no Brasil, em 1922, sofreu uma rápida censura, sendo combatida e
condenada.
"As organizações
operárias, como jornais, sindicatos, associações e clubes, foram vigiadas,
controladas e proibidas", acrescenta. O professor argumenta que as
questões sociais eram vistas como casos de polícia naquele período.
É preciso olhar para o
contexto internacional também para entender o que se passava no Brasil.
"A Revolução
Russa, ocorrida em 1917, e a inquietação operária na Europa, sob os escombros
da 1ª Guerra, estimularam a formação de partidos comunistas que, sob inspiração
da Internacional Comunistas, da liderança e da mobilização de massas pelos partidos
social-democratas, além das transformações trazidas pela experiência da Rússia
soviética, colocaram o 'governo dos trabalhadores' na pauta da política",
ressalta Martinez.
Em 1919 foi fundada a
Organização Internacional do Trabalho (OIT). "A melhoria das condições de
vida e de trabalho urbano e industrial tornou-se objeto de atenção na
reorganização da economia e das relações internacionais no pós-guerra",
afirma o professor.
De qualquer forma, era
um momento histórico em que o operariado se transformava em um segmento cada
vez mais importante para a sociedade — e, portanto, com peso político.
"Os governos
brasileiros ao longo da década de 1920 não poderiam mais ignorar a presença
operária na cena política, tanto devido à ampliação do número de trabalhadores
urbanos e industriais quanto pela ampliação de suas formas de
organização", diz Bilhão.
"Além disso,
devem-se considerar também as pressões internacionais para a elaboração de
plataformas que levassem em consideração a ampliação da legislação
trabalhista."
A criação da OIT
passou a prever sanções aos países que não adotassem condições mais dignas de
trabalho.
"Como signatário,
o governo brasileiro comprometeu-se internacionalmente com a melhoria das
condições sociais e com o estabelecimento da legislação trabalhista",
lembra Bilhão.
Fonte: BBC News Brasil
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