Controle de abrigos e desinteresse do PCC:
quais são e como atuam as facções do RS?
No auge da crise
humanitária causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, abrigos emergenciais
foram erguidos nas cidades de Guaíba e Canoas, ambas na região metropolitana da
capital gaúcha e chegaram a alojar cerca de 5 mil pessoas.
Mas entre as famílias
que deixaram suas casas e histórias para trás em busca de socorro também
haveria membros de facções criminosas.
Pessoas que trabalham
na linha de frente de abrigos na região metropolitana de Porto Alegre relataram
à BBC News Brasil que facções chegaram a fazer divisões físicas nos abrigos e a
escolher locais estratégicos para alocar seus membros.
“Eles ainda ordenaram
quais salas pertenciam a determinados grupos e pessoas", disse um dos
envolvidos nos trabalhos nos abrigos, que pediu para não ser identificado.
"Foi mencionado
por membros de facções que todos os alojamentos seriam divididos em galerias,
como nos presídios. Eles inclusive tentavam controlar como seria o recebimento
de comida.”
Esse comportamento de
criminosos nos abrigos reflete o poder das facções nas comunidades, diz o
sociólogo Rodrigo Azevedo, professor de direito na Pontifícia Universidade
Católica (PUC-RS) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Esses grupos dominam
esses territórios no cotidiano da vida em situação normal e, evidentemente, vão
procurar manter esse domínio nessa situação de abrigamento", afirma
Azevedo.
"Por isso, é
importante que haja a presença do poder público, da polícia.”
No entanto, o domínio
das facções em abrigos, que incluía o controle de parte da distribuição das
doações, durou poucos dias.
Segundo fontes ouvidas
pela reportagem, no terceiro dia de crise, a primeira ação foi redistribuir os
abrigados em alojamentos menores.
Em vez de um local
abrigar 5 mil pessoas de uma vez, os novos imóveis tinham um limite de ocupação
para até 120.
A estratégia foi
espalhar as pessoas para descentralizar o poder das facções.
Ao mesmo tempo, foram
registrados 65 boletins de ocorrência por crimes relacionados às enchentes no
Sul. Na maioria dos casos, furtos e roubos.
O secretário da
Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Sandro Caron, reconhece em entrevista à
BBC News Brasil que criminosos tiveram mais facilidade para atuar nos primeiros
dias da tragédia, porque as forças de segurança estavam empenhadas nos resgates.
“Nos três primeiros
dias, a gente teve que escolher. A gente teve que escolher salvar vidas”, diz
Caron.
Um relatório do
Ministério da Justiça apontou que o Rio Grande do Sul tem 15 facções criminosas
atuantes, mas apenas duas delas possuem abrangência Estadual: Bala na Cara e Os
Manos.
Azevedo, diz, no
entanto, que o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC),
consideradas as maiores facções do país, não têm interesse em penetrar no
Estado.
“Isso ocorre porque o
Sul não é uma rota de escoamento da droga produzida na América do Sul para a
Europa", explica o professor.
"Então, para
eles, disputar o poder na região Norte e Nordeste é mais interessante, porque
ali é um corredor de passagem.”
Azevedo diz, no
entanto, que mesmo não estando presentes no Rio Grande do Sul, o CV e o PCC
ainda fazem alguns negócios com criminosos da região.
Além dos furtos a
residências, foram registrados saques maiores, principalmente em lojas próximas
ao aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Os principais alvos foram lojas de
aparelhos eletrônicos, como celulares, e uma de pneus.
Especialistas apontam
que esses crimes têm indícios de terem sido planejados por facções criminosas
para recuperar parte do prejuízo que elas próprias sofreram com as enchentes.
Caron, porém, diz que
essas ações foram cometidas por quadrilhas especializadas não ligadas às
organizações.
“A gente trabalha com
o que temos de concreto. Nesse caso, não é uma organização criminosa, mas um
grupo especializado", afirma o secretário.
"Em um ou outro
caso mais elaborado, o que nós temos são quadrilhas especializadas em crime
contra o patrimônio, como você tem bandos especializados em furto de
veículos."
• Violência nos abrigos
A violência e a
criminalidade nos abrigos logo se tornaram uma preocupação em meio à crise.
Pessoas abrigadas
ouvidas pela BBC News Brasil, principalmente mulheres, relataram medo de abusos
e desconforto por conviver com tantos desconhecidos no mesmo ambiente.
A partir dos registros
de crimes, o poder público passou a inaugurar alojamentos exclusivos para
mulheres e crianças.
Sandro Caron diz que
54 pessoas foram presas dentro de abrigos por crimes sexuais, agressões, casos
de violência doméstica e furto.
“Na imensa maioria dos
casos de abuso, o autor do crime era familiar da vítima, e os abusos já
ocorriam anteriormente. Só que, quando aconteceram no abrigo, a polícia estava
presente, e eles foram presos”, afirma o secretário.
"É um tema muito
sensível que as pessoas estão muito preocupadas nos últimos dias em relação aos
abrigos. Porque você pega centenas de pessoas de perfis diferentes, de
pensamentos diferentes, que não se conhecem e coloca no mesmo lugar."
Um vídeo que circulou
nas redes sociais mostra um casal sendo hostilizado e expulso de um abrigo após
supostamente terem feito sexo próximo a crianças.
Há ainda relatos de
que pessoas abrigadas levaram objetos furtados para guardar dentro de abrigos.
No auge da crise,
algumas pessoas que estavam ilhadas em áreas alagadas e alojadas em abrigos
disseram à reportagem ter ficado em casa por medo de terem seus objetos que
restaram furtados.
Também afirmaram ter
sido ameaçadas por membros de organizações criminosas a não deixarem suas
casas.
O delegado Fernando
Sodré, chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, diz à BBC News Brasil não
ter ouvido relatos de que essas ameaças teriam acontecido.
“Isso é lenda urbana
porque não tem nada, absolutamente nada, nesse sentido", afirma Sodré.
O secretário da
Segurança Pública diz ter ouvido de muitas pessoas que os índices criminais
aumentariam nas primeiras semanas após o início da crise.
“Isso não aconteceu.
Nós tivemos nos primeiros 20 dias de maio, uma redução de 44% nas ocorrências
de homicídios quando comparado ao mesmo período do ano passado. Tivemos uma
redução de 60% de roubos”, afirma.
• Os Manos e Bala na Cara
Segundo Rodrigo
Azevedo, a primeira facção que surgiu no sistema prisional da capital gaúcha
foi o grupo Os Manos, na década de 1980. Eles logo ganharam força e cresceram
para cidades da região, como Canoas e Guaíba.
Ele conta que, no
início dos anos 2010, foi criada a facção Bala na Cara, que passou a ter uma
presença muito forte na região metropolitana de Porto Alegre.
Ela ficou conhecida
pela forma como cometia seus crimes e matava seus desafetos, tudo com muita
crueldade e filmado para divulgação.
Incomodados com
tamanho crescimento, grupos menores se uniram e criaram em 2017 os Anti Bala. A
intenção era eliminar os membros do Bala na Cara.
“O ápice desses
conflitos foi em 2017, quando a taxa de homicídios subiu muito aqui no Estado,
especialmente em Porto Alegre. Mas de lá para cá houve uma acomodação. Os Bala
na Cara mantiveram seus territórios. Os outros grupos também conseguiram se
estruturar de alguma forma”, diz Azevedo.
“Os Manos não entraram
muito nessa briga direta porque preferiram ficar com esse domínio na Grande
Porto Alegre e também com ramificações para o interior do Estado.”
• Queda e reestruturação das facções
A tragédia que alagou
centenas de cidades no Rio Grande do Sul não escolheu seus alvos e também
causou um forte golpe nas facções criminosas, segundo os especialistas ouvidos
pela BBC.
Duas fontes relataram
à reportagem ter conhecimento que locais onde eram armazenados armamentos e
drogas dessas facções foram atingidos pelas enchentes e causaram grandes
prejuízos para o crime.
O secretário da
Segurança Pública do Estado diz que a polícia também aproveitou a situação para
fazer operações, principalmente em Porto Alegre.
“Nessas tratativas dos
criminosos de removerem armamentos e drogas, fizemos várias prisões e
apreensões. A gente tem um trabalho permanentemente de inteligência e estamos
sempre alguns passos à frente”, diz Caron.
Após as perdas do
crime organizado, os especialistas preveem uma onda de roubos e furtos para
compensar o prejuízo causado pelas enchentes.
Azevedo acredita que
alguns dos crimes já registrados durante a crise também podem ter ligação com
facções criminosas.
Em regiões mais
pobres, diz ele, o crime organizado não tem tanto dinheiro e deve executar
ações menores, principalmente de roubo e furto, para compensar o que perdeu.
“Isso pode explicar um
pouco esses delitos de menor proporção estarem vinculados de alguma forma a
esses grupos”, afirma.
Caron afirma que a
polícia também avalia que isso pode ocorrer e diz que está seguindo o exemplo
de outros países que viveram tragédias semelhantes.
A intenção é sufocar
as facções para evitar uma escalada de crimes, principalmente contra o
patrimônio, após as enchentes.
“Toda vez que tu vê
algum tipo de problema de redução de empregos, isso impacta na redução da
economia. Tendo em conta isso, é claro que a gente vai ter um foco nos crimes
contra o patrimônio”, diz o secretário.
"Em áreas
atingidas que a inteligência identificar um aumento desses crimes, vamos
reforçar nosso policiamento."
O secretário também
diz que dará uma atenção especial às "cidades temporárias" para onde
devem ser levadas provisoriamente parte das pessoas atingidas pelos
alagamentos.
Serão construídos
nestas áreas instalações provisórias para que os desabrigados fiquem ali até se
restabelecer.
A preocupação é de que
esses novos territórios, por serem em áreas mais afastadas, possam ter uma
presença maior do crime organizado e um aumento da criminalidade.
Caron ressalta que
suspendeu férias e convocou reservistas durante a crise. Ele assegura que a
polícia atuará com força máxima, e pelo tempo necessário, para conter os crimes
no Rio Grande do Sul.
“Posso garantir que
haverá tolerância zero.”
Fonte: BBC News Brasil
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