sexta-feira, 26 de abril de 2024

Teologias de rama num mundo caótico!

“Cuidado com essas teologias de rama”, nos dizia um professor de teologia ainda na década de 70. Ele nos alertava sobre essas teologias que fundamentam os movimentos católicos que costumam aparecer vez em quando. Referia-se a teologias desorganizadas, baseadas em textos bíblicos isolados, sem uma hermenêutica segura, sem exegese, com espiritualidades delirantes, distantes dos empobrecidos, mas que movimentam grupos por determinado tempo e depois desaparecem.

Hoje, quando vemos tantas teologias como a da Prosperidade, ou do Domínio, ou do Arrebatamento, me recordo das teologias de rama. Agora elas não estão somente nos grupos católicos fundamentalistas, mas também nos meios evangélicos. É até interessante ver alguns vídeos com pastores subindo literalmente em pilastras, ou no altar, ou dando bicuda na cara do cão, ou dançando um forró amuado com sapato de fogo. Primeiro, se fosse num terreiro de candomblé, iriam dizer que era uma possessão demoníaca. Como acontece em templos evangélicos, é obra do Espírito Santo. A mesma realidade nesses grupos católicos oracionais que desmaiam diante do Santíssimo, falam de forma exaltada, claramente momentos de transe religioso que cada um atribui a quem quiser conforme seus interesses.

A teologia do Domínio é uma dessas teologias de rama, mas que não pode ser desprezada. Ela visa ocupar os cargos no Executivo, no Judiciário e Legislativo, em todos os níveis. Busca controlar a educação, a cultura e a comunicação. Ocupa os conselhos e, sobretudo, as redes sociais. Não tem vergonha e nem escrúpulo em buscar o poder e impor ao restante da sociedade seu viés autoritário. É a ideologia perfeita da extrema direita no acesso ao controle da consciência dos mais frágeis e necessitados.

O capital é inteligente, ninguém pode negar. Você não vai ver um farialimer subindo pelas paredes num templo evangélico, ou num grupo exaltado de católicos, mas vai ver pastores e padres convencendo suas comunidades que essa ideologia é vontade de Deus. Enfim, onde a ideologia doutrinal da extrema direita não pode chegar, a religião pode. Como dizia a inteligência dos Estados Unidos ainda na era Reagan: “religião se combate com religião, não com política”. Enfim, essa religião alimenta a extrema-direita nos meios mais pobres, o que a ideologia neoliberal não sabe fazer e não sabe como chegar.

Como já disse o Papa Francisco, “a direita é centrípeta”, isto é, gira ao redor de si mesma e não enxerga o resto do mundo. Num mundo caótico e cada vez mais líquido e inseguro, essas teologias têm muito espaço para crescer e influenciar as pessoas que buscam alguma forma de segurança. Quando uma se esgotar, surge outra no seu lugar. E sempre haverá fiéis para segui-las! Mas, é útil ajudar o povo a pensar um pouco sobre essa realidade!

 

       Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso, gera ilusão. Por frei Gilvander Moreira

 

Quem lê e interpreta textos bíblicos de forma fundamentalista lê e entende a Bíblia ao pé da letra, do jeito que está escrito e não pode ser levado em conta a época, a forma e o gênero literário, nem o contexto, a finalidade para o qual foi escrito o texto, seu significado e simbolismo. O desconhecimento das formas e dos gêneros literários pode levar o/a leitor/a a ter uma compreensão errônea dos textos bíblicos e a não apreender a verdadeira mensagem contida, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento bíblico.

Ensinamentos nos foram transmitidos por meio dos escritos conhecidos como: históricos, proféticos, poéticos, sapienciais, legislativos e apocalípticos. Mas, é preciso que o/a leitor/a busque o significado que os/as autores/as, em determinada circunstância, na sua cultura, com as formas e os gêneros literários em uso na época, queriam expressar e, de fato, se expressaram. Desconsiderar as formas e os gêneros literários leva à projeção das nossas concepções preconcebidas sobre os textos bíblicos, o que resulta em leitura fundamentalista.  Quem, por exemplo, desconsidera os gêneros literários, ao ler o Evangelho de Marcos, onde diz “o véu do templo se rompeu” (Mc 15,38) entende apenas como um pano se rasgando. Ou ao ler Apocalipse 21,3 onde diz: “Deus armou sua tenda entre nós”, conclui apenas que Deus como pessoa está entre nós. Entretanto, considerando os gêneros literários, podemos dizer que pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos poderes político, econômico e religioso opressores, o “véu do templo se rompeu” e não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano, Deus habita no ser humano e em todos os seres vivos. “Deus armou sua tenda entre nós”, diz o livro do Apocalipse da Bíblia (Ap 21,3). Deus não apenas está entre nós, mas está em nós, no próximo e primordialmente no outro que é oprimido e explorado. O evangelista Marcos e o autor do Apocalipse queriam superar todos os dualismos e separações que a cultura ocidental inoculou nas pessoas com o objetivo de retirar a dimensão de sacralidade de cada pessoa e abrir espaço para violentar o ser humano, após retirar dele a dimensão divina.

O Documento da Pontifícia Comissão Bíblica Interpretação da Bíblia na Igreja faz uma análise de muitos métodos de interpretação bíblica. Entretanto, o único método rechaçado com veemência é a leitura fundamentalista da Bíblia.  Segundo esse Documento da Igreja, a leitura fundamentalista é perigosa, porque sufoca e inibe o pensamento. “A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram propostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas, ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses problemas. A leitura fundamentalista convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ela coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde, inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica, com a substância divina dessa mensagem.”

Quando uma pessoa diz: “a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas colocada em prática”, inconscientemente, essa pessoa está fazendo leitura fundamentalista. É verdade que a Palavra de Deus não está só contida na Bíblia, mas ela é uma das formas da revelação de Deus para o povo oprimido e escravizado que acredita no Deus da vida. A palavra de Deus está na Bíblia, mas também está presente na vida, na criação, no outro, prioritariamente a partir do outro que é oprimido e injustiçado, e, se manifesta plenamente no seu Filho Jesus, cujos ensinamentos e práxis estão na Bíblia. Como não são sensatas as interpretações aleatórias, ingênuas e nem fundamentalistas, necessário se faz compreender os textos bíblicos em uma leitura libertadora.

A leitura libertadora dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro, dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e multifacetária. A leitura libertadora leva em conta as formas e os gêneros literários, o contexto histórico, social econômico, cultural e religioso da época em que nasceram os escritos bíblicos. Daí a importância do estudo da Bíblia, também nas suas Formas e Gêneros Literários. Para uma boa compreensão da Bíblia é fundamental reconhecer e identificar os gêneros literários dos textos bíblicos.

Pessoas habituadas ao estudo da Bíblia entendem que as formas e os gêneros literários são maneiras de comunicação oral e escrita, usados pelos autores e autoras da Bíblia, para expressar o seu pensamento e a sua mensagem. A escolha da forma ou do gênero que os autores e autoras da Bíblia usaram dependeu de vários fatores, entre os quais, o conteúdo, o ambiente do/a autor/a, aquilo que ele/ela deseja comunicar, o povo destinatário que recebeu o anúncio. Deus quis se comunicar com o ser humano para revelar a sua mensagem, no seu imenso amor pelas suas criaturas. O/a autor/a muitas vezes se serviu de livros, textos que nasceram fora da história dos povos da Bíblia, mas foram introduzidos nela, como o livro de Jó, a narrativa do dilúvio… Outros sofreram influências de diferentes povos e culturas, com os quais conviviam e dos povos circunvizinhos, tais como, os sumério-acádicos, cananeus, egípcios, helenistas, romanos, amorreus, hititas, entre outros.

Esses povos tinham suas divindades, a quem dedicavam hinos e salmos na forma épico-mítica, por meio dos quais, descreviam também suas características, confiavam suas batalhas e atribuíam suas conquistas. Muitos desses textos influenciaram os escritos bíblicos, como, por exemplo, o Salmo 104 teve sua inspiração no hino dedicado à divindade Aton, deus egípcio. As narrativas da criação em Gênesis 1,1-2,4a e 2,4b-7 sofreram influência do hino a Enuma Elish, mito babilônico da criação; a narrativa do dilúvio bíblico, do poema de Gilgamesh, mitos existentes na cultura acádica e babilônica que serviram de inspiração para os povos da Bíblia. No livro de Gênesis, os relatos da Criação estão em uma linguagem simbólica e podem ser considerados contramitos, isto é, mitos usados para “explicar” as origens e responder a mitos mistificantes dos povos vizinhos. Mito não é algo que não existe. Trata-se de uma tentativa de explicar o difícil de ser explicado. Por isso usa uma linguagem simbólica.

“No início (bereshit, em hebraico) criou Deus …” (Gen 1,1a). Assim abre-se a Bíblia. Normalmente se entende a primeira palavra da Bíblia de forma temporal, cronológica, como se tivesse tido um início a partir do nada e em tal data. Essa interpretação tem alimentado um conflito artificial entre Criação e Evolução. Darwin tem sido satanizado, caluniado e incompreendido pelos adeptos da “teoria da criação”. A questão não é criação ou evolução, mas criação na evolução. A palavra bereshit (= no início) é difícil de ser traduzida, pois é “início, começo, cabeça”, mas não no sentido temporal, cronológico. Trata-se de “início, começo” no sentido qualitativo, no mais profundo das relações da teia da vida. Temos que trazer à mente a distinção que os gregos fazem na ideia de tempo: chronos (tempo físico quantitativo, sucessão dos fatos) e kairos (tempo qualitativo, o divino tocando o humano, a graça contagiando tudo). O/a autor/a bíblico não quis estabelecer uma oposição entre Criação e Evolução, pois falou de “início” no sentido de algo profundamente qualificado tocando a evolução. A criação se dá na evolução. O dedo de Deus toca tudo. Tudo está permeado e perpassado pela dimensão divina. Evolução é a criação continuada, continuamente acontecendo.

 

       Reflexões sobre as causas da crise sistêmica. Por Leonardo Boff

 

Seguramente vigora um complexo de causas que subjazem à atual crise sistêmica. Ela tomou todo o planeta e nos colocou numa encruzilhada: ou seguimos o caminho inaugurado pela modernidade a partir dos séculos XVII/ XVIII com o advento do espírito científico que modificou a face da Terra e trouxe-nos incontáveis benefícios para a vida. Mas ao mesmo tempo deu-se a si mesma os meios de sua autodestruição. Vamos mais longe: a forma como decidimos habitar o planeta e organizar nossas sociedades com custos altíssimos para os ecossistemas e para as relações sociais, brutalmente desiguais, nos fizeram tocar nos limites da Terra.

A seguir esse caminho,um abismo aterrador se apresenta à nossa frente. A Terra viva pode não nos querer mais sobre sua superfície por sermos demasiadamente violentos e destrutivos. Podemos sucumbir pelo antropoceno, pelo necreceno, pelo virusceno e por fim pelo piroceno, ocasionados por nós mesmo e também pela reação da própria Terra viva, ferida e vitalmente enfraquecida, que reage desta forma.

Ou então, num momento de aguda consciência face ao possível desaparecimento da espécie, o ser humano dê um salto quântico em seu nível de consciência, cai em si, dá-se conta de que pode realmente chegar ao fim de sua aventura planetária e mudar, forçosamente e definir um novo rumo.

Certamente não se fará sem uma fenomenal crise que pode levar porções significativas da humanidade, começando pelos mais vulneráveis, mas não poupando nem os mais apetrechados. Assim ocorreu em tempos pré-históricos do planeta, nos quais até 70% da carga biótica desapareceu definitivamente.

Qual será o rumo? Estimo que nem sábios, nem cientistas nem mestres espirituais saibam apontar a direção. A humanidade, agora unida pelo medo e pelo pavor, mais do que pelo amor ao futuro, perceberá que poderá ter chegado ao fim do caminho andado. Olhará ao redor e descobrirá uma senda a ser percorrida e construída pelo andar de todos. “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” nos ensinou um poeta desesperado espanhol, fugido da perseguição franquista. De dentro de nossa essência humana teremos que tirar as inspirações e sonhos que nos consolidam o novo caminho.

Vale a frase de Albert Einstein: “a ideia que criou a crise atual não pode ser a mesma que nos vai sair dela”. Temos que sonhar, criar, projetar utopias viáveis e abrir caminhos novos. As ciências da vida nos confirmaram que somos seres de amor, de solidariedade, de cuidado, apesar de uma sombra sempre nos acompanhar e que devemos colocá-la sob vigilância.

Mas antes nos interroguemos: por que chegamos a este ponto crítico global? Aqui mais que um saber científico socorre-nos um pensamento filosofante. Entre outras causas, considero duas fundamentais: a erosão da ética e a asfixia da espiritualidade.

Recuperemos o sentido clássico de Ethos dos gregos, pois nos iluminam ainda hoje. Ethos escrito em maiúsculo significa “a casa humana”. Vale dizer, separamos uma parte da natureza, a trabalhamos de forma a ser o espaço de viver bem. A outra forma é o ethos em minúsculo que são as formas como organizamos a casa para que nos sintamos bem nela e possamos dar hospitalidade a quem nos visitar: enfeitar a sala, colocar corretamente as mesas, cuidar da cozinha, alimentar o fogo sempre aceso, manter a dispensa abastecida e os quartos decentemente arrumados. São as virtudes éticas que dão concreção ao Ethos. Mas não só, pertence ao Ethos zelar pelo entorno da casa, do jardim, de estátuas de divindades e de boa relação com os vizinhos. Só assim o Ethos (viver bem) ganha forma concreta (ethos).

Hoje o Ethos é a Casa Comum, o planeta Terra. Por séculos alimentou a humanidade. Mas com o advento da ciência e da técnica temos explorados de forma ilimitada e irresponsável seus bens e serviços de forma que hoje ultrapassamos sua capacidade suporte (the earth overshoot), a assim chamada Sobrecarga da Terra. Ela é finita e não suporta o projeto da modernidade de um crescimento infinito.

O Ethos (viver bem na casa) e o ethos, as formas de organizá-la desestruturaram tudo o que é importante para viver bem: poluímos as águas, sobrecarregamos os alimentos com agrotóxicos, envenenamos os solos, contaminamos dos ares a ponto de afetar o sistema da vida natural e da vida humana. Assistimos a erosão geral do Ethos, do ethos e da ética. A Casa Comum deixa de ser comum, e é apropriada por elites que detém terras, poder, dinheiro e a condução da política do mundo. Elas se transformaram no Satã da Terra.

Tão grave quanto à erosão do Ethos, do ethos e da ética em geral é a asfixia da espiritualidade humana. Deixemos claro: espiritualidade não é sinônimo de religiosidade, embora a religiosidade possa potenciar a espiritualidade. A espiritualidade nasce de outra fonte: do profundo do ser humano. A espiritualidade é parte essencial do ser humano, como a corporalidade, a psiqué, a inteligência, a vontade e a afetividade.

Neurolinguistas, os novos biólogos e eminentes cosmólogos como Brian Swimm, Bohm e outros reconhecem que a espiritualidade é da essência humana. Somos naturalmente seres espirituais, mesmo não sendo explicitamente religiosos. Essa porção espiritual em nós se revela pela capacidade de solidariedade, de cooperação, de compaixão, de comunhão e de uma total abertura ao outro, à natureza, ao universo, numa palavra ao Infinito.

A espiritualidade faz o ser humano intuir que por detrás de todas as coisas há uma Energia poderosa e amorosa que tudo sustenta e a mantém aberta a novas formas no processo da evolução. Alguns neurólogos identificaram um fenômeno excepcional. Sempre que se abordam existencialmente o Sagrado, a experiência de pertença a um Todo maior verifica-se numa parte do cérebro forte aceleração dos neurônios.

Eles, não os teólogos, o chamaram de “ponto Deus no cérebro”. Como temos órgãos exteriores pelos quais captamos a realidade circundante, temos um órgão interior que é nossa vantagem evolutiva, de perceber aquele ser que faz ser todos os seres, aquela energia misteriosa que penetra todos os seres e os vivifica.

Essa dimensão espiritual de nossa natureza foi sufocada por nossa cultura que venera mais o dinheiro que a natureza, o consumo individual que a repartição, que é mais competitiva que cooperativa, prefere o uso da violência do que o diálogo para resolver conflitos e criou a guerra nuclear e biológica como dissuasão, ameaça e eventual utilização, o que significaria o fim do sistema-vida e do sistema-humano. A violência e as guerras implicam a asfixia da espiritualidade, intrínseca à nossa essência.

Atualmente o eclipse da ética e a desativação da espiritualidade humana poderão levar-nos a situações dramática, não excluindo tragicamente a extinção da espécie homo depois de alguns milhões de anos, amados, nutridos pela Magna Mater que não soubemos retribuir-lhe cuidado, reverência e amor.

Nem por isso desesperamos. O universo guarda surpresas e o ser humano é um projeto infinito, capaz de criar soluções para erros que ele mesmo cometeu.

 

Fonte: Por Roberto Malvezzi (Gogó), em Outras Palavras/Combate Racismo Ambiental/A Terra é Redonda

 

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