sábado, 27 de abril de 2024

Por que educação pública não deve ser privatizada

Narrativa sobre ineficiência de setor público é estratégica para validar a entrada no ensino do setor privado, que possui agenda própria e interesses estratégicos nessa atuação.SP deve lançar em novembro leilão para privatizar gestão de 33 escolas: Esse é o título de uma matéria do UOL, escrita pela Ana Paula Bimbati. Quem me enviou foi um professor do meu mestrado em políticas públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele havia comentado sobre o assunto e honestamente me pegou de surpresa.

Já deixo bem claro a minha opinião: não vejo com bons olhos essa iniciativa. Não tenho absolutamente nada contra a parceria público-privada (PPP) e acredito que o saldo pode ser positivo em muitas situações, mas tenho enormes ressalvas com esse tipo de parceria na educação.

Qual o objetivo do plano? Segundo a própria secretaria paulista seria “liberar a direção da escola de tarefas burocráticas, permitindo maior dedicação às questões pedagógicas”. Lindo, né? E, de fato, nasceu de uma problemática real que já relatei na coluna. Por que então estou problematizando? Bom, por que a solução precisa obrigatoriamente envolver o setor privado?

No Brasil, há uma narrativa de que o Estado é ineficiente, sempre corrupto e cheio de profissionais “mamando nas tetas do governo”. Não sou ingênuo ou excessivamente idealista: há sim corrupção e profissionais não qualificados – como também ocorre no setor privado. Agora é de uma maldade sem tamanho generalizar e colocar todo o sistema e profissionais na mesma caixa. Temos instituições públicas de referência internacional e profissionais do setor altamente qualificados, éticos e comprometidos.

Morro de vergonha quando ouço os autointitulados liberais dizendo que o melhor dos cenários é Estado zero e que é assim nas maiores nações do mundo. Quem disse isso? A literatura econômica mostra justamente o contrário. Quase todos os maiores países do mundo têm tanta ou ainda mais participação do Estado do que o Brasil, inclusive os Estados Unidos. E outra: até os mais liberais economistas da história sempre sinalizaram que a educação deveria ser responsabilidade do Estado.

Setor privado nem sempre é solução

O problema está na gestão. Meu professor tem nos provocado bastante sobre isso: Por que não se fala sobre capacitar os profissionais do setor público e investir no que já existe? Por que a solução está sempre no setor privado?

Bom, aqui o “buraco é mais embaixo”. A narrativa de que o setor público é ineficiente e de que a solução está no setor privado integra uma estratégia que visa enfraquecer o primeiro e abrir margem para a entrada do segundo – este com agenda própria e quase nunca coesa com a que o Estado deveria assumir.

São Paulo não é o único com esse início de uma possível privatização em vigor. O Paraná começou em 2022, e atualmente testa o modelo de gestão privada em duas escolas. É coincidência? Não. Os dois têm em comum o secretário Renato Feder, que atuou no estado sulista antes de assumir a mesma posição no estado de maior importância econômica do Brasil.

Essa relação das secretarias de educação com o setor privado não é nova. Li um artigo de 2018 da Teise Garcia, professora no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo, intitulado A gestão escolar no contexto da privatização da educação básica. Ela já identificava presença de atores privados na gestão educacional no período entre 2005-2015.

Quem está por trás de tudo isso? Bom, no geral, grandes fundações. Há uns dois anos, falei com um professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) que contou que há um evento anual do qual participam todos os secretários de educação do Brasil, cuja organização foi muitas vezes patrocinada por grandes fundações. Quem está por trás de uma delas é simplesmente um dos homens mais ricos do Brasil. Olhem o poder de entrada: simplesmente em todas as secretarias de educação do país e podem, como já acontece, influenciar o currículo e decisões de políticas públicas envolvendo a educação básica.

•        Cuidado seletivo

Sou fundador de um projeto social nacional de educação que auxilia jovens da rede pública com o ingresso no ensino superior. É 100% sem fins lucrativos e composto integralmente por voluntários universitários. Já visitei colégios de dez estados para divulgar nosso trabalho e em alguns tive uma dificuldade incrivelmente absurda para visitar os colégios, mesmo via secretarias.

Eu ficava meio desapontado, mas no fundo até admirava a proteção para com as escolas e consequentemente para com os estudantes. Mas quando descobri sobre essa estreita ligação do setor privado com as secretarias, eu me senti bastante ingênuo. Essa resistência e bloqueio são bastante seletivos. Há muita resistência quando se trata de projetos sociais e pequenas ONGs, mas os grandes “tubarões” por trás de grandes fundações encontram um caminho totalmente aberto em muitas das secretarias de educação do Brasil.

Temo que, se esse avanço do setor privado nas secretarias continuar, ficaremos diante de um cenário sem volta. O interesse do setor não é apenas no subsídio governamental, mas também no acesso aos alunos – tanto político quanto monetário. Afinal, são milhões de clientes em potencial e milhares de possíveis líderes em potencial que futuramente podem ocupar cargos políticos e votar a favor de agendas das fundações que investiram neles.

Não quero incitar uma teoria da conspiração e não estou dizendo que o setor privado é do mal ou que os profissionais que o integram não têm nenhum tipo de boa intenção. Isso não é verdade, assim como é errado dizer que todos do setor público são profissionais ruins. Meu ponto é: os setores têm objetivos e naturezas diferentes.

Não podemos desejar que o setor público tenha a mesma eficiência do setor privado sem a devida adaptação. Precisamos proteger nossa educação pública, nossas secretarias e sobretudo nossos alunos. Tive a oportunidade de conhecer alguns profissionais de secretarias de educação altamente qualificados, assim como diretores de colégios. O que devemos é investir neles, em valorização e em qualificação.

 

       Em 10 anos, escolas estaduais do país perderam um terço dos professores efetivos

 

As escolas estaduais do Brasil perderam mais de um terço (36%) dos professores efetivos em dez anos. A queda no número de docentes concursados se deve ao aumento da contratação de temporários, que deveriam ser exceção, mas hoje já são a maioria dos que atuam em sala de aula.

Os dados são de um estudo da ONG Todos Pela Educação com informações do Censo Escolar e do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). O levantamento identificou que, enquanto houve a redução de docentes efetivos, o número de temporários cresceu 55% em uma década.

Desde 2022, os docentes temporários se tornaram maioria dos que atuam nas escolas estaduais do Brasil. No ano passado, dos 668 mil professores dessas redes, 356 mil (51,6% do total) tinham contratos temporários.

O estudo também destaca que esse modelo de contratação faz com que os professores atuem condições mais precárias, o que, consequentemente, prejudica o desempenho escolar dos alunos.

"A contratação de professores temporários é importante para garantir que os alunos tenham aula em todas as disciplinas, quando houver faltas ou afastamento dos concursados. Mas o que deveria ser uma exceção se tornou o mais frequente nas redes de ensino por ser mais barato para os estados", diz Ivan Gontijo, gerente de políticas educacionais do Todos Pela Educação.

Segundo a lei do Plano Nacional de Educacional, as redes de ensino deveriam ter cerca de 10% dos quadro de professores contratados de forma temporária para atuar nos casos de afastamento dos efetivos. No entanto, os dados do Censo mostram que 15 das 27 unidades da federação já trabalham mais com temporários do que concursados em Minas Gerais, por exemplo, eles são 80% dos docentes que atuam em sala de aula.

As redes estaduais são responsáveis por 30% das matrículas da educação básica do país. No ensino médio, etapa com piores indicadores de qualidade no Brasil, elas concentram 83,6% dos estudantes.

A contratação de temporários foi uma saída encontrada pelos governos estaduais para evitar maior gasto com servidores e com previdência. "Estados com mais problemas fiscais são os que mais têm recorrido a esse tipo de contratação", diz Gontijo.

O estudo identificou que, em média, os governos têm feito um concurso público para docente a cada seis anos. Assim, eles têm mais professores efetivos se aposentando e os repõem com temporários, com os quais não precisarão lidar com a Previdência.

"Há ainda casos de gestores que preferem fazer contratos temporários por acreditar que são docentes menos suscetíveis a fazer greve e que vão se empenhar mais em apresentar bons resultados por medo de ter o contrato rescindido."

Os dados mostram ainda que esse tipo de contratação não tem sido usada apenas para suprir uma demanda pontual, mas para de fato compor o corpo docente fixo das redes. O estudo identificou que quase metade (43,6%) dos temporários atua há pelo menos 11 anos como professor.

"São profissionais que estão há anos trabalhando nas escolas públicas, mas com condições piores do que a dos efetivos. Eles têm salários menores, não têm plano de carreira, costumam trabalhar em mais escolas e com mais turmas para preencher o horário, muitas vezes não têm direito a plano de saúde ou gratificações."

O estudo identificou ainda que, em 15 estados, o salário dos temporários é menor do que o dos efetivos, alcançando uma diferença de até 140%.

Como as condições de trabalho dos temporários são mais precárias, os alunos que têm aula com esses professores acabam tendo piores resultados educacionais. O estudo comparou as notas dos alunos do 9º ano do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio de acordo com o tipo de contratação dos professores.

Nas duas séries, os alunos tiveram desempenho menor quando tiveram aula com professores temporários. "Isso é um reflexo das más condições de trabalho. Os docentes têm uma carga excessiva de trabalho e não conseguem criar vínculo com os estudantes", diz Gontijo.

Uma das estratégias avaliadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para enfrentar o alto número de temporários na educação básica é a elaboração de um concurso nacional e unificado para docentes.

"Essa seria uma estratégia eficiente para ter concursos com mais frequência, já que os estados não precisariam organizar os processos seletivos. Seria uma forma também de qualificar a seleção no país todo", defende Gontijo.

 

Fonte: Deutsche Welle/FolhaPress

 

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