Paulo Kliass: A chantagem do financismo
Este é um ditado
espanhol que exprime bastante bem a situação vivida atualmente pelo governo
Lula 3.0 em sua relação com os representantes do financismo em nosso país. Como
já amplamente discutido em artigos anteriores, as dificuldades todas começaram
ainda antes da posse em 1º de janeiro do ano passado. Os representantes do
sistema financeiro não haviam conseguido emplacar nenhum candidato ao Planalto
com densidade eleitoral pelo campo da então chamada “terceira via” no pleito de
outubro de 2022.
A polarização que se
instaurou para o segundo turno fez com que o desgaste experimentado pelo
quadriênio que se encerrava com Bolsonaro fosse objeto de muitas críticas,
mesmo aquelas vindas de parte de setores que haviam apoiado sua candidatura em
2018. Apesar da simpatia e da concordância com as políticas levadas a cabo pelo
super-ministro da Economia, Paulo Guedes, o povo da finança desta vez preferiu
mudar de campo e terminou por favorecer a vitória de Lula. A estratégia era
claramente a de emplacar um ministro da Fazenda que fosse da confiança da turma
da Faria Lima. Quando o presidente eleito optou por Fernando Haddad para o
posto, o financismo percebeu a oportunidade de sequestrar o restante da
política econômica para seus próprios interesses. Isso porque a política
monetária já estava garantida com uma diretoria do Banco Central (BC) toda ela
indicada pelo governo anterior.
A partir daquele
instante, Haddad ganha protagonismo e recebe carta branca de Lula para negociar
a transição entre governos e preparar as linhas mestras daquilo que viria ser a
política econômica para o período 2023/26. Assim, o ex-professor da Faculdade
de Filosofia da USP se transfigura cada vez mais no atual professor do Insper,
uma das mecas do financismo no ensino superior brasileiro. Ele prepara a PEC da
Transição com o objetivo declarado de assegurar recursos orçamentários para o
primeiro ano do terceiro mandato, mas introduz o primeiro contrabando no
programa que havia sido escolhido pela população. Ao invés de simplesmente
revogar a Emenda Constitucional nº 95 do teto de gastos, que havia sido
introduzida por Temer/Meirelles em 2016, Haddad sugere que a mesma só deixaria
de ter validade no momento em que o Congresso Nacional aprovasse o “Novo
Arcabouço Fiscal”.
• Cortes, cortes e mais cortes nas
despesas sociais
Assim, após negociar
apenas com o presidente do BC, o bolsonarista Roberto Campos Neto, e com meia
dúzia de presidentes de bancos privados, o ministro da Fazenda encaminha a Lula
um projeto que se transformaria na atual Lei Complementar nº 200. Apesar de ter
revogado os dispositivos draconianos do teto de Temer, as novas regras mantêm o
espírito do austericídio e impedem a recuperação das despesas públicas e dos
investimentos governamentais, itens absolutamente fundamentais para que Lula
consiga cumprir com suas promessas de campanha e atenda às necessidades da
grande maioria da população.
O namoro de Haddad com
a nata do financismo prossegue e em diversas oportunidades ele se manifesta a
favor do interesse dos banqueiros. Assim foi quando tentou impedir que a
valorização real do salário mínimo fosse efetivada no primeiro semestre de 2023
– neste caso Lula entrou na disputa e assegurou que o valor fosse reajustado
para R$ 1.520, ao invés de apenas R$ 1.502, como queria o ministro. Além disso,
a verdadeira obsessão com a austeridade fiscal que parece ter tomado conta do
corpo e do espírito de Haddad fez com que o mesmo se recusasse a flexibilizar
as metas de inflação para permitir uma redução da taxa oficial de juros. E
também levou o governo a se comprometer com uma meta, tão equivocada quanto
irrealista, de zerar o superavit primário para 2024.
Ora, segundo o roteiro
estabelecido pelo ministro da Fazenda, o rigor do austericídio só seria
necessário para as despesas ditas “primárias”. Dessa forma, o Brasil continuou
ocupando os primeiros lugares no campeonato mundial de taxa real de juros e
batendo recorde atrás de recorde no volume de despesas financeiras. De acordo
com o próprio BC, ao longo dos últimos 12 meses foram transferidos R$ 748
bilhões dos cofres do Tesouro a esse título. Mas a principal preocupação da
Fazenda continua sendo a de promover cortes, cortes e mais cortes em despesas
como assistência social, saúde, educação, previdência social, segurança
pública, salários de servidores, saneamento e outras.
• Haddad concedeu tudo e o financismo
exige mais
Essa sucessão de
concessões do governo aos interesses do financismo não atende a nenhum
propósito de um governo que se pretenda progressista e desenvolvimentista.
Aliás, muito pelo contrário. Com o sequestro da totalidade das facetas da
política econômica, os próprios meios de comunicação passam a exercer um
controle diário a respeito do cumprimento das metas fiscais inexequíveis que o
próprio Haddad sugeriu a Lula. Estava mais do que evidente que o esforço para
sair de um déficit primário de quase R$ 300 bi em 2023 para um “zero” no
presente ano seria uma loucura. Trata-se de um verdadeiro cavalo de pau na
economia, acentuado pelo fato de estarmos em um ano eleitoral, com aumento das
demandas por gastos públicos de toda a ordem. Enfim, o ministro da Fazenda
propôs ao seu chefe uma verdadeira aventura irresponsável, cuja única
explicação plausível é tentar se cacifar como um bom pupilo junto às elites
conservadoras.
Parcela das classes
dominantes e da grande imprensa já parece ter percebido a oportunidade de
desgastar ainda mais o governo e preparar outra vez o sonho da terceira via em
2026. Cada vez mais são percebidas ações de artilharia pesada contra Lula, ao
mesmo tempo em que buscam a preservação da figura de Haddad – o bom mocinho e
uma figura “responsável” na condução da política fiscal.
Alguns episódios mais
recentes, no entanto, parecem demonstrar que quanto mais espaço é oferecido
para agradar à agenda do sistema financeiro no interior do governo, mais eles
avançam com a voracidade crescente. Secretários dos Ministérios da Fazenda e do
Planejamento já assumem publicamente que a intenção do governo seria mesmo a
revogação dos pisos mínimos constitucionais para a saúde e a educação. Ou seja,
estaríamos próximos a um vergonhoso escândalo, onde um governo do PT poderia
vir a assumir uma pauta que nem mesmo os governos da direita, como Temer e
Bolsonaro, tiveram a ousadia e a coragem política para levar em frente.
Mas a gulodice do
financismo parece não ter mesmo limites. Além de bater diariamente no governo
por este não conseguir cumprir as metas fiscais para este ano, os grandes meios
de comunicação já estendem as críticas para o próximo exercício. Fortalecidos pelo
espaço oferecido por Haddad na questão do compromisso com a responsabilidade
fiscal a qualquer custo, os escribas a soldo da finança já martelam a mudança
de meta fiscal para 2025. No processo de elaboração do Projeto de Lei de
Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para o ano que vem, Haddad reconheceu a
impossibilidade que havia sido a intenção de gerar superávit primário já no ano
que vem. Com isso, alterou a meta de + 0,5% do PIB para zero novamente. E está
sendo impiedosamente metralhado por tal gesto de “populismo e
irresponsabilidade” no dizer dos especialistas de sempre chamados a opinar a
respeito da matéria.
Lula já deve ter se
dado conta de que as sucessivas e crescentes concessões oferecidas por Haddad
ao financismo só está criando problemas para seu governo. Essa péssima
estratégia de conviver amigavelmente com os donos do capital sem ousar qualquer
aposta no campo democrático e popular está começando a apresentar sua fatura
política. De tanto oferecer alpiste aos corvos, eles gostaram e vão continuar
avançando até chegar aos olhos.
Fonte: Outras Palavras
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