LIBERDADE: Um viva para a democracia
O golpe militar de
1964, que resultou em 21 anos de ditadura no Brasil, completa seis décadas
neste domingo. É uma data que jamais deve ser esquecida pela população, para
que nunca mais se repita. Não há valor maior para uma sociedade do que a
democracia. É esse sistema político que vem sendo tão questionado mundo afora
que assegura os direitos individuais, a liberdade de expressão e as escolhas de
cada um. Cabe ao Estado criar todas as condições para o pleno funcionamento das
garantias constitucionais, não limitá-las.
O Brasil esteve muito
próximo do retrocesso, como explicitou o fatídico 8 de janeiro de 2023.
Tentou-se, naquele dia, romper o Estado Democrático de Direito, com o ataque ao
coração da República. Por muito pouco, um golpe não derrubou um governo eleito
pela maioria dos brasileiros. Felizmente, a sociedade que preza pelas
liberdades e dá o valor exato à democracia reagiu à altura e o país não
sucumbiu. A resiliência das instituições permitiu que hoje se possa, mais uma
vez, dar um viva à democracia.
Há, no entanto, razões
de sobra para preocupação. Num mundo extremamente conturbado, é cada vez menor
o número de países em que impera a democracia. As ditaduras escancaradas e as
autocracias disfarçadas são maioria, sinal gravíssimo de que as lideranças que
defendem as liberdades já não conseguem convencer o grosso da população dos
benefícios de um regime que, mesmo imperfeito, é o que melhor protege os
direitos dos cidadãos.
A batalha está sendo
perdida para a desinformação, praga disseminada tanto pela extrema esquerda
quanto pela ultradireita. Há um movimento deliberado no sentido de minar os
pilares da democracia. Os extremistas têm se aproveitado do ressentimento
provocado pela globalização. Camadas da sociedade, sobretudo a de classe média,
se veem relegadas pelo Estado e vítimas das instituições democráticas.
Não por acaso,
tornam-se presas fáceis do populismo. Acreditam que a política tradicional é
culpada por todas as mazelas que atingiram suas vidas. Embarcam no discurso
fácil e palatável de autocratas, normalizando o extremismo que ataca os
direitos de minorias, aqueles que pensam diferente e a separação dos Poderes.
Muitos dos defensores desse modelo antidemocrático se travestem de políticos de
centro para ludibriar segmentos expressivos da sociedade, inclusive, tendo como
arma a religião.
Exemplos não faltam à
esquerda e à direita de ditaduras e autocracias. E é preciso nominá-las pelo
que são, ainda que algumas tenham a desfaçatez de realizar eleições como se
democracia fossem. Os brasileiros devem se mirar nesses casos para que jamais percam
o direito ao voto livre. O poder de escolha é fundamental para um regime
democrático forte. A história está aí para comprovar que, todas as vezes em que
a sociedade abriu brecha para o autoritarismo, as liberdades ruíram, com o
massacre dos divergentes. Não se pode esquecer a história, especialmente quando
ainda há feridas abertas, como no Brasil. Há mais de 200 desaparecidos da
sangrenta ditadura, cujas famílias ainda esperam pela reparação do Estado.
Certos militares
continuam a ser uma sombra para a democracia, como se viu recentemente, em que
muitos flertaram com a tentativa de um golpe de Estado. As instituições têm
sido alvos de constantes e consistentes ataques de fake news. Os jovens, em boa
parcela, simplesmente ignoram o passado e se deixam pautar pela desesperança.
São fatos que precisam ser enfrentados e superados, mas com ações e argumentos
consistentes e que reforcem o Estado Democrático de Direito.
O Brasil tem todas as
condições de fortalecer a democracia, e deve fazê-lo com urgência e veemência,
sem complacência com aqueles que propagam ideias nocivas no campo dos direitos
civis e sociais. A sociedade não pode fraquejar frente a uma minoria saudosista
que idealiza um passado que não existiu, de bonança e avanços. Em ditaduras e
autocracias, as benesses se restringem a grupos específicos, aos vassalos do
poder. É na democracia que a voz do povo se faz ouvir. Portanto, ditadura nunca
mais. Um viva à democracia.
Golpe Militar empurrou o país para 21
anos de prisões e mortes
A ditadura instaurada
no Brasil em 1964 completou 60 anos. O golpe dos militares jogou o país num
período de 21 anos de violações, arbitrariedades e restrições às liberdades.
Opositores do regime foram presos, torturados e mortos. O Congresso Nacional foi
fechado, e a imprensa, censurada. Peças de teatro e canções de artistas eram
submetidas aos censores, que faziam cortes nesses conteúdos.
Foram várias as razões
que levaram à queda do então presidente João Goulart, da "ameaça
comunista" e o receio da implantação das chamadas reformas de base ao
apoio do governo dos Estados Unidos. Contra Jango, pesou também a adesão de
setores da sociedade, como empresários, classe média e até mesmo parte da
imprensa. A instabilidade política no país começou três anos antes, com a
renúncia de Jânio Quadros, em 1961.
A ditadura passou por
fases distintas. O governo militar não deveria ter se prolongado tanto tempo,
se acreditava. Os generais foram se afeiçoando ao poder e usaram a força para
conter os descontentes. No fim da década, em dezembro de 1968, o presidente Costa
e Silva assinava o Ato Institucional número 5, o AI-5, que endureceu o regime.
O ato foi batizado de golpe dentro do golpe. Teve início uma era de terror de
Estado. Mandatos de parlamentares foram cassados, a garantia do habeas corpus,
suspensa.
Doi-Codi
O país passou a viver
com marchas e passeatas de protestos e também de prisões e mortes de estudantes
e opositores do governo ditatorial. O Brasil ganhou um Serviço Nacional de
Informações (SNI), que passou a monitorar e a investigar as pessoas, se tornando
um braço de apoio aos centros de prisão e tortura, como os Doi-Codi
(Departamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa
Interna).
A distensão da
ditadura só chegou no fim da década de 1970. A sequência de prisões arbitrárias
e de assassinatos de civis, casos do jornalista Vladimir Herzog e do operário
Manoel Fiel Filho, respectivamente em 1975 e 1976, estremeceu o regime,
incomodou parte dos militares e gerou insatisfação na sociedade, que passou a
ter algum conhecimento do que ocorria nos porões da ditadura. O país passou a
viver o período da abertura lenta e gradual, ensaiando o fim do ciclo dos
militares.
Em 1979, o país
aprovou sua Lei de Anistia, que, se por um lado permitiu a volta dos
brasileiros que viviam no exílio, casos de Leonel Brizola e Miguel Arraes, por
outro houve o entendimento de que os militares responsáveis pelas atrocidades,
como tortura, desaparecimento e até incineração de corpos, jamais seriam
julgados. Essa compreensão foi se alterando com o tempo, e a Justiça reconheceu
oficialmente como torturador, por exemplo, o coronel Carlos Brilhante Ustra,
que comandou o temido Doi-Codi de São Paulo.
Política de Estado
Instalada no governo
de Dilma Rousseff, ex-militante de um grupo de esquerda, a Comissão Nacional da
Verdade encerrou seus trabalhos em 2014 e reconheceu que 434 pessoas foram
mortas e desaparecidas pelo Estado naqueles 21 anos de ditadura. Mais de 300 pessoas,
entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República
foram responsabilizadas por essas ações ocorridas no período que compreendeu a
investigação.
O relatório da
comissão apontou ainda que as violações registradas foram resultantes "de
ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro" e que a repressão
ocorrida durante a ditadura foi usada como política de Estado "concebida e
implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos
ministérios militares".
Na sequência dos anos,
os brasileiros foram às ruas pedir "diretas já", que foi derrotada no
Congresso Nacional, assistiu a Tancredo Neves ser eleito indiretamente, mas ele
morreu antes de assumir, e a Nova República foi inaugurada com José Sarney na
presidência. Somente em 1989 ocorreu a primeira eleição direta depois de mais
de duas décadas. Fernando Collor foi o eleito.
Por quem os sinos dobraram neste 31 de
março
É preciso fugir ao
senso comum e ao passado imaginário para ter um novo olhar sobre o dia 31 de março
de 1964. O regime militar que ali se instalou somente se encerrou com a eleição
de Tancredo Neves, em 1985, e a bem-sucedida transição à democracia presidida
por José Sarney, cujo coroamento foi a promulgação da Constituição de 1988.
Desde então, temos uma democracia representativa de massas, de caráter
social-liberal. Não é pouca coisa a preservar.
Um velho amigo, o
sociólogo Caetano Araújo, consultor do Senado, a propósito da polêmica sobre se
o governo Lula deveria comemorar ou não o golpe de 1964, fez uma sensata
separação entre a verdade e a Justiça, que não são mesma coisa, embora devam
caminhar juntas. É verdade que os órgãos de segurança cometeram crimes
hediondos, sobretudo no caso dos desaparecidos, mas a aprovacão da anistia em
1979, que não foi exatamente como os militares queriam, foi o grande pacto
entre o governo e a oposição que deu início efetivo à ultrapassagem pacífica do
regime autoritário.
Era a justiça
possível, como correu em outras transições complexas da época. O Chile até hoje
convive com uma constitucionalidade herdada do governo de Augusto Pinochet. O
Uruguai promoveu um plebiscito que anistiou os militares. A Argentina puniu
seus ditadores, depois do desastre das Malvinas, mas também montoneros e
militantes do ERP envolvidos em crimes de sangue. Na África do Sul, sob
liderança de Nelson Mandela, a Comissão da Verdade promoveu uma reflexão para
que o passado do apartheid não se repetisse, não teve papel criminal.
Seguiram o rastro da
Espanha, profundamente dividida desde a década de 1930. Após a morte de Franco,
em meio à crise econômica e social, sem a mínima estrutura democrática, com
apoio do rei Juan Carlos I, Adolfo Suárez abriu o diálogo entre esquerda, centro
e direita. No Palácio la Moncloa, em 1977, em Madri, todos os partidos
assinaram um pacto no qual predominava a preocupação econômica, mas que
abarcava previdência, trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação.
A Espanha tornou-se uma democracia sólida, que sobreviveu à tentativa de golpe
militar de 1981.
Por Quem os Sinos
Dobram (Bertrand Brasil), de Ernest Hemingway, que lutou como voluntário nas
Brigadas Internacionais, é uma grande histórica de amor, tendo por referência a
experiência pessoal do escritor na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, narra a extrema
violência das tropas de ambos os lados: os nacionalistas, auxiliados pelo
governo italiano e nazista alemão, e os republicanos, apoiados pelas brigadas e
a União Soviética. O livro é inspirado no poema Meditações, do pastor e poeta
John Donne: "Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da
humanidade". Empresta o título à coluna.
Mortos e desaparecidos
Sim, os sinos hoje
dobram por 434 mortos e desaparecidos, vítimas do regime militar, a maioria dos
quais na tortura ou executados em confrontos simulados com os órgãos de
repressão. Mas, também, dobram por 119 mortos por grupos armados que se
opuseram à ditadura. E quatro militantes de esquerda que foram executados pelos
próprios companheiros. Não eram "cachorros". Qualquer tentativa de
ajuste de contas punitivo com esse passado é um equívoco. Isso não significa
confinar essa memória ao culto doméstico dos familiares de mortos e
desaparecidos.
A radicalização
política que antecedeu o golpe de 1964 dividiu profundamente a sociedade,
inclusive as classes sociais e as famílias. Nem tudo foi fruto da Guerra Fria.
Havia, como há ainda, um ambiente de iniquidade social propício. E, também, uma
visão de ambos os lados de que as coisas se resolveriam pela força bruta do
Estado e não pela sociedade, por via democrática. A esquerda deveria se
perguntar: por que Juscelino Kubitschek e Ulyssses Guimarães apoiaram o golpe?
A resposta é simples: foram empurrados para os braços de Carlos Lacerda e
Magalhães Pinto, que empunharam a bandeira da democracia contra o radicalismo
de esquerda. Os militares deveriam também se perguntar: por que Juscelino e
Ulysses passaram à oposição, logo após o golpe de 1964? Outra resposta simples:
o regime cancelou as eleiçoes e derivou para uma ditadura sanguinária.
Existe um fio de
história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas
reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo
Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o
voluntarismo e a frustração da esquerda porque a queda da ditadura não se
confundiu com a revolução.
Outro fio de história
liga a frustração dos militares que ingressaram na carreira quando era uma via
de ascensão ao poder político, cuja recidiva se deu no governo Bolsonaro, à
tentativa de golpe de 8 de janeiro da extrema direita bolsonarista, inspirada
no passado imaginário do regime militar: a mentalidade de que às Forças Armadas
cabe tutelar a nação, por representar "o povo em armas".
A polêmica sobre a
decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não relembrar oficialmente o
golpe militar de 31 de março de 1964 é fruto dessas vicissitudes históricas. De
fato, há um pacto de silêncio entre ele e os comandantes militares, que proibiram
as comemorações nos quartéis, enquanto generais e outros oficiais golpistas
prestam contas à Justiça comum, fato inédito na história.
Entretanto, a
sociedade não está proibida de reverenciar seus mortos, como fizeram os
professores da Faculdade de Direito de Niterói (UFF), ao propor o título de
Doutor Honoris Causa ao seu ex-aluno Fernando Santa Cruz, sequestrado e
assassinato em 1974, depois de diplomá-lo bacharel post mortem.
Fonte: Correio
Braziliense
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