Do cacau ao chocolate, na Bahia e no Amapá:
histórias de quem cuida da floresta e adoça a "vida"
No extremo norte do
Brasil, pra lá de Oiapoque, no Amapá, o agricultor Sebastião Pinheiro Moraes
colhe o cacau. Ele tem 75 anos e trabalha na comunidade ribeirinha de Vila
Velha do Cassiporé, junto do Rio Cassiporé, "um lugar com oxigênio
puro", conta. A colheita de seus cacaueiros nativos de floresta de várzea é feita entre março e junho, e não raro é preciso chegar de
barco às árvores e mergulhar para escolher os frutos debaixo d'água. "Este
ano o verão foi muito forte, então as flores do cacau custaram a brotar e os
frutos demoraram um pouco mais a sair", diz, e fala orgulhoso sobre o
chocolate feito com sua matéria-prima: "Fica uma delícia!".
Grande parte de sua
colheita é comercializada com a Chocolates Cassiporé. Dorismar da Paixão,
proprietário da marca, tem em comum com Sebastião o amor pelas terras de Vila
Velha do Cassiporé, as memórias da vida e o sustento da família. Desde criança
convivia com a rotina de ir para a roça. Ele lembra: "Adentrando na margem
do rio estão as árvores nativas, como andiroba, pracaxi, taperebá, cacau e
açaí. A terra fica o tempo todo úmida. Na época das colheitas dos produtos da
floresta, minha família produzia artesanalmente o chocolate. Para isso, a gente
secava e pilava o cacau, deixava endurecer, ralava e comia o chocolate de
manhã, acompanhado com tapioca ou banana frita. A nossa primeira alimentação do
dia era mesmo o chocolate".
Antes da adolescência,
Dorismar mudou-se para Oiapoque, depois para Macapá, mas nas férias retornava à
Vila Velha. "Não me desliguei um tempo sequer da minha comunidade. Já
adulto, pensei que o chocolate feito do cacau nativo poderia ser vendido e gerar
renda". Dorismar então levou aos produtores rurais as técnicas agrícolas
sobre fermentação, secagem e como usar a polpa, e mais recentemente o Sebrae
(Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) confirmou que a
colheita extrativista do cacau teria viabilidade econômica.
"Desde 2018,
quando criamos a marca de chocolates Cassiporé, compramos os frutos dos
produtores de Vila Velha. A matéria-prima é muito boa, não tem uso de produtos
químicos para adubação, há constante cobertura de solo com folhas de diferentes
espécies e terreno banhado pela água do rio. A fermentação e a secagem das
amêndoas são feitas ainda na comunidade. E na receita do nosso chocolate só vai
cacau e açúcar demerara", diz.
De Vila Velha até o
município de Oiapoque, onde está a fábrica da Cassiporé, são 3 horas de carro -
muito mais simples do que o deslocamento de anos atrás, de 8 horas de barco com
trechos encachoeirados e ainda 100 quilômetros de estrada. Dorismar conta orgulhoso
da loja de seus chocolates em Oiapoque, das vendas online e dos planos de abrir
uma filial em Macapá, a única capital do país na linha do Equador, a quase 600
quilômetros ao sul de Oiapoque.
Essa forma de produção
do chocolate segue o método "tree to bar", do inglês "da árvore
à barra", em que se acompanha todas as etapas de produção do chocolate
desde o pé de cacau, com valorização do trabalho do produtor rural. "Precisamos
ter uma produção sustentável do cacau, com responsabilidade social e ambiental,
gerando renda e não derrubando árvores", conta Dorismar.
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Do norte ao nordeste, compartilhando
história e ganhos na renda
O cacau também faz
parte da história do sul da Bahia - e também é pano de fundo da novela da
Globo, Renascer, e do personagem principal, José Inocêncio. O cacau já foi
recurso intensamente explorado na região de Ilhéus até os anos de 1990, quando
a praga da vassoura-de-bruxa exterminou as plantações e levou os produtores à
falência. Nos últimos vinte anos, uma nova onda, dessa vez de marcas de
chocolate "especiais" - que considera a valorização do agricultor e
das matérias primas de qualidade, além do acompanhamento ao processo de
produção - está incentivando os pequenos e médios agricultores a retomarem os
cultivos e a usar conhecimentos científicos para investir na terra.
Eleonora Gedeon, a
Lola, acompanhou o auge e o declínio do cacau na Bahia, e agora ajuda a
reconstruir uma nova fase da produção. Seus pais adquiriram há mais de 80 anos
uma fazenda no município de Floresta Azul que chegou a produzir 23 mil arrobas
de cacau. Com a crise gerada pela vassoura de bruxa, caiu para 600 arrobas. Nos
anos de 1990, ela e o marido assumiram a gestão com foco no cacau de qualidade.
"Não tínhamos
como investir grandes recursos para retomar com o volume de antes. Resolvemos
escolher as melhores árvores plantadas e as melhores áreas, principalmente nas
montanhas, e optar pela qualidade do cacau nativo. A vassoura de bruxa ainda existe,
mas para lidar com ela precisamos fazer um manejo cuidadoso, como podas no
momento certo para procurar inibir o crescimento dos fungos. Temos muitos
desafios, mas sinto que estamos no caminho certo". A técnica usada na
fazenda é a cabruca, que mescla espécies variadas no cultivo, entre elas o
cacau. "É uma lavoura conservacionista, que mantém a floresta em pé",
conta.
Parte da produção de
Lola feita nos 130 hectares de cacau são destinados para venda como commodity
ou para produtores de chocolate. Um dos compradores é a Dengo, marca criada em
2017 que compra as sementes de 206 pequenos e médios produtores em mais de 30
municípios baianos próximos a Ilhéus. Na Dengo, a forma de produção do
chocolate é a "bean to bar", da semente à barra. Andreza Silva, head
da rede de fornecedores da empresa, conta que pagam pelo cacau de qualidade
cerca de 105% a mais em relação ao preço de mercado, conforme os critérios de
sustentabilidade atingidos pelos agricultores. A estocagem do cacau é feita em
Ilhéus, a fábrica está em São Paulo, e de lá saem os produtos para 38 lojas,
duas delas no exterior.
Lola diz orgulhosa que
em sua fazenda tem uma escola para filhos de agricultores, campo de futebol,
casas confortáveis para os funcionários e terreno disponível para plantarem.
"Noto que hoje em dia existe uma preocupação em oferecer qualidade de vida
e direitos a quem trabalha na terra. Os agricultores se dedicam muito,
trabalham embaixo de chuva, então eles precisam de condições dignas para
exercer suas atividades", conta. Em décadas de vivência no sul da Bahia,
ela nota mudanças no uso das terras vizinhas à fazenda e no clima: "A mata
não pode ser derrubada, porque todos precisamos dela para fazer chover e manter
os bichos vivos. Já se vê os efeitos do desequilíbrio causado pelo
desmatamento: fez tanto calor este ano que pela primeira vez precisei usar
ar-condicionado".
·
Negócio e paixão de pai para filho
Lucas Arléo também é
gestor da fazenda que a família tem em Ilhéus há mais de 50 anos. Das 450
arrobas de cacau produzidas nas duas colheitas do ano (a principal delas entre
maio e agosto), parte da produção é vendida para a Dengo, parte é
comercializada como commodity para grandes indústrias e o restante é destinado
para a marca da família, a Ju Arléo Chocolates. Quando criança, Lucas passava
as férias na fazenda. "Eu vivia a rotina do cacau, então esse lugar é
minha paixão. Mas naquela época o destino da produção era todo para as
indústrias de chocolates e não havia grande preocupação com a qualidade do
cacau".
Em 2000, quando o avô
deixou de administrar o negócio e as terras ainda sofriam os efeitos da praga
da vassoura-de-bruxa, Lucas assumiu a gestão. "Eu me formei em medicina
veterinária achando que trabalharia com os bichos, mas hoje tenho total envolvimento
com o cacau, seja na gestão, seja como agricultor", diz. Em 2016 percebeu
um mercado que remunerava melhor pelo fruto de qualidade e passou a aprimorar a
produção.
"Havia potencial
de agregar valor e ter maior retorno para reinvestir na fazenda e dar
continuidade ao legado da família. Damos atenção para a qualidade, então me
envolvo na poda das árvores, na quebra do cacau, em transporte, fermentação e
secagem", conta. As mudanças no clima têm sido desafiadoras, alternando
excesso de seca e de chuvas, e ambos prejudicam a cultura do cacau.
"Tivemos uma seca
terrível em 2015 e ainda não recuperamos a produtividade, que era de cerca de
800 arrobas. Então nos adaptamos e plantamos hoje em uma área pequena, de 5
hectares, com árvores mais resistentes, novas e produtivas. Usamos a técnica da
cabruca, que ajuda a manter a Mata Atlântica em pé, mantendo o solo sadio e o
sombreamento".
Os quatro produtores
de cacau e chocolate - Sebastião e Dorismar no Amapá, Lucas e Lola na Bahia -
preparam-se para as colheitas do ano. Mesmo distantes entre si e com diferentes
escalas e formas de produção, incluem em suas falas a alegria em cultivar a
terra, a esperança de safras caprichadas e de bons preços para continuar a
jornada com o cacau.
Fonte Um só Planeta
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