Pedro Marin: Gaza – se não é genocídio, é
guerra total
A recente declaração
de Lula durante uma coletiva de imprensa na Etiópia, comparando a situação da população
de Gaza com a dos judeus sob a Alemanha nazista, levou a uma reação esperada
por parte do Estado de Israel, a uma ampla rejeição da imprensa nacional, a
algumas mensagens de solidariedade de líderes latino-americanos mas, até aqui,
a quase nenhuma repúdio internacional, a despeito dos esforços do governo israelense.
No debate sobre quão
consistente seria a comparação entre a carnificina hitlerista com o massacre
israelense, se tem apelado muito a tecnicalidades e “singularidades” para
atacar a posição política do presidente – a de que, tal qual o
Holocausto, o morticínio em curso em Gaza é inaceitável. Não sou um inimigo da
precisão analítica, mas há de se reconhecer quando ela não é fim em si,
mas meio, de fato, de abrandar a denúncia do atual massacre.
A mesma operação
intelectual é feita sobre uma série de outras classificações do regime
israelense. O uso do termo apartheid, por exemplo, é criticado sob
o argumento de que a motivação das políticas restritivas contra os palestinos
não são motivadas por racismo, mas por “questões de segurança”, e que os
palestinos vivendo em Israel têm os mesmos direitos formais que qualquer
israelense. Quanto ao colonialismo, o argumento do Comitê Judaico
Americano é o de que os israelenses são originários da região, e que
“[colonialismo] não pode descrever uma realidade na qual um grupo nacional,
agindo em seu próprio nome e não a mando de um poder externo, retornou à sua
pátria histórica para alcançar a autodeterminação e, ao mesmo tempo, apoiou a
criação de um Estado-nação para outro grupo nacional, juntamente com a criação
de seu próprio Estado.” A classificação de genocídio, por sua vez,
costuma ser rejeitada sob argumentos legais: para que um determinado evento
assim seja configurado, há de se demonstrar que a motivação das
ações assim classificadas seja a destruição do povo, parcialmente ou em sua
totalidade. Não basta simplesmente que esse povo seja destruído; a sua
destruição tem de configurar o objetivo da ação.
O debate é assim feito
de uma tal forma que não só o Holocausto seria um evento histórico excepcional,
ao qual nenhuma comparação é lícita; também a política de Israel frente os
palestinos seria de tal forma singular que não poderia ser comparada a nada,
nem, portanto, classificada de forma alguma. É a excepcionalidade servindo à
normalização: a singularidade de um Estado se traduz no abrandamento dos crimes
que comete contra um outro povo na medida em que essa excepcionalidade não pode
sequer ser descrita.
À maioria dos
comentaristas, no entanto, tem escapado uma categoria que tecnicalidade ou
singularidade alguma pode fazer frente: a de guerra total. O formulador do
conceito, Erich Ludendorff, foi um general prussiano que despontou
nacionalmente como herói ao comandar os esforços da artilharia alemã durante a
Batalha de Liége, na Bélgica, durante a Primeira Guerra, em 1914. Por ter
concluído a tarefa de derrubar as fortificações da cidade, foi indicado para
dirigir, ao lado de Paul von Hindenburg, a frente oriental alemã durante a
Primeira Guerra. Realizando um esforço de guerra brutal e aproveitando-se de
sua posição, conseguiu não só isolar Hindenburg no comando oriental, como
também o Kaiser Guilherme II dos esforços de guerra como um todo. Em 1916, foi apontado
como chefe do Estado-Maior, tornando-se ditador de facto do
Império Alemão, embora o próprio Kaiser desprezasse seu “caráter duvidoso” e
sua “ambição”. Mesmo que já tivesse então evidências de que a vitória alemã era
impossível, Ludendorff mobilizou um esforço de guerra insano em múltiplas
frentes, sustentado numa infame noção de “destino manifesto” do povo alemão.
Assim, enquanto os corpos de milhões de alemães jaziam destroçados e
putrefeitos nos campos de batalha, parte da sociedade alemã, embora se
alimentando, quando muito, de ratos, seguia confiante na inevitável vitória. A
vitória não veio; no lugar, a morte e a fome tomaram a Alemanha por mais dois
terríveis anos.
Incapaz de reconhecer
seus próprios erros, e com uma personalidade paranóica, o general passaria a
explicar a derrota alemã e a humilhação nacional assinada no Tratado de
Versalhes apontando a maçons, comunistas, cristãos e judeus. Adotaria, por fim,
o mito da “punhalada nas costas”, segundo o qual a Alemanha não havia sido
derrotada nos campos de batalha, mas no front doméstico, pela traição de
comunistas, socialistas, social-democratas e especialmente judeus. O mito,
amplamente mobilizado pelo exército alemão a partir de então, tornou-se
popular: além de oferecer uma explicação suficientemente simples para a derrota
do povo escolhido, ele lembrava Siegfried, o herói da mitologia germânica que,
após derrotar um dragão, havia sido morto com uma lança fincada nas costas.
Exilado após a guerra,
Ludendorff retornou à Alemanha em fevereiro de 1919. No ano seguinte, tomaria
parte no Putsch de Kapp, contra o governo social-democrata da República de
Weimar. O golpe chegou a ter sucesso, mas foi revertido, quatro dias depois, por
uma greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores. Agora exilado na
Bavária, o general se encontraria com Hitler pela primeira vez, em maio de
1923, e passaria a colaborar ativamente com os nazistas. Em novembro,
Ludendorff tomaria parte no Golpe da Cervejaria, sendo apontado por Hitler como
futuro comandante de seu Exército. Com o golpe derrotado, Ludendorff é
absolvido, e no ano seguinte é eleito ao Reichstag pelo Movimento
Nacional-Socialista da Liberdade, coalizão de extrema-direita que passou a
abrigar os nazistas após a dissolução do partido pelo Golpe da Cervejaria. Em
1925, o general fundaria o partido de extrema-direita Tannenbergbund,
considerado até por alguns nazistas como demasiadamente inclinado a teorias da
conspiração.
·
A guerra total contra Gaza
Em 1935, dois anos
antes de sua morte por um câncer no fígado, Ludendorff publicou seu livreto “A
guerra total”. Em parte descrevendo sua experiência na Primeira Guerra, em
parte prevendo o futuro da “próxima guerra” e promovendo uma linha estratégica
para seu combate, o livro fundamentalmente predica que o verdadeiro sentido da
guerra é a preservação do povo; que a concepção clausewitziana da
guerra como continuação da política deve ser substituída por uma concepção em
que a política serve à guerra, chegando mesmo a dizer que a
política deve ser substituída pela “Política Total” – isto é, a política, em
tempos de paz, voltada para a preparação da guerra; que a “união espiritual” e
racial de um povo eram determinantes para os sucessos militares.
Repetindo a lorota
antissemita segundo a qual a Alemanha fora derrotada na Primeira Guerra pela
ação dos judeus e da Igreja Católica, Ludendorff predica uma guerra na qual “a
zona de guerra cubra, no verdadeiro sentido da palavra, o território
inteiro daqueles que fazem parte da guerra. Não só os exércitos, os povos
mesmos são sujeitos às operações diretas da guerra”. A guerra deverá “ocorrer
atrás da frente inimiga, atacando locais importantes, indústrias, etc., e tendo
a população civil inimiga como alvo geral”; a tarefa da Marinha será “cortar
as importações para a população e o exército inimigos”; mesmo cidades
industriais devem ser alvo dos bombardeios aéreos. Nesta guerra, em
que a população do inimigo são entendidos também como combatentes
inimigos, caberiam todos os meios possíveis: os estritamente militares, os
econômicos, os políticos, os diplomáticos, os culturais. O comandante-em-chefe
“examinará atentamente as notícias sobre a condição espiritual dos exércitos e
povos inimigos”, com o fim de alcançar “a destruição da vida econômica dos
países e povos inimigos, seu bloqueio, o impedimento do abastecimento por meio
de forças marítimas”. O “estudo cuidadoso das tendências existentes nos
povos inimigos, suas esperanças, desejos e atitude espiritual em relação ao
governo e à guerra” seriam “a preparação necessária para uma propaganda
eficaz”.
Olhemos agora à guerra
contra Gaza. Os líderes israelenses insistem nas operações militares como
medidas de autodefesa, isto é, como medidas de preservação de seu povo, frente à ameaça existencial representada pelo Hamas – “os novos
nazistas que assassinam qualquer judeu que vêem pela frente”, de acordo com o ministro
de Relações Extreriores Israel Katz. A guerra movida não é, formalmente, contra
o povo palestino como um todo. Ainda assim, os dados até aqui (21 de fevereiro)
apontam 29,3 mil palestinos mortos, dos quais 70% eram mulheres e
crianças (20,7 mil). O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant,
declarou no dia 8 de outubro que a ordem era “estabelecer um bloqueio total
na Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, nem comida, nem água, nem
combustível”. De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, “há
falta de alimentos, água potável, saneamento básico, serviços médicos e
segurança” e “muitos residentes estão em um estado debilitado e correm
um risco elevado de morrer de infecções ou doenças comuns.” Segundo a
Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo
Oriente (UNRWA), mais de 70% da infraestrutura civil de Gaza já foi destruída ou severamente comprometida pelos ataques
israelenses, incluindo 84% das instalações de saúde. De acordo com a
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), até 31 de
dezembro do ano passado, 27,5% das terras agrícolas de Gaza haviam sido comprometidas.
O presidente
israelense Isaac Herzog declarou que “é uma nação
inteira que é responsável. Não é verdadeira essa retórica sobre
civis não saberem, não estarem envolvidos. Absolutamente, não é verdade. Eles
poderiam ter se rebelado. Eles poderiam ter lutado contra o regime maligno que
tomou Gaza em um golpe de Estado”. A ministra da Igualdade Social e
Empoderamento Feminino de Israel, May Golan, declarou-se recentemente “orgulhosa das ruínas em Gaza”. A ministra de Transportes e Segurança Rodoviária, Miri
Regev, disse recentemente que
“chegou a hora de cortar a dependência de Israel de trabalhadores palestinos.
Vamos substituí-los por trabalhadores estrangeiros o quanto antes” – ou tomando
os palestinos como um todo como uma ameaça à segurança israelense, ou tomando o
corte dos salários palestinos como um instrumento da guerra. Os exemplos
“totais” da ação israelense no campo da diplomacia e da propaganda são muitos:
a guerra do ministro de Relações Exteriores, Israel Katz, contra a ONU e seu secretário-geral,
António Guterres; a humilhação à qual expôs o embaixador brasileiro em Israel;
as perseguições de ONGs israelenses contra jornalistas (para não falar de seus assassinatos); os vídeos de
crianças cantando que irão “aniquilar Gaza” em canais públicos de televisão.
O governo israelense
pode se defender da acusação da genocídio sob o argumento de que seu objetivo
não é eliminar, parcial ou totalmente, o povo palestino. Mas não pode se
defender da acusação de guerra total. Se ao primeiro conceito cabe a intenção
da destruição do povo, ao segundo a destruição do povo é meio. Ao
apontar ao Hamas como alvo ao passo que liquida com a infraestrutura de Gaza,
mata especialmente mulheres e crianças, declara por meio de seus ministros ter
“orgulho” pelas ruínas e bloqueia o acesso a água, comida e medicamentos, o
governo israelense toma algumas páginas do livro de Ludendorff.
É importante notar que
boa parte do que Ludendorff buscou descrever como “guerra total” ele mesmo
havia posto em prática, duas décadas antes, durante a Primeira Guerra. Sob seu
comando, centenas de milhares de belgas foram transferidos à Alemanha em trens
e forçados a trabalhar sem pagamento. Foi também sob seu comando que a Alemanha
adotou os gases tóxicos como armas no campo de batalha – em uma tal escala que
a produção de fertilizantes químicos desabou, prejudicando a agricultura alemã
e aumentando a fome. É a partir dessa experiência que Hitler teria a monstruosa
ideia de matar judeus em câmaras de gás. A propaganda bombástica sobre
“vitórias fáceis” asseguradas ao povo alemão pela preferência de Deus, e a
promessa de conquista de quase toda a Europa e suas colônias, da França à
Estônia, passando por África até a Índia, também remonta à Primeira Guerra e ao
comando de Ludendorff. É também importante notar que muitos, após Ludendorff,
levaram a cabo os seus métodos de guerra – não só Israel.
Sim, a História
ensina; mas não como a maioria dos homens supõe, e certamente não quando a sua
descrição não é tolerada. Quando é proibido aos povos olhar ao presente em
paralelo ao passado, quando a intelectualidade é de tal forma obcecada com a
precisão descritiva que cada novo acontecimento demanda também uma nova
categoria, quando as terríveis chagas de ontem são manejadas para encobrir o
sangue de hoje, a História já não pode oferecer lições. O general Ludendorff,
uma das figuras mais destrutivas e reprováveis do século 20, já está morto. Mas
também está vivo entre nós, na medida em que seus feitos e suas ideias se
repetem.
“Você se lembra dos
ratos e do mau cheiro
Dos cadáveres
apodrecendo em frente à trincheira do setor dianteiro?
E do amanhecer,
branco-sujo e frio, com um dilúvio desesperançoso?
Você já parou e se
perguntou: "Será que tudo isso vai acontecer de novo?”
[...]
Você se esqueceu, já?
Olhe para cima e jure
pelos mortos da guerra que você nunca se esquecerá!”
– “Aftermath”, de Siegfried Sassoon, março de 1919.
Fonte: Opera Mundi
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