Por que pílulas de comida da ficção científica nunca viraram realidade
Você provavelmente já viu esta cena, que é um tema
constante dos primórdios da ficção científica: um homem ou mulher do futuro
coloca uma pílula na boca, engole e fica alimentado quase instantaneamente.
A pequena cápsula branca, na verdade, é uma
refeição completa com três pratos, projetada para imitar as refeições do
passado em uma única dose, conveniente e portátil.
O musical de ficção científica Fantasias de 1980 (1930)
conta a história de um homem que acorda de um coma depois de 50 anos, na Nova
York da década de 1980.
Ele passeia por uma cidade distópica, onde as
pessoas são conhecidas apenas por números, e seus novos amigos o levam a um
"café". Ali, eles pedem uma refeição completa, que inclui sopa de
mariscos, carne assada, aspargos, torta e café.
Depois de alguma insistência dos amigos, o homem
dos anos 1930 acaba engolindo a pílula. Ele afirma que "a carne assada
estava um pouco dura" e sente falta dos "bons velhos tempos".
Mas, se formos observar esses "bons velhos
tempos", a refeição em pílulas não surgiu na mente fértil dos escritores
de ficção científica. Ela foi criada pelos políticos da época.
Mais precisamente, esta visão minúscula do futuro
teve suas raízes no feminismo do
final do século 19.
·
Pílulas contra o patriarcado
Durante os preparativos para a Feira Mundial de 1893 em
Chicago, nos Estados
Unidos, a Associação de Imprensa Americana pediu a escritores de diversos
campos que promovessem o evento, escrevendo ensaios sobre como eles acreditavam
que seria o mundo em 1993. Seu trabalho foi publicado em pequenos jornais
locais de todo o país.
A suffragette (ativista pelos direitos de as
mulheres votarem) americana Mary
Elizabeth Lease (1850-1933) previu que, em 1993, os seres humanos comeriam apenas
alimentos sintéticos, liberando as mulheres do árduo trabalho de cozinhar.
Para ela, as pessoas iriam "ingerir, em forma
condensada do rico barro da terra, a força vital ou os germes agora encontrados
no coração do milho, na semente do trigo e nos deliciosos sucos de frutas. Um
pequeno frasco dessa vida do seio fértil da Mãe Terra fornecerá aos homens
nutrição para dias. E, com isso, os problemas das cozinheiras e da cozinha
estarão resolvidos."
A ficção antifeminista da época ridicularizou a
fascinação pelas pílulas de comida.
Livros humorísticos como The
Republic of the Future ("A república do futuro", em
tradução livre), publicado em 1887 pela conservadora social Anna Dodd
(1858-1929), zombaram do conceito de mulheres que não queriam passar a maior
parte do seu dia na cozinha.
O romance é ambientado na Nova York do ano 2050.
Seu narrador anuncia jocosamente que "quando a última torta foi
transformada na primeira pílula, começou a verdadeira liberdade das
mulheres".
A virada do século 20 também trouxe o medo de que o
planeta simplesmente não conseguisse fornecer alimentos
suficientes para todas as pessoas, considerando o crescimento
populacional da época.
Por isso, nos anos 1920 e 1930, a pílula de comida
aparecia na imprensa popular como algo inevitável, ainda que um tanto
assustador. E a comédia tentava reduzir o pânico.
Em 1926, um jornal de Utah, nos Estados Unidos,
publicou uma série de desenhos brincando com a ideia.
Em um deles, um trabalhador da construção civil
mexe nos seus bolsos e percebe que esqueceu sua pílula de refeição em casa; o
atendente de um mercado coloca sobre o balcão seis pílulas de carne de peru
para o jantar para uma senhora que está fazendo compras para o Dia de Ação de
Graças; e as mulheres da casa comentam sobre os "antigos" pratos
sujos para lavar, que ficaram apenas na lembrança, graças às pílulas
alimentares.
As ideias eram extravagantes, ainda mais porque,
nos desenhos da época, a moda não teria acompanhado a tecnologia da alimentação
– as pessoas ainda usavam gravatas na hora do jantar.
Mas eram ideias plausíveis para muitas pessoas nos
anos do pós-guerra, que viram a ciência e a tecnologia criar instrumentos que
as ajudaram a destruir o mundo em que viviam e ainda ofereciam a esperança de
reconstruí-lo. E, naquele mundo, os homens eram apenas uma parte menor de uma
grande máquina industrial.
Este panorama foi sintetizado pelo slogan da Feira Mundial de
Chicago em 1933: "A ciência descobre, a indústria aplica, o homem se adapta".
A frase sugere que o homem deve se submeter aos grandes avanços do momento,
incluindo as refeições em pílulas.
Em vez das pessoas terem prazer com a comida, os
alimentos passariam a ser algo controlado e reduzido aos seus componentes. Eles
deixariam de ser nutrição para a alma, servindo apenas para sustentar a vida. E
os homens deveriam simplesmente engolir a pílula quando chegasse o futuro da
alimentação.
A ficção científica adorava esta espécie de visão
tecnocrática e disfuncional, que sempre surgia quando o assunto eram as pílulas
de comida.
No livro O Que Iremos Comer Amanhã? Uma
História do Futuro da Alimentação (Ed. Senac São Paulo, 2001), o autor
Warren Belasco escreve: "embora a maioria das pessoas prometa e espere que
nunca irá precisar de pílulas para se alimentar, elas imaginam que as gerações
futuras irão se adaptar ao que a 'ciência encontrar' – pílulas, algas ou outros
horrores distópicos".
·
As pastilhas ganham terreno
Mas este comportamento submisso desapareceu nos
anos 1960. Ele foi substituído pela tecnoutopia, dirigida pelo glamour e pelo
entusiasmo da corrida espacial.
Na era das viagens espaciais, as pílulas de comida
eram consideradas a próxima etapa lógica da evolução dos alimentos – a última
palavra em eficiência e um triunfo do homem sobre a natureza.
Enquanto isso, no espaço, astronautas em cápsulas
experimentais sugavam alimentos
do interior de bolsas de prata, longe da superfície do planeta. Os
pós espaciais podiam ser reidratados na forma de gel, para que não vazassem
para o interior das delicadas cápsulas. Elas forneciam refeições
nutricionalmente completas que podiam ser ingeridas através de canudos.
Na Terra, crianças e adultos queriam fazer parte
desses avanços. Barras embaladas em papel-alumínio e refrescos em pó, como
o Tang, ganhavam
status e popularidade. E o surgimento de alimentos condensados e desidratados
trouxe as pílulas de comida de volta para o menu dos personagens do futuro.
Tudo isso, aliado à chegada dos jantares em frente
à TV e aos temores sobre a segurança
alimentar durante a Guerra Fria, fez com que as ilustrações dos alimentos do
futuro também sofressem um renascimento.
Um exemplo foi a tira em quadrinhos Our New
Age ("Nossa nova era", em tradução livre), publicada em mais
de 110 jornais de várias partes do mundo entre 1958 e 1975.
Uma edição da tira, publicada em 1965, apresentou
os alimentos sintéticos do futuro como a resposta para a crise alimentar do
planeta. Dividida em quatro quadros, a tira colorida registrou as mudanças da
evolução dos alimentos.
O primeiro quadro explicou como os seres humanos
caçavam feras selvagens e coletavam plantas silvestres para sua alimentação, 9
mil anos atrás. O painel seguinte afirma que os alimentos sintéticos são apenas
a próxima etapa da agricultura moderna, permitindo que a ciência alimente uma
população crescente que não é atendida pelos métodos da agricultura
tradicional.
O último quadro da tira afirma, triunfante, que os
químicos poderiam construir fábricas eficientes para "atender toda a
escassez de comida em qualquer parte do mundo".
·
A impossibilidade
Da mesma forma que, em 1928, o presidente
americano Herbert
Hoover (1874-1964) ganhou as eleições prometendo "uma galinha em
cada panela", a promessa dos anos 1960 parecia ser "uma pílula de
comida em cada bolso".
Mas, como acontece com muitas visões do futuro, a
pílula alimentar deixou de ser um objeto de fascinação para ser ridicularizada.
No anos 1960 e 1970, desenhos animados como Os Jetsons e
filmes como O
Dorminhoco (1973) jogaram um balde de água fria sobre a ideia,
ridicularizando os sonhadores do passado.
A questão, naturalmente, é que produzir uma pílula
de comida simplesmente não é possível. Programas militares criaram rações cada
vez mais comprimidas e pílulas que podiam ajudar a saciar a fome, mas a ideia
de uma pílula com uma refeição de três pratos permanece tão remota quando a
descrição de Nova York no filme Fantasias de 1980.
Mas talvez nós sempre soubéssemos disso. Em 1936, o
jornal Jefferson City Post-Tribune publicou um artigo com as opiniões de um
certo Dr. Milton A. Bridges, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos.
O autor declarava que "os seres humanos nunca
irão comer pílulas como refeições... as pílulas nunca podem conter volume
calórico suficiente".
Para ele, "é perfeitamente plausível fornecer
todas as vitaminas e minerais necessários para uma alimentação na forma de
pílulas, mas você não consegue calorias sem comer comida".
Aparentemente, a ideia da refeição em pílulas
seduziu as pessoas, mas a realidade é bem mais difícil de engolir. Foi
certamente o que aconteceu em 1944, quando o clube de mulheres de Missouri, nos
Estados Unidos, promoveu um jantar do "Ano 2000".
Foram servidas diversas pílulas de refeição:
pílulas de tutti-frutti, uma pílula marrom para o prato com carne e uma bolinha
de chocolate em miniatura como sobremesa. As mulheres, sem dúvida, gostaram de
"brincar de futuro", até que foram mordidas pela realidade.
Os relatos da época contam que, depois das pílulas,
todas elas se renderam ao café e comeram vários sanduíches. As pílulas
simplesmente não foram suficientes para satisfazê-las.
Fonte: BBC Future
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