Fraude na Amazônia: moradores querem saber para onde vai o dinheiro do
crédito de carbono
A Defensoria Pública do Estado do Pará entrou com
três ações civis na Justiça contra empresas e pessoas físicas envolvidas em
três projetos de crédito de carbono na zona rural de Portel, município de
tradições ribeirinhas localizado no arquipélago do Marajó, a 264 km de Belém.
Entre as irregularidades apontadas pela Defensoria,
está a violação do direito territorial das comunidades que vivem em parte das
áreas usadas pelos projetos, além da violação do direito dessas comunidades de
serem consultadas de forma livre, prévia e informada sobre os projetos.
Essas iniciativas geradoras de créditos de carbono
estão, em parte, sobrepostas a cinco assentamentos dos chamados Projetos
Estaduais Agroextrativistas (PEAEX). São terras públicas estaduais tituladas
pelo governo do Pará, onde vivem pelo menos 1.484 famílias ribeirinhas em
comunidades dispostas ao longo das margens dos rios que cortam o município. No
total, os cinco assentamentos somam mais de 3.300 km2 (o equivalente à área de
duas cidades de São Paulo) de florestas públicas.
Os projetos, no entanto, não tiveram qualquer
autorização dos órgãos estaduais para se instalarem nessas áreas.
O g1 viajou até Portel e percorreu cerca de 400 km
pelos rios Anapu e Pacajá para ouvir lideranças e moradores das áreas. Os
entrevistados afirmam que os representantes das empresas não disseram que os
projetos eram de crédito de carbono e que eles também não trabalharam junto com
associações comunitárias e organizações que já atuavam na região.
“Um dos questionamentos que fazíamos era quem
financiava o projeto. E eles não quiseram dizer para gente. Também não disseram
quem era o coordenador, o dono da empresa, só diziam ser uma ONG”, conta
Gracionice Silva, hoje presidente da Associação dos Trabalhadores
Agroextrativistas do Alto Pacajá, que representa um dos assentamentos.
“Nós não somos contra projetos de crédito de
carbono, mas da forma com que está sendo feito, o dinheiro está indo a gente
não sabe nem para o bolso de quem”, diz ela.
A falta de transparência e clareza dos
representantes dos projetos também é um traço comum nos relatos colhidos pelo
g1.
Os moradores contam que, ao longo dos anos, grupos
diferentes de pessoas apareciam nos territórios sempre se comportando de
maneira evasiva a respeito de quem representavam, como eram financiados e quais
eram seus objetivos.
Na abordagem às comunidades, eles ofereciam a
emissão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) como se fosse um título de terra
(mais abaixo).
Acontece que o CAR é um cadastro público eletrônico
auto declaratório obrigatório para todos os imóveis rurais para prestar
informações ambientais e não equivale a um documento de posse da terra.
• VEJA
O QUE DIZEM OS CITADOS
Os três projetos foram registrados em 2020 e 2021
pela Verra, principal certificadora internacional, e vendem há anos créditos de
carbono a empresas que querem compensar suas emissões de gases do efeito estufa
-- são centenas de compradoras, entre elas estão empresas mundialmente
conhecidas, como Air France, Boeing, Braskem, Toshiba, Samsung UK, as
farmacêuticas Bayer e Takeda, e até o Liverpool, time de futebol inglês.
Consultadas pela reportagem, as multinacionais alegam, de forma geral, que não
tinham conhecimento das irregularidades apontadas pela Defensoria (veja mais
aqui).
Cada contrato de compra e venda de crédito de
carbono é negociado de forma privada entre as partes. Assim, não é possível
saber exatamente quanto os projetos lucraram com a venda dos créditos.
Em 2021, quase 1,4 milhão de créditos de um dos
projetos, o Pacajaí, por exemplo, foi usado por empresas para compensar
emissões. Naquele ano, o valor médio global dessa categoria de crédito de carbono
foi de US$ 5,80, segundo a Ecosystem Marketplace. Assim, num cenário
completamente hipotético em que todos esses créditos tenham sido vendidos a
este valor em 2021, seriam mais de US$ 8,1 milhões. O projeto Pacajaí
comercializa créditos desde pelo menos 2015.
• Abordagem
nas comunidades: uso do CAR
Lauro dos Santos, morador de assentamento na região
do rio Anapu, segura Cadastro Ambiental Rural (CAR) individual expedido por
representantes dos projetos de crédito de carbono. — Foto: Giaccomo Voccio/g1
Segundo as lideranças locais ouvidas pela
reportagem, os representantes dos projetos se valeram de um momento em que a
regularização fundiária dos assentamentos ainda estava em andamento. Nesse
contexto, eles se aproximavam das famílias oferecendo o Cadastro Ambiental
Rural como se fosse o equivalente ao documento de posse de terra.
Acontece que em áreas de assentamentos estaduais, o
CAR é expedido de forma coletiva -- e não individual.
“Em 2017, percebemos um fluxo maior de pessoas
estrangeiras, que já não falavam o português, entrando nos territórios. Em 2018
e 2019, eles saíram para campo e começaram a abordar as famílias para fazer
demarcação de áreas com coordenadas geográficas”, conta Gracionice. Ela diz
que, em 2020, o fluxo de pessoas de fora das comunidades se intensificou. Elas
“pressionavam” as famílias para fazer o CAR.
“Nós vivemos em uma região que a regularização
fundiária é muito precária”, afirma Nilson Silva, dirigente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Portel, que auxiliou o governo estadual no processo de
regularização fundiária.
“Então, quem chega com um documento dizendo que é
um documento de terra, as famílias acabam acreditando. Dê um documento para uma
família ribeirinha guardar e volte 50 anos depois que você vai encontrar”.
De fato, o g1 conversou com moradores que ainda
guardam cadastros expedidos por representantes dos projetos -- atualmente, eles
já sabem que os documentos que receberam são irregulares. Na época, muitos
ouviram que o cadastro era uma "segurança" para a terra de cada um,
como se fosse um registro, e que, com ele, poderiam obter empréstimos em
bancos.
“Vai servir para, por exemplo, quando tu quiser
fazer um projeto no teu terreno, tu já pode apresentar esse CAR lá no banco”,
relata Marsivan Lima, morador da região do rio Pacajá.
A reportagem também ouviu moradores que se negaram
a assinar os papeis apresentados por essas pessoas. Um deles, que prefere não
se identificar por medo de represálias, disse que não queria dividir a área
onde ele vive com o irmão e cinco filhos.
“Nós começamos a receber famílias no sindicato que
diziam: ‘estão querendo dividir a minha terra, me deram um documento, esse
documento tem validade?’”, relata Nilson Silva. “E a gente sempre explicava que
o Cadastro Ambiental Rural é um documento ambiental declaratório, mas não é
documento de terra”.
Outro morador da região do rio Anapu, que também
prefere o anonimato, contou que a emissão dos cadastros provocou conflitos
entre vizinhos -- relato corroborado por outros entrevistados. Isso porque os cadastros
eram de até 100 hectares, mas nem todos os moradores vivem em áreas desse
tamanho exato. Então, em alguns casos, os representantes dos projetos
demarcaram pedaços de vizinhos.
Além disso, os moradores relatam que os
representantes dos projetos também adentraram os terrenos demarcando áreas de
floresta para além dos 100 hectares. Essas áreas, no entanto, não foram
colocadas em nome dos ribeirinhos.
“O que ficasse para dentro da floresta, eles já
transferiam para o nome de alguém das empresas”, disse Gracionice Silva. “O
resto das áreas eles já diziam que era deles”, contou um dos moradores que
prefere o anonimato.
“O Cadastro
Ambiental Rural foi usado de forma ilegal, sendo vendida para as comunidades a
imagem de que se tratava de um benefício social gerado pelos projetos”, explica
a defensora pública agrária Andreia Barreto, autora das ações na Justiça.
Segundo ela, os cadastros foram usados pelos
representantes do projeto como forma de tentar legitimar o processo junto às
comunidades.
Após as denúncias dos moradores, a Secretaria de
Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) cancelou mais de 200
cadastros. Segundo a secretaria, o órgão identificou que apenas duas pessoas
foram responsáveis pela inscrição de mais de 60% dos CARs em Portel, o que foge
ao padrão do restante do Estado.
• ‘Fogãozinho’
que ‘não serve’
Perguntados se os representantes dos projetos
explicavam o por quê da oferta gratuita de emissão do CAR e o que eles diziam
querer em troca, os moradores locais contam que não foram informados.
“O que eles cobravam em troca? Só a assinatura da
pessoa como apoiador. Tinha que dar assintura para fazer o projeto e aí nesse
projeto estava o CAR dando direito a 100 hectares para cada ribeirinho”, disse
um dos moradores que preferiu não se identificar.
Outro morador do rio Anapu, que também quis
resguardar a identidade, conta que ele e outros receberam um “fogãozinho” como
suposto benefício.
O g1 encontrou esses fogões em mais de uma casa.
São fogões bem pequenos, que podem ser carregados com duas mãos, abastecidos
por, no máximo, alguns feixes de madeira. Os moradores ouvidos são unânimes em
dizer que os fogões são inúteis.
“Para nós
aquilo não serve. Eu acho que eles pensaram que a gente era muito atrasado com
as coisas, né? Mas a gente faz melhor que isso aqui”, disse Nilton de Oliveira,
que vive nas margens do rio Anapu.
O projeto identificado na Verra como Rio
Anapu-Pacajá menciona a entrega de fogões em sua documentação, dizendo que
seriam “fogões ecológicos”. Já os projetos Pacajaí e RMDLT dizem nos documentos
que ofereceriam “fogões eficientes para a produção de farinha de mandioca”. A
reportagem não encontrou vestígios desse tipo de estrutura.
• ‘Não
abrir roça’
Não apenas os projetos não trouxeram benefícios
palpáveis para as famílias locais, como ainda tentaram coibir as atividades dos
moradores locais.
“Falaram para a gente não fazer roça na parte de
mata”, contou Lauro dos Santos, ribeirinho que vive nas margens do Anapu.
O relato dele foi repetido por vários outros
moradores ouvidos pelo g1. Alguns deles chegaram a ser informados que
receberiam um pagamento por isso -- outros, não ouviram nada sobre remuneração.
“Eles falavam que era para preservar a floresta,
para ninguém cortar, que iam fazer salário para todos os ribeirinhos para não
mexer na floresta e que aí só poderia criar abelha”, relata um deles.
Nenhuma dessas promessas se concretizou. Não houve
pagamento às famílias. Atividades de treinamento e material para criação de
abelhas também não aconteceram, dizem os moradores.
Marsivan Lima, da região do rio Pacajá, conta que
as pessoas que lhe ofereceram o CAR também disseram que era para evitar
desmatar, fazer queimas, caçar e pescar.
“Mas eu não obedeci nada, porque se eu fosse ficar
esperando aquilo, eu estava passando fome, porque eu não poderia fazer minha
roça, do que eu ia viver?”, questiona ele, relatando que recebeu uma cesta
básica -- “negocinho pouquinho dentro de um saquinho, só”.
• Sem
consulta
Moradores em comunidade ribeirinha em área de
assentamento estadual em igarapé no rio Pacajá, em Portel (PA). — Foto:
Giaccomo Voccio/g1
Lideranças e moradores locais afirmam que em nenhum
momento as famílias foram devidamente consultadas a respeito dos projetos.
Os representantes das iniciativas sequer explicaram
que estavam fazendo projetos de crédito de carbono. De todos os entrevistados
pela reportagem, apenas um deles ouviu o termo por parte dos envolvidos nos
projetos
“Eles só vieram falar isso depois que eu sentei com
eles durante duas horas, fazendo pergunta: que que isso vinha trazer para nós e
para eles também? Com que interesse faziam isso? Só aí começaram a explicar
justamente que era sobre esse gás carbônico”, contou Nilton.
“As comunidades foram saber o que eram esses
projetos, quando a gente foi para lá informar”, diz Nilson Silva, do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Portel. Em novembro de 2022, a ONG WRM produziu um
relatório sobre os projetos em Portel, publicado pelo site Intercept.
“Não houve consulta, não foi feita nenhuma reunião
de base. O que foi feito foi essa aproximação dos representantes dos projetos
falando: ‘trouxe um fogão, trouxe um documento de terra, trouxe cesta básica,
se vocês aceitaram é só assinar aqui’. Mas não era para cesta básica, eram
assinaturas para autorizar o projeto”.
Em áreas de comunidades tradicionais, a legislação
internacional a qual o Brasil se submete determina que antes de qualquer ato
administrativo que afete o território é preciso realizar uma “consulta livre,
prévia e informada”, o que, segundo também aponta a Defensoria, não aconteceu.
Em tese, projetos de crédito de carbono deveriam
beneficiar as comunidades que vivem nas áreas das iniciativas, seja por meio de
remuneração direta, destinando um percentual da venda dos créditos para as
famílias, seja por meio de outros benefícios, como atividades de capacitação.
Não é o que parece estar acontecendo no caso dos projetos em Portel.
Segundo as lideranças locais ouvidas pela
reportagem, os moradores dos assentamentos não receberam nenhum centavo da
venda dos créditos de carbono gerados pelos projetos.
• Os
benefícios se limitaram a:
• Distribuição
de cestas básicas, camisetas e dos fogões à lenha
• Produção
de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) individuais, apresentados como se fossem
documentos de titularidade da terra -- o que não corresponde à realidade.
Para o engenheiro florestal Carlos Augusto Ramos,
doutorando no Instituto Amazônico de Agriculturas familiares da UFPA, a ameaça
de rentismo é real: “empresas internacionais começam a negociar créditos de
carbono não gerando riquezas para o local, e sim apenas para especulação”,
afirmou ele em entrevista ao g1.
• 'Quem
protege a floresta somos nós que habitamos aqui'
Em julho, o Ministério Público Federal, em conjunto
com o Ministério Público do Estado do Pará, publicou uma nota técnica com
orientações para a proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais
no mercado de carbono. Os órgãos recomendam que:
• o
direito à consulta livre, prévia e informada seja resguardado
• os
contratos de crédito tenham intervenção estatal
• a
repartição de benefícios advindos pelos projetos seja feita respeitando a
autonomia dos povos e comunidades tradicionais
• as
empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono criem auditorias
que comprovem a garantia dos direitos das populações locais e ouvidorias
externas para o encaminhamento de denúncias
Em setembro, foi apresentada a versão mais recente
de um projeto de lei que pretende regulamentar o mercado de crédito de carbono
no Brasil.
O texto, em análise pelo Senado e construído em
conjunto com o Executivo, tem um capítulo específico para tratar do mercado de
carbono voluntário em áreas de comunidades tradicionais -- caso dos projetos em
Portel -- e prevê a obrigatoriedade do consentimento das comunidades “resultante
de consulta livre, prévia e informada”, além de “definição de regra para a
repartição justa e equitativa” e gestão participativa dos eventuais ganhos da
comercialização dos créditos.
“Se tiver que ter algum projeto de crédito de
carbono que vá ajudar na preservação ambiental da floresta, o recurso deve
ficar com a comunidade, com as famílias, porque assim elas vão ter recursos
para subsistência e até mesmo para fazer outras coisas sustentáveis”, diz
Nilton Silva, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel.
Para Gracionice Silva, da Associação dos
Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, e outros moradores ouvidos,
esse tipo de pagamento possibilitaria que as comunidades investissem em
infraestrutura, com ganhos para a saúde e para a educação, além de poder trazer
recursos para melhorias nos sistemas de plantio e na condição financeira das
famílias ribeirinhas.
“Se ainda tem floresta assim aqui, se ainda tem
algum recurso natural que essas empresas precisam para estarem ganhando e
faturando, somos nós os responsáveis por manter essa floresta viva”, diz ela.
Fonte: g1
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