Elas são referência nas lutas feministas. Agora, querem a
descriminalização do aborto
“Em um momento, você está estudando pessoas que são
referência. No outro, está ao lado delas”, disse, emocionada, Sofia Amaral, 22
anos, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM), da UFMG. A
pesquisadora falava para um plenário ocupado por feministas de várias regiões,
durante seminário da Frente Feminista Antirracista, no último dia 28, na Câmara
dos Deputados. Ali estavam militantes históricas pela igualdade de gênero do
país.
Lúcia Xavier, do coletivo Crioula, Bruna Benevides,
da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e Comba Marques, da
Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), têm longas e distintas
trajetórias nos movimentos sociais. Juntas, elas convergem nas lutas contra
preconceitos e pela conquista de direitos, entre eles a autonomia de
interromper a gravidez de forma legal e segura no Brasil. Suas presenças foram
celebradas durante as programações no seminário, que marcou o dia de luta pela
descriminalização do aborto, em Brasília.
Mais de 30 anos de movimento feminista negro
fizeram de Lúcia Xavier (64) não apenas uma expectadora, mas uma agente ativa
das transformações dos direitos das mulheres nos últimos anos. Em 1992, ela
criou a ONG Criola, para promoção de direitos de mulheres negras, onde ocupa o
cargo de coordenadora geral. Ainda na adolescência, já atuava na defesa de
direitos de jovens em situação de vulnerabilidade, no Rio de Janeiro.
No Brasil, onde estudos apontam que mulheres negras
estão entre as mais vulneráveis a abortos inseguros, Xavier lembra que, para
mulheres negras, mesmo as conquistas feministas não garantem uma vitória
completa. “Estamos em uma estrutura de uma sociedade racista, patriarcal e
heteronormativa. Mesmo que a gente dê alguns passos, as desigualdades entre
nós, mulheres negras e brancas, e de outros grupos, nos obrigam a ficar em
constante defesa dos nossos direitos.”
A coordenadora da ONG Criola lembra de outras
batalhas por direitos, que, assim como a da descriminalização do aborto, foram
disputadas passo a passo. “A instituição do divórcio no Brasil levou mais de 20
anos para que a lei fosse aprovada e constituída como um direito para as
mulheres”, diz. “Então, mesmo que o direito ao aborto se torne uma realidade,
ainda será manter uma luta constante para que não se tenha barreiras para o
acesso”, considerou.
Bruna Benevides, 43 anos, secretária de articulação
política da Antra, se afirma feminista e diz que a pauta do aborto é urgente
também para a comunidade trans. “Porque vai garantir a vida e saúde de homens
trans, pessoas transmasculinas e não binárias, e também porque parte
considerável da nossa comunidade tem útero e pode gestar, mas também não tem
acesso ao aborto seguro. A criminalização invisibiliza outros corpos e
identidades que fazem aborto clandestino, que acabam se colocando em risco por
falta de acesso e garantia de proteção.”
De Fortaleza (CE), Benevides chegou a ser afastada
do posto de sargenta da Marinha quando se declarou mulher trans. Há pelo menos
dez anos, ela atua na defesa de direitos de travestis e pessoas trans pautada
na perspectiva feminista. Esteve, por exemplo, na fundação do Fórum Estadual de
Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro.
“Entrei na militância e no ativismo quando
compreendi que a mesma estrutura que me colocava em vulnerabilidade devido ao
meu gênero, colocava a população trans inteira”, contou. Ela compreende que a
descriminalização do aborto deve ser uma luta importante também para a
comunidade trans.
“Sobretudo
quando a gente pensa em mulheres negras de periferia, mulheres trans,
travestis, que têm os seus relacionamentos com pessoas que gestam. Existem
mulheres trans lésbicas, mulheres trans que estão casadas com homens trans.
Embora essa seja uma pauta prioritária para as mulheres cisgêneras, ela não é
exclusiva. Isso é importante para que a gente não acabe dificultando o acesso
de outras pessoas que também estão em vulnerabilidade, enfrentando riscos e
violências, e que seguem invisíveis para a luta por justiça reprodutiva”.
“A gente tá sempre começando de novo”, diz Comba
Marques, presidente do conselho executivo da organização feminista Cépia e
juíza aposentada da Justiça do Trabalho. Prestes à completar 77 anos, e com um
currículo de mais de 40 anos de luta feminista, ela foi uma das protagonistas
na luta por direitos das mulheres na Constituição de 1988, movimento conhecido
como Lobby do Batom, coordenando nacionalmente a Campanha da Mulher pela
Constituinte.
Antes da Constituição Federal de 1988, as mulheres
já tinham conquistado direito de voto no Brasil. Mas todo o resto do cenário
era muito desfavorável. O Código Civil daquela época dizia, por exemplo, que a
mulher era subordinada ao homem e que o marido era o chefe da sociedade
conjugal.
Comba Marques, presidente do conselho executivo da
organização feminista Cépia
“Nós conseguimos incluir que homens e mulheres são
iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição. Inserimos também
os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal como exercidos pelo homem
e pela mulher”, diz Marques. “Também conseguimos escrever sobre direitos
reprodutivos no Artigo 196, que cuida da saúde. Ainda conseguimos inserir a
questão da violência doméstica, em um parágrafo que diz que o Estado tomará
medidas para coibir violências nas relações de família. Isso deu origem aos
dispositivos posteriores de amparo, como a Lei Maria da Penha”, listou.
O que Marques quer agora é tirar o aborto do roll
de crimes e fortalecer, na área da saúde, a assistência a todos os métodos
reprodutivos. “A Constituição tem toda possibilidade de acolher a
descriminalização do aborto no Brasil”.
Marques começou sua trajetória no Centro da Mulher
Brasileira, na década de 1970, quando tinha acabado de se formar advogada.
Nessa época, ela já defendia a descriminalização do aborto e não imaginava que
ainda estaria lutando por isso em pleno ano de 2023. “Muitas vezes sinto como
se estivesse pior do que na época da ditadura militar, por causa do recuo
civilizatório que tivemos no Brasil, nos últimos anos, com esse Congresso
conservador. Mas não digo isso pra desanimar, não. Feminista nunca desanima, a
gente busca novos caminhos”.
Fonte: Por Mariama Correia, da Agencia Pública
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