Bicicletas na mira do “imposto do pecado”
Para muita gente, a bicicleta aparece na vida
durante a infância, com duas rodinhas de apoio no pneu traseiro. É uma
companheira simpática, que atende aos momentos de lazer e à necessidade de
transporte. Agrada a ambientalistas – porque não polui –, a médicos – porque
exercita o corpo – e a urbanistas – porque não congestiona as cidades.
Bicicletas são quase tão populares quanto labradores. Por isso, foi natural o
espanto de muitos ciclistas quando receberam a notícia de que, na reforma
tributária recém aprovada pela Câmara dos Deputados, a magrela foi incluída no
chamado “imposto do pecado”, uma sobretaxação criada para desestimular o
consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros,
bebidas alcoólicas, combustíveis fósseis, entre outros.
O “imposto do pecado” atende, oficialmente, pelo
nome de imposto seletivo. Como o texto da lei ainda está em debate no
Congresso, não se bateu o martelo sobre quais produtos serão sobretaxados. Mas
uma das últimas versões do texto bastou para assustar ciclistas e fabricantes
de bicicletas. “No parágrafo 92B foi incluída a possibilidade de incidência do
imposto seletivo em bens que são produzidos fora da Zona Franca de Manaus e que
competem com aqueles que são fabricados lá”, explica o advogado Murillo
Allevato. Ou seja: como há fabricantes de bicicletas dentro da
Zona Franca de Manaus, todos os fabricantes que estão fora da
Zona Franca – a grande maioria – poderão ser atingidos pela taxação.
“Não se
trata de ser contra o imposto seletivo, que é uma boa ideia, nem contra os
benefícios para manter a Zona Franca de Manaus competitiva, mas do uso de um
instrumento errado para sobretaxar a produção de bicicletas”, reclama Allevato.
Ele trabalha no escritório Bichara Advogados, que presta serviços para a
Aliança Bike, entidade que representa todo o ecossistema de produção, venda e
utilização de bicicletas no Brasil.
O polêmico parágrafo 92B não constava no texto
original, apresentado pelo deputado federal e presidente do MDB Baleia Rossi.
Mas ao longo das discussões, como a bancada amazonense pressionava por medidas
protetivas à Zona Franca, o acréscimo acabou aparecendo. Ele consta no
relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), aprovado em julho na Câmara e
que agora tramita no Senado.
Ribeiro, expoente do Centrão, ex-ministro das
Cidades de Dilma Rousseff, concorda que é um contrassenso incluir as bikes no
imposto seletivo. “Foi uma solução pactuada para a aprovação. Mas pode escrever
aí que não será cobrado das bicicletas”, afirmou à piauí. Como não foi possível
até agora alterar o tal parágrafo, já se discute maneiras de driblá-lo. Segundo
Ribeiro, está em curso uma conversa com o Ministério da Fazenda sobre a
possibilidade de se criar outros benefícios que compensem a sobretaxação dos
fabricantes de bicicletas.
O ex-deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), autor de
várias emendas que buscam proteger a Zona Franca, acha que não será preciso
tanto esforço. A seu ver, o imposto seletivo não apenas é insuficiente para
proteger a indústria manauara como, da forma como foi redigido, não deve ser
bem aceito pelos parlamentares. A reforma tributária pode até ser aprovada da
forma como está, diz ele, mas, na hora de aprovar a lei complementar que vai
regular o novo imposto, deve haver chiadeira. “Não acredito que as bancadas dos
outros estados vão aprovar uma lei que tribute a produção em todos eles para
resguardar a competitividade dos produtos de Manaus”, pondera o ex-parlamentar.
De todo modo, Ramos vê uma brecha no texto: nos
termos em que está escrito, pode-se entender que a taxação se aplica não sobre
toda a indústria, mas só sobre os modelos de bicicleta que competem diretamente
com aqueles produzidos em Manaus. As bicicletas que saem da Zona Franca são, em
geral, mais sofisticadas e têm preços acima da média.
As bicicletas brasileiras viveram um processo de
modernização nas últimas décadas. Daniel Guth, um homem de cabelo e barba
loiros, diretor executivo da Aliança Bike, uma associação que visa à promoção
das magrelas no Brasil, diz que já não é tão simples diferenciar bicicletas
populares dos modelos top de linha. “Até os anos 1980, as bicicletas populares
não tinham marchas e eram de aço, por exemplo. Hoje, a maioria dos
equipamentos, inclusive marchas e quadros de alumínio, fazem parte das mais
baratas produzidas no país”, diz Guth, que também é pesquisador na área de
mobilidade urbana. A diferença dos modelos, hoje, é mais sutil: está na
qualidade, na tecnologia e no peso do produto. “Nós, na Aliança, trabalhamos
com preços para diferenciar as categorias das bicicletas, e consideramos que
são populares aquelas que custam até 2.500 reais.”
O temor de Guth e outros representantes do setor é
que o novo imposto, caso se confirme, venha a atingir justamente a faixa de
preços populares, que representa quase 80% do mercado nacional. “Não existem
fabricantes de bicicletas desse tipo na Zona Franca de Manaus”, alega Guth. O
consumidor médio de bicicletas, segundo ele, não é atleta nem usufrui do
mercado de luxo: são pessoas que usam o veículo como meio de transporte nas
periferias das grandes cidades ou em pequenos municípios onde não há transporte
público. Soma-se a esse grupo o batalhão de entregadores de aplicativo.
A notícia sobre o “imposto do pecado” pegou os
ciclistas no contrapé. Enquanto o texto tramitava na Câmara, a Aliança Bike
vinha justamente tentando emplacar, em Brasília, uma redução nos tributos sobre
bicicletas. Segundo os cálculos da associação, os impostos chegam a responder
por 72% do preço de fabricação das magrelas. É uma proporção muito superior à
do setor automobilístico, por exemplo. Uma estimativa feita em 2021 pela
Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea) e publicada na
revista Quatro Rodas mostrou que os impostos correspondiam a
cerca de 40% do valor de um carro novo em São Paulo, com motor entre 1.0 e 2.0
flex. As montadoras, além de arcar com menos impostos, proporcionalmente, são
agraciadas aqui e ali com incentivos federais e estaduais.
Assim como os carros, as bicicletas dependem de
equipamentos importados, cuja produção não existe no Brasil ou é insuficiente.
Isso explica os gastos elevados com impostos. Uma articulação da Aliança
conseguiu zerar a taxa de importação de parte desses produtos – em alguns casos,
provisoriamente, para cobrir a demanda nacional; em outros, definitivamente,
quando se tratava de peças que só são produzidas em países do Sudeste Asiático.
Mas nada disso foi suficiente, até aqui, para mudar
o quadro geral. Daniel Guth é da opinião de que o Estado deveria aliviar a
carga tributária para estimular o Brasil a duas rodas. Sua associação, a
Aliança Bike, tem feito levantamentos sobre o impacto das ciclovias nas cidades
e o cicloturismo. Está marcada para os próximos dias uma reunião com representantes
do ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, para
discutir possíveis ciclorrotas em unidades de conservação abertas à visitação.
Ao se inteirar do projeto que incluiu as bicicletas
no rol de produtos malquistos da reforma tributária, a Aliança Bike sugeriu uma
emenda para contornar o problema. Fazendo um pequeno acréscimo ao texto, propôs
excluir a possibilidade de que o “imposto do pecado” recaia sobre produtos que
beneficiam o meio ambiente e a saúde. A proposta deve ser entregue no Senado em
algum momento nas próximas semanas.
Enquanto isso, corre um abaixo-assinado promovido
por Guth e seus colegas que já angariou 25 mil assinaturas. A campanha se chama
#SalveaBike e é ilustrada com imagens como a de uma bicicleta formada por
cigarros. “É assim que a reforma tributária enxerga a bicicleta”, diz o site onde são colhidas as assinaturas. Os ciclistas estão em
polvorosa.
A boa notícia para eles é que, desde 2019, existe no
Congresso uma Frente Parlamentar em Defesa do Ciclista. O grupo tem 203
parlamentares e é coordenado pelo deputado Juninho do Pneu (PSD-RJ) – que,
embora tenha feito carreira no mercado automobilístico, vendendo pneus e alugando carros, promete tomar
providências para salvar as bicicletas. “Cobrar esse imposto sobre as bikes é
um verdadeiro absurdo”, declarou Juninho à piauí, destacando que a medida “vai
na contramão do que o mundo pensa sobre a utilização da bicicleta como uma
solução sustentável para diversos problemas da atualidade.”
O deputado disse estar a par da emenda proposta
pela Aliança Bike, e que está negociando sua inclusão no projeto de lei. Mas a
fila de pedidos é longa: o relator da reforma tributária no Senado, Eduardo
Braga (MDB-AM), recebe por todos os lados pedidos de alteração no texto. Há
peixes maiores do que a indústria ciclística se movimentando no Congresso. À
piauí, a assessoria de Braga disse que o senador não dá entrevistas sobre a
reforma.
Fonte: Revista Piauí
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