Um exame dos desafios da agricultura familiar
A agricultura familiar é
o resultado de séculos de marginalização:
A exploração do território que veio a se tornar o
Brasil se iniciou pelo extrativismo do pau-brasil da Mata Atlântica, mas só
ganhou presença física e ocupação com aquilo que muitos historiadores definem
como o primeiro empreendimento capitalista agrário no mundo, a produção de
açúcar de cana. O modelo deste ancestral do agronegócio marcou a história do
país, com a centralidade do trabalho de africanos escravizados no arcabouço do
conjunto da nossa economia e do espaço doméstico dos brancos.
Marcou mais ainda o espaço rural, com suas
propriedades gigantescas, a exploração de monoculturas e o desprezo pela
preservação dos solos e das condições ambientais. A extensão do território
criou a miragem da existência de recursos naturais infinitos que podiam ser
explorados até a exaustão e abandonados, desbravando-se a fronteira agrícola
sempre para o oeste. Ainda vivemos, em parte, este processo, com os mesmos
vícios de origem.
Se o latifúndio exportador foi o motor da nossa
economia até o século XX, saindo da cana para o algodão, o café, o cacau e
ainda o extrativismo da borracha, onde se situou a produção de alimentos? Os
brancos da Casa Grande importavam a base do que comiam, em particular o trigo,
mas como se alimentavam os escravizados? Dois modelos foram utilizados e
complementares: plantio de alimentos dentro dos latifúndios geridos pelos donos
do negócio, também operados com mão de obra escravizada ou; terceirização da
produção alimentar (mandioca, milho, feijão, …), em espaços “sobrantes”, não
ocupados pelos cultivos de exportação.
É a gênese da nossa agricultura familiar, cujos
produtores eram brancos e mestiços pobres ou remediados que também usavam mão
de obra escravizada. Esta característica da agricultura familiar, estar
localizada nas “beiradas” dos latifúndios ou nas áreas de desbravamento da
fronteira agrícola se manteve dominante em quase todo o território nacional ao
longo da nossa história. A exceção mais marcante foi a entrada forte da migração
europeia da segunda metade até o fim do século XIX, e ela concentrou-se na
região sul, em particular no Rio Grande do Sul e, com menor impacto, em Santa
Catarina e no Paraná.
Eram italianos, alemães, polacos, ucranianos,
russos, holandeses. Mais tarde vieram os suíços, que se estabeleceram no Rio de
Janeiro e os japoneses, que se dirigiram para o sudeste e o norte. Eram quase
todos camponeses, enfrentando a crise provocada pelo início da modernização das
grandes propriedades europeias que geraram desemprego de trabalhadores rurais e
quebra de agricultores familiares incapazes de competir com as novas empresas
modernizadas, sobretudo pelo uso de guano (importado do Peru e do Chile) como
adubo e a introdução de colheitadeiras de tração animal.
É necessário lembrar que uma parcela importante dos
escravizados evadiu-se dos empreendimentos da Casa Grande e se instalou no que
ficou conhecido como quilombo. Era uma economia agrária totalmente por fora
daquela da classe dominante e voltada para a produção alimentar das comunidades
de negros fugitivos. Ainda estamos contando quantas famílias de descendentes
destes quilombolas originais ainda subsistem em seus territórios, o último
censo apontando para mais de dois milhões de pessoas.
O modelo binário latifúndio/pequena propriedade, os
grandes produzindo para exportação e os pequenos para a alimentação do mercado
interno se manteve ao longo do tempo. Também se manteve o processo constante de
expansão dos latifúndios, sempre seguindo o rastro das áreas desbravadas pela agricultura
familiar nas fronteiras, tomando suas terras e empurrando-os sempre mais para
oeste.
Isto nos leva à situação mais recente, a da segunda
metade do século passado. O país rural que sai da crise dos anos 1930 e o
período da Segunda Guerra Mundial é fortemente sacudido pelo processo de
desenvolvimento urbano industrial, iniciado nos anos trinta na ditadura de
Getúlio Vargas. Este processo, caracterizado pela substituição de importações
industriais se acelera nos anos cinquenta e na ditadura militar. A atração dos
empregos urbanos, quer nas indústrias que se multiplicavam, quer na construção
civil urbana intensa (Brasília em primeiro lugar) ou nas infraestruturas
econômicas gigantescas (estradas, barragens, linhas de transmissão de
eletricidade, outras), combinada com a permanente pressão do latifúndio, as
condições miseráveis no campo e as crises ambientais levaram milhões de
produtores familiares a migrar.
Em três décadas, mais de 40 milhões de pessoas
mudaram seu domicílio do campo para as cidades, sobretudo as capitais e regiões
metropolitanas. De 1975 até 2017, a população rural continuou caindo, passando
de quase 40% para quase 14% da população total. O esvaziamento do mundo rural
praticamente extinguiu duas categorias de agricultor familiar que foram, por
muito tempo, parte da identidade do latifúndio: o morador (vivendo e produzindo
nos latifúndios) e o meeiro (trabalhando em contrato com os latifundiários).
Por outro lado, o eterno movimento de migração para
o oeste, desbravando a fronteira agrícola para depois ceder as novas áreas para
o avanço do latifúndio, foi alterado por um movimento novo e que provocou a
intensificação dos conflitos na região amazônica e no cerrado. A grilagem de
terras ultrapassou o movimento dos agricultores familiares nas margens da
fronteira agrícola e passou a disputar as terras não desbravadas à oeste. Isto
se deu pela construção das grandes estradas que passaram a cortar o norte e o
centro oeste, facilitando uma grilagem no atacado e se antecipando ao movimento
leste/oeste e sul/norte da agricultura familiar.
Na década de 1980 e início de 1990, quando o
movimento de urbanização passa por uma desaceleração, derivada da prolongada
crise econômica pós choques do petróleo de 1973 e de 1979, a agricultura
familiar já era, numericamente, um resíduo do passado. Apesar disso,
agricultura familiar chega no censo agropecuário de 1985 com um respeitável
papel de produtor de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros. No
entanto, é preciso lembrar que esta produção para o mercado interno era
altamente insuficiente para suprir as necessidades nutricionais da população.
Embora pouco falados, sobretudo pela censura da ditadura militar, os níveis de
insegurança alimentar (fome e má-nutrição) eram altíssimos e a produção era
contingenciada por uma demanda comprimida pela pobreza.
É neste período que começam a amadurecer os pesados
investimentos do regime militar na modernização do latifúndio, dando origem ao
que hoje se conhece como agronegócio. Ultrapassados os anos 80, quando a fonte
dos financiamentos de mão beijada do Estado foi suspensa, o agronegócio volta a
se expandir com força e, não por acaso, com a retomada dos financiamentos
estatais em créditos subsidiados e isenções de impostos, no governo de Fernando
Henrique Cardoso, mantidos e expandidos nos governos de Lula e de Dilma
Rousseff, de Michel Temer e de Jair Bolsonaro.
A agricultura familiar que hoje existe é o
resultado de vários fatores. O principal tem origem histórica: a agricultura
familiar está localizada, salvo bem definidas exceções, em ecossistemas menos
favoráveis à agricultura (nordeste semiárido, áreas alagadas na região norte,
áreas degradadas na região do Cerrado) ou em áreas marginais em ecossistemas
mais favoráveis como a Mata Atlântica e o Pampa. Vamos encontrar os
agricultores familiares em terrenos pedregosos, declivosos, com solos
degradados. Por outro lado, a espantosa concentração das melhores terras nas
mãos do agronegócio e do latifúndio no sentido estrito é, provavelmente, a
maior do mundo.
Pelo censo agropecuário de 2017, existiam no Brasil
5,07 milhões de propriedades rurais, ocupando uma área de 351 milhões de
hectares. Os estabelecimentos de tipo patronal (ou agronegócio) eram 1,2 milhão
(23,7% do total) e ocupavam 270 milhões de hectares (76% do total), com uma
área média de 225 ha. Já os agricultores familiares eram 3,87 milhões (75% do
total) e ocupavam 81 milhões de hectares (23% do total), com 21 hectares de
área média. Estes números macro apontam para a extraordinária concentração da
propriedade de terras no Brasil, mas eles escondem índices ainda mais
impactantes quando se detalha a posse de terras entre os menores e os maiores
produtores.
2,5 milhões de agricultores familiares (50% do
número total de produtores, grandes e pequenos) têm menos de 10 hectares e
ocupam 8 milhões de hectares (2,3% da área total), enquanto 51,2 mil grandes
proprietários (1% do número total) têm mais de mil ha cada um e ocupam 167
milhões de hectares (47,6% da área total). Se analisarmos em detalhe esta
camada de mega proprietários encontramos que apenas 2.450 dentre eles (0,85 %
do total de agricultores de todos os tipos) com área superior a 10.000 mil
hectares, ocupam 51,6 milhões de ha (15% da área de todas as propriedades
agrícolas no Brasil). A área ocupada por este punhado de mega proprietários é
6,5 vezes maior daquela ocupada por 2,5 milhões de AF com menos de 10 ha.
O crescimento exponencial do agronegócio dos anos
90 até agora teve um impacto negativo sobre a agricultura familiar, justamente
no período em que se estabeleceram as primeiras políticas públicas voltadas
para esta categoria, com a criação do MDA e do PRONAF, da política de ATER, do
seguro rural, do PAA e do PNAE. Foi também o período (1995/2015) em que a
política de reforma agrária ganha musculatura, criando 1.313.630 novos
proprietários familiares.
O censo de 2017 mostra que tudo isto foi
insuficiente para consolidar e ampliar o papel do campesinato na produção
alimentar. Comparando com o censo anterior, de 2006, a agricultura familiar
perde 470 mil propriedades, reduzindo-se a 3,87 milhões. Isto ocorreu apesar da
reforma agrária ter entregado terras a 400 mil famílias, neste intervalo. Em
outras palavras, o balanço entre assentados e os que abandonaram a agricultura
indica que perto de um milhão de famílias deixaram o campo. A área ocupada pela
agricultura familiar ficou mais ou menos a mesma da indicada no censo de 2006,
apontando para um ligeiro aumento da área média.
Já o agronegócio cresceu em número e em área
ocupada. De 2006 para 2017 somaram-se 366,5 novos proprietários e 16,8 milhões
de hectares.
Não só a agricultura familiar perdeu em número como
também perdeu no seu papel na produção de alimentos.
O censo indica que a participação da agricultura
familiar na produção de:
arroz caiu para 11%,
feijão fradinho para 34%,
feijão preto para 42%,
milho para 12,5%,
frango para 36%,
bovinos para 31%,
ovos para 9%,
trigo para 18%,
banana para 49%,
mandioca para 70%,
leite para 64%,
suínos para 34,5%.
Nas comodities a participação da agricultura familiar
ficou em:
9,3% para a soja,
35,4% para o café arábica,
50% para o café robusta,
7% para a laranja,
0,1% para o algodão,
1,9% para a cana de açúcar,
57% para o cacau.
Em termos de valor da produção (alimentar ou não) a
participação da agricultura familiar caiu de 33% em 2006 para 23% em 2017, uma
queda de 1/3, em 11 anos.
Em termos da ocupação de mão de obra, a agricultura
familiar perdeu 2,2 milhões de trabalhadores, caindo para 10,1 milhões de
ocupados, seja de membros da família ou contratados. Isto tem a ver com a
redução do número das propriedades familiares, mas também com o aumento da
mecanização nas lavouras em algumas culturas e regiões e da substituição dos
cultivos temporários por criação animal em outras. A mecanização se deu
sobretudo na região sul, que perdeu 28% do pessoal ocupado.
O número de propriedades familiares com trator
aumentou significativamente, chegando a 45% de todos os tratores em uso na
agricultura brasileira, agronegócio incluído. A diferença entre os grandes e os
pequenos está na potência dos tratores, 90% dos utilizados pelos segundos tendo
menos de 100 CV.
Embora os dados do censo não permitam generalizar o
tipo de mudanças técnicas na produção da agricultura familiar, várias
indicações de pesquisas acadêmicas indicam que houve uma forte mudança de
modelo produtivo. Nas regiões sul e sudeste, o aumento do uso de tratores e a
orientação do crédito para a produção de commodities, em particular
o milho e a soja, apontam para o abandono do modelo derivado da agricultura
tradicional, com policulturas e criações consorciadas e a adoção de
monoculturas empregando adubos químicos, sementes híbridas/transgênicas e
agrotóxicos. Em outras regiões, verificou-se uma queda nos cultivos alimentares
e uma expansão dos pastos plantados voltados para a criação de gado bovino.
Olhemos agora para a estruturação desta categoria
de agricultores familiares, tendo por base o tamanho das propriedades.
Os dados que passo a apresentar foram calculados
pela CONTAG e mostram a estrutura fundiária da agricultura familiar: (i) menos
de 10 ha: 2.090.000 (54%), incluindo 1% sem área própria; (ii) entre 10 e 50
ha: 1.354.500 (35%); (iii) eEntre 50 e 100 ha: 425.700 (11%).
O tamanho da propriedade não define,
obrigatoriamente, a condição econômica do produtor. Outros estudos, baseados na
renda média (RM) auferida, apontam para dados ainda mais preocupantes.
Grupo
I (extrema pobreza), com RM de menos da metade da RM
nacional da agricultura familiar: 2.244.600 (58%). Este grupo recebe 11% do
valor básico da produção (VBP) da agricultura familiar.
Grupo
II (pobreza), com RM entre metade e três vezes a
RM nacional: 1.277.100 (33%). O grupo recebe 21% do VBP da agricultura
familiar.
Grupo
III (remediados a ricos): com RM superior a três
vezes a RM nacional: 348.300 (9%). O grupo recebe 68% do VBP da agricultura
familiar.
Estes dados indicam que a riqueza auferida pela
agricultura familiar está muito concentrada em uma parcela de apenas 9% desta
categoria. Embora não exista correlação precisa entre tamanho de propriedade e
renda, há uma clara tendência de se aproximarem estes indicadores. Se
acrescentarmos à estes dados a distribuição geográfica da agricultura familiar
esta tendência fica ainda mais clara. Quase metade da agricultura familiar
(47,5%) se encontra na região nordeste e a grande maioria no semiárido,
contando 1.840.000, em números aproximados. Pelas dificuldades naturais do
clima na caatinga com instabilidade crescente de oferta hídrica e secas cada
vez mais frequentes e prolongadas podemos considerar que este grupo mais pobre
deve estar fortemente concentrado entre os agricultores familiares desta
região.
Para fazer uma síntese, este grupo de agricultura
familiar da região semiárida (nordeste e parte do sudeste), com menos de 10 ha
e, eventualmente, uma parcela dos que tem entre 10 e 50 ha, produzindo para o
autoconsumo e dependente de rendas externas (Bolsa Família, aposentadoria,
contribuições de familiares, trabalho fora, outras), empregando métodos
tradicionais de produção com baixa produtividade, deveria ser objeto do foco de
um programa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que discutirei em outro
artigo.
Especulo que este público deve integrar perto de
1,8 milhão de beneficiários. Deixo em aberto como deveríamos chamar estes
agricultores para não usar a categoria de miseráveis ou de extrema pobreza.
Minifundistas? É verdade que a maioria cabe nesta definição empregada pelo
INCRA, mas uma parcela escapa a este critério, que pretende combinar tamanho e
renda. Outros 400 mil agricultores familiares desta categoria de extrema
pobreza estão distribuídos por todos os outros biomas e as características
destes biomas deverão orientar programas específicos. Talvez o nome melhor seja
produtor de produtor tradicional de subsistência.
Um segundo grupo seria o dos proprietários com 10 a
50 ha, cujo número é quase igual ao grupo intermediário pelo critério de renda
média, muito embora isto não signifique uma exata coincidência. Com efeito, um
agricultor familiar pode ser remediado ou até rico e ter menos de 10 ha de terra.
Ou ser miserável com mais de 50 ha. Mas acredito que estas serão exceções à
regra que emparelha tamanho da propriedade e renda.
Este segundo grupo será bastante diversificado, com
os mais pobres se aproximando do grupo da extrema pobreza e os menos pobres se
aproximando dos remediados/ricos. Ele se caracteriza pela adoção de sistemas de
produção misturando práticas tradicionais e outras ditas modernas em proporções
variadas segundo a cultura e o local; pela produção para autoconsumo combinada
com produção para o mercado; pouco uso de maquinário; pouco acesso ao crédito
bancário; baixa produtividade; terras de má qualidade ou desgastadas; pouca
área disponível; vulnerabilidade climática, embora devendo ser menos grave que
na região semiárida.
Este grupo deve estar principalmente voltado para a
produção de alimentos para os mercados locais/microrregionais. Ele deve estar
distribuído em todas as regiões e chegar a um número total de 1,3 milhão de
agricultores familiares. Também não sei como chamar este grupo.
Um terceiro grupo seria o dos AF com RM superior a
três vezes a RM nacional. São considerados remediados ou até ricos; empregando
as técnicas da agroquímica; mecanizados; com acesso ao crédito bancário;
integrados às indústrias de transformação como moinhos de trigo e de milho,
produtores de rações, aves, suínos, leite, uvas, óleos vegetais, sucos, outras;
com áreas médias maiores do que 50 ha, embora uma parcela com 20 a 50 ha possa
estar nesta categoria.
Eles somam uns 400 mil agricultores familiares, com
forte concentração na região sul. Muitos destes agricultores se voltaram para a
produção de commodities, sobretudo soja e milho, e a região sul
absorveu mais de 50% do crédito distribuído pelo PRONAF na última década para
estes dois produtos. Este grupo, claramente, podia ser chamado de
agronegocinho, mas o nome é um tanto pejorativo e devíamos buscar outra
denominação. Quem sabe usamos produtor integrado/modernizado?
Este extenuante e impreciso estudo da
caracterização da agricultura familiar se fez necessário para podermos pensar
em propostas de políticas e programas diferenciados, tanto nos objetivos como
nos instrumentos a serem empregados. Isto vai ser o objeto de um artigo futuro,
depois de analisarmos as políticas adotadas entre 1996 e 2022.
Fonte: Por Jean Marc von der Weid, em Outras
Palavras
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