Risco de extinção: Em 6 anos, Brasil abate 62% de seus jumentos para
exportar para China
Desde 2008, a comunidade de Serra do Rosário, no
município de Sobral, região norte do Ceará, realiza o concurso do jumento mais
“enfeitado” da região. Na disputa, os criadores vestem os jumentos com
fantasias criativas e competem pelo prêmio em dinheiro. O organizador do
concurso, Audino Lopes, contudo, teme pela continuidade da festa. “Rodei em
alguns sítios e o jumento não tem mais. Não sei se daqui a alguns vou conseguir
fazer o concurso”, relata.
A percepção de Audino não é só impressão. Com base
nos dados oficiais, a população de asininos no Brasil - isto é, jumentos,
jegues, burros ou asnos, como são conhecidos regionalmente – caiu 62% entre
2017 e 2022.
Hoje, este animal que foi companheiro de trabalho e
meio de transporte no interior do país por séculos, corre risco de entrar em
extinção no Brasil devido ao abate para exportação, segundo especialistas.
Conforme dados do último Censo Agropecuário do
IBGE, em 2017 existiam 376 mil asininos no Brasil. De 2017 até julho de 2023,
pelo menos 237 mil asininos foram abatidos em frigoríficos autorizados,
conforme dados do Ministério da Agricultura.
Praticamente todo abate de jumentos no Brasil
ocorre na Bahia. O Ceará e o Piauí, nos últimos anos, aparecem nos dados do
Ministério da Agricultura como os dois principais “exportadores” de jumentos
para o estado.
Os abates ocorrem com objetivo de suprir a demanda
do mercado chinês por peles de jumento, utilizadas para a produção do ejiao, um
produto da chamada medicina tradicional chinesa. O ejiao é feito a partir do
colágeno extraído da pele do jumento – e para atender à demanda crescente pelo
item, empresas chinesas têm importado a pele dos animais de países como o
Brasil.
“Esses
animais são abatidos no mundo todo para abastecer essa demanda, que é uma
demanda de 4,8 milhões de peles de jumentos por ano”, aponta a bióloga Patrícia
Tatemoto, que trabalha com a Donkey Sanctuary, organização britânica que atua
na proteção de espécies de asininos pelo mundo e pela proibição do abate.
Desde 2017, o abate de equídeos em geral – classe
de animais que inclui os asininos, muares (mulas) e equinos (cavalos e éguas) –
é regulamentado no Brasil por decreto do então presidente Michel Temer.
Atualmente, apenas dois estabelecimentos realizam o abate de asininos no
Brasil, ambos na Bahia.
Apesar da regulação, ativistas de proteção alertam
que, no ritmo em que está atualmente, o abate de jumentos pode levar à extinção
da espécie no Brasil. Na pecuária, o termo ‘produção’ é utilizado para
descrever a cadeia de criação de uma espécie destinada ao abate, como bovinos,
suínos e aves, que são criadas, alimentadas, reproduzidas, abatidas e repostas.
No caso dos jumentos, segundo os ativistas, não há
cadeia de produção estabelecida. Portanto, o abate ocorre sem reposição,
contando com os espécimes que já existem atualmente. Assim, o número de
jumentos cai conforme são abatidos aos milhares a cada ano, sem que nasçam e
sejam criados asininos o suficiente para manter os números da população destes
animais.
"Essa atividade só ocorre porque é extrativista.
Então se a gente for produzir os jumentos em fazendas [...], que é cria,
recria, terminação, engorda e aí envia para abate, é custo-proibitivo cumprir
essas etapas”, aponta Tatemoto.
A bióloga aponta que o filhote de asinino, para
chegar ao ponto de abate, demora até quatro anos, o que, cumprindo todas as
etapas citadas, tornaria a produção inviável financeiramente.
Defensores da causa animal também apontam que o
transporte de animais para o abate tem ocorrido de forma ilícita, com várias
denúncias de maus tratos e suspeitas de irregularidade nas regulações
sanitárias exigidas para o transporte destes animais.
• Abate
de jumentos: prática legal, mas predatória
O abate de jumentos ocorre de maneira legal no
Brasil. Em fevereiro de 2012, Brasil e China assinaram um acordo que permitiria
a exportação de carne e pele de jumento entre os dois países, mas sem estipular
quando este comércio teria início.
Em novembro de 2015, durante viagem à China, a
então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, afirmou ter sido surpreendida por
um empresário chinês que propôs comprar 1 milhão de jumentos do Brasil por ano.
Os números não batiam com o rebanho de asininos no
Brasil. Ainda assim, em 2016, o Brasil deu o sinal verde para a exportação. Em
março de 2017, o decreto 9.013 regulamentou como deveria funcionar o abate de
equídeos em geral no Brasil. No mesmo ano, mais de 26 mil asininos já foram
abatidos. No ano seguinte, 2018, o número de jumentos abatidos saltou para
62.522.
Os frigoríficos que atuam no abate de equídeos - cavalos,
muares e jumentos - precisam de autorização federal para funcionar, uma vez que
o destino é o mercado exterior. Por isso, eles são acompanhados pelo Serviço de
Inspeção Federal (SIF).
Conforme levantamento realizado por pesquisadores
da Faculdade de Veterinária da Universidade de São Paulo (USP), até 2020
existiam nove frigoríficos no Brasil autorizados a abater equídeos. Destes,
seis já encerraram as atividades.
Dos outros três que permanecem ativos e exportando,
um está localizado na cidade de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, mas é
voltado para o abate de cavalos, cujo destino da carne são mercados da Europa.
Os outros frigoríficos com autorização para abater
equídeos estão localizados nas cidades de Amargosa e Itapetininga, ambas na
Bahia. É lá que se concentra o abate de jumentos no Brasil.
Em 2018, por exemplo, dos 62 mil jumentos abatidos,
cerca 44 mil foram abatidos apenas no frigorífico localizado em Amargosa, que
começou a operar no dia 26 de julho de 2017 e se solidificou como o principal espaço
de abate de asininos do país.
Em dezembro de 2018, o abate de asininos foi
temporariamente proibido por uma decisão judicial. Em setembro de 2019, a
atividade voltou a ser liberada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em
2020, mais de 27 mil abates. Em 2021, foram 64 mil. Em 2022, foram 39 mil.
"Inicialmente, o que era ventilado era que
existiria a formação de uma cadeia produtiva para esses animais. A cadeia
produtiva vai compreender aí diversas fases de criação, desde a cria até
engorda. E esse fato nunca se concretizou", aponta Rebeca Ribeiro,
vice-presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia.
O conselho é uma das vozes que alerta para os
riscos de extinção dos jumentos se o modelo atual de abate continuar.
"Se a gente tem o abate ocorrendo sem que se
tenha uma preocupação com a reprodução desses animais, com a cadeia produtiva
como um todo, isso realmente pode levar em algum momento a um risco de extinção
desses animais", alerta Rebeca, que é auditora fiscal.
• Ejiao:
o desejado colágeno da pele de jumento
Do animal abatido, o interesse de exportação é a
pele e, em menor escala, a carne. Com a carne, por exemplo, são produzidas
algumas iguarias como a sopa de jumento. Da pele, é extraído o colágeno, que é
processado para a produção do ejiao, item popular na medicina tradicional
chinesa.
A medicina tradicional chinesa é um conjunto de
práticas milenares que utiliza os conceitos de ying e yang e canais de energia
do corpo para diagnóstico e tratamento de doenças. Não há comprovação de que
ela tenha a eficácia da medicina moderna.
Dentro destas práticas, o ejiao é recomendado, por
exemplo, contra sangramentos, para fortalecimento do sistema imunológico,
regulação da menstruação, combate à anemia, entre outros.
Atualmente, a maior parte do ejiao é produzido na
província chinesa de Shandong, a segunda mais populosa do país. Em 2017, as
indústrias de Shandong estavam pagando cerca de 3 mil yuans (pouco mais de R$ 2
mil) por uma única pele de jumento.
Pela internet é possível encontrar desde pacotes de
ejiao em pó, de R$ 184 uma embalagem com 50 gramas, até caixas de 250 gramas de
ejiao em tabletes, que custa R$ 375 mais custos de importação.
Segundo estimativa, em 2015 o comércio de ejiao
movimentou 1,5 bilhão de dólares. Nos últimos anos, com o aumento da procura –
e até mesmo o anúncio de abertura de uma cadeia de restaurantes especializada
em carne de jumento –, a busca por mais peles tem levado a China a procurar os
animais em países da América do Sul, da África e da Ásia Central.
Ativistas apontam que a existência de uma cadeia de
produção de jumentos para atender a este mercado não é viável pelo tempo e pelo
custo. Um estudo da Escola de Medicina Veterinária da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) aponta que o tempo estimado para produzir um jumento é de 36
meses, a um custo de 258 dólares anuais por cabeça.
A título de comperação, o tempo de reprodução dos
asininos é mais longo que o principal animal da agropecuária brasileira, o gado
bovino. As vacas, por exemplo, têm uma gestação média de 9 meses. Os asininos,
entre 11 e 14 meses. Até alcançar o ponto de abate, o jumento levaria 36 meses
de criação. Já o bovino, entre 24 e 27 meses.
Rebeca Vieira destaca que mesmo com as
dificuldades, a criação de uma cadeia produtiva é possível - e até necessária
para reforçar os procedimentos sanitários. "A gente está falando do abate
de animais, mas a gente também está falando de saúde pública, porque quando a
gente não tem uma organização de cadeia produtiva isso pode também gerar em
sérios riscos", explica.
"Eles [asininos] podem ser portadores e
transmissores de zoonoses importantes, como é o caso do mormo, então existe sim
um risco sanitário associado desde quando você não tem uma cadeia produtiva bem
estabelecida. Isso pode gerar riscos da população", afirma.
• População
de jumentos vem caindo há anos no Brasil
Os jumentos chegaram ao Brasil com os colonizadores
portugueses. Por sua resistência, os animais eram utilizados, principalmente,
nas expedições rumo ao desconhecido interior do Brasil, servindo como
transporte de itens e de pessoas.
>> No Brasil, existem três tipos principais
de jumento:
• Nordestino,
bem adaptado ao clima semiárido e assemelhado ao chamado jumento egípcio, comum
na região da Samaria, no Oriente Médio;
• Nacional,
predominante no Sudeste e de origem italiana, é geneticamente assemelhado ao
jumento africano;
• Pêga,
de origem ibérica, mais comum em Minas Gerais.
Séculos depois da sua chegada, os jumentos
continuavam como presença constante no campo. Em 1960, conforme dados do
governo federal, havia cerca de 1,2 milhão de jumentos no Brasil, a maioria
concentrados nos estados do Nordeste, Pará, Mato Grosso e Minas Gerais.
O jumento usado na tração, por exemplo, foi trocado
pelas máquinas. Na década de 2000, o jumento usado no transporte foi
substituído pelas motocicletas. Com a perda de função, o número de asininos no
país registrou uma queda exponencial.
Em 2006, menos de 50 anos após a primeira contagem
que apontou 1,2 milhão de asininos, a população já havia reduzido pela metade:
eram apenas 654 mil. O movimento seguiu uma tendência de queda, e em 2017, ano
do último Censo Agropecuário, foram registrados 376 mil asininos no Brasil.
O Nordeste é a região do Brasil que concentra o
maior número de asininos: eram 326 mil à época em que foram contabilizados pelo
IBGE. O jumento nordestino é o que tem a maior população do Brasil – e, também,
o mais ameaçado pelo ritmo acelerado de abates.
“Os equídeos [cavalos, jumentos, mulas] em geral foram perdendo a
notoriedade a partir da Revolução Industrial”, aponta o médico veterinário
Thiago de Oliveira Campos, que pesquisa a história dos asininos.
“O que aconteceu com o jumento nordestino foram
dois fatores. Um fator foi a mecanização do campo, que chegou no Nordeste mais
tardiamente", indica.
Segundo dados oficiais, pelo menos 939 mil jumentos
eram utilizados em atividades de agricultura no Brasil no ano de 1970. Em 2017,
apenas 106 mil eram usados para alguma atividade no campo.
O segundo fator da desvalorização dos asininos,
conforme Thiago, é que com a substituição dos equídeos em geral por máquinas, a
estes animais restaram atividades esportivas ou de lazer.
E, nestas atividades, como hipismo e turfe
(corrida), os equídeos preferidos costumam ser o cavalo e a égua, e não os jumentos.
"Muitas vezes o próprio nordestino, as
próprias pessoas têm preconceito com o jumento nordestino por conta da
aparência. Porque não foi um animal moldado para ser exibido, para ser mostrado
ao público como sinônimo de poder, de riqueza, como os cavalos foram”, avalia o
veterinário.
“Esse animal [jumento] foi utilizado para tração. O
criador não queria saber de orelha, de cabeça, de harmonia disso e daquilo. Ele
queria saber se o animal era bom de carga e resistência”, complementa. “Então
com a perda de função de trabalho desse animal, ele não conseguiu se encaixar
dentro do padrão para ter utilizado, infelizmente, como lazer, como
exibicionismo".
Fonte: g1
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