‘Povos indígenas não se declaravam como tal por estratégia de
sobrevivência’, diz antropóloga
A população indígena do país ultrapassou 1,6 milhão
de pessoas em 2022, o que representa 0,83% do total de habitantes. Em 2010, no
censo anterior, eram 896 mil indígenas no país. Isso equivale a um aumento de
88,82% em 12 anos, período em que esse contingente quase dobrou. O crescimento
do total da população nesse mesmo período foi de 6,5%.
O aumento expressivo se deve à mudança de
metodologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No censo
mais recente, a pergunta “você se considera indígena?” foi feita não apenas em
terras indígenas, mas também em territórios delimitados pela Fundação Nacional
dos Povos Indígenas (Funai), os agrupamentos indígenas identificados pelo IBGE
e as outras localidades indígenas, que são ocupações domiciliares dispersas em
áreas urbanas ou rurais com presença comprovada ou potencial de pessoas
indígenas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a antropóloga
Monique Rodrigues, que pesquisa a relação entre povos indígenas,
territorialização, Estado e política, explica outros motivos para que a identidade
indígena esteja mais em evidência agora e as razões para os apagamentos de
etnias em outros períodos.
Doutora em antropologia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), curinga-especialista em Teatro da(o)s Oprimida(o)s e
professora de sociologia da rede estadual de educação do Rio, Monique situa no
contexto fluminense a abertura da rodovia BR-101 como deflagradora de processos
de visibilidade de povos indígenas.
>>>> Confira a entrevista completa:
·
Qual é a importância e o
impacto da pesquisa do IBGE?
Monique Rodrigues: As
políticas de formação dos censos e mapeamento de populações pelo Estado
passaram, ao longo de sua formação, por diversas mudanças. Temos momentos no
qual se favoreceu o apagamento destas populações e outros momentos, como os de agora,
em que, com todos os questionamentos que ainda possamos fazer, trazem novas
perspectivas na qual a identidade étnica-racial é um demarcador importante.
Mesmo precisando estar atentos aos subdados, ou
seja, aos aspectos por vezes não mensurados, sabemos que esse mapeamento
garante a promoção de políticas públicas e construção de discursos que
favorecem a luta dos povos indígenas, tanto no território brasileiro, quanto ao
seu entrelaçamento à rede internacional de apoio aos povos originários.
Temos, por exemplo, o dia 9 de agosto como o Dia
Internacional dos Povos Indígenas, mostrando que a luta pelo reconhecimento das
populações tradicionais e a construção de um novo discurso, que passa inclusive
pela criação de um novo marco civilizatório, ultrapassa fronteiras.
A nova pesquisa do IBGE e a demonstração de um
expressivo aumento da população indígena no país com relação ao censo anterior
fortalecem o nosso olhar a essa população e sua luta histórica por
reconhecimento de direitos e superação da margem de invisibilidade que às vezes
quer se estabelecer.
·
Há uma mudança no sentido de
reconhecimento e autoreconhecimento de povos originários?
Para refletir sobre este ponto, é importante antes
de tudo pensar na formação das identidades (todas elas) não de modo engessado e
essencializado e, sim, no seu aspecto histórico. Muitos povos, como estratégia
de sobrevivência ou como um relativo sucesso das políticas de embranquecimento
que passou pelo apagamento de diversas identidades no território nacional, não
se autodeclaravam indígenas em censos anteriores, principalmente num contexto
pré-Constituição de 1988, que favorecia a tutela e extermínio da população
indígena por todo país.
Com as novas possibilidades oriundas na nossa atual
Constituição, atrelado no início do século XXI à posse de governos que
fortaleciam políticas de reconhecimento e reparação histórica destas
populações, como o fortalecimento de políticas de demarcação de terras
indígenas e políticas de ações afirmativas, houve o fortalecimento da luta por reconhecimento,
que passa pela afirmação destas múltiplas identidades, principalmente
tratando-se das populações tradicionais.
Acho que as populações indígenas seguem esse
caminho de fortalecimento do reconhecimento de sua identidade.
·
Existe alguma política para
desmistificar a ideia de que indígenas são apenas pessoas que vivem em aldeias?
Há uma mudança cultural sobre isso nos últimos anos?
Penso que, infelizmente, ainda temos muito
fortalecida na sociedade uma ideia mistificada sobre as populações indígenas,
carregada de diversos aspectos estereotipados sobre estas populações. Temos que
ter em mente que quando falamos em povos indígenas, estamos falando de mais de
300 povos, cada um com sua cultura e especificidade.
Ao mesmo tempo, uma das coisas que podemos observar
é essa ideia essencializada sobre estas populações, como se permanecessem
congeladas no tempo, como um quadro originário, sem compreender que os grupos
se modificam ao longo do tempo, estando vivendo o mesmo tempo histórico que
nós.
Ou seja, reconhecimento desta identidade transpassa
essa vivência como aldeado ou não. Ela passa por todo um processo de resgate e
reconhecimento de sua história enquanto povo, seja no espaço rural ou no espaço
urbano. As políticas de ações afirmativas reforçam essa necessidade de ocupação
de indígenas em diferentes espaços. Essa é uma demanda muito forte atualmente,
gerando uma mudança neste olhar, mesmo que ainda de forma embrionária.
Penso que este é o nosso papel também enquanto
educadores, acadêmicos e ocupantes de diversas atividades: desmistificar essa
ideia sobre as identidades indígenas, seja nas escolas, seja nos múltiplos
espaços que venhamos a ocupar.
·
Sua tese de doutorado em
Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) tem o título “‘Índios
Petistas em Maricá?’: Conflitos, estigma e estratégias de territorialização na
aldeia Guarani Mbya Ka’Aguy Hovy Porã”. Você pode comentar o caso deste
município, especificamente a relação da administração municipal com a questão
indígena?
Maricá hoje tem duas aldeias indígenas, ambas do
povo Guarani-Mbya: a aldeia Ara Hovy, localizada na serra do Tiririca em
Itaipuaçu, e a aldeia Ka’Aguy Hovy Porã, localizada na Área de Proteção
Ambiental (APA) de Maricá, sendo esta a que tive mais contato. Essa aldeia traz
um dado diferenciado.
O grupo, que no momento estava ocupando uma área no
litoral de Niterói em Camboinhas, recebeu o convite do prefeito na época
[Washington Quaquá] no ano de 2013 para ocupar uma área da cidade e ali
construir a sua aldeia. Esse é um fato bastante distinto: um prefeito realizar
o convite para um grupo indígena ocupar a sua cidade no momento de sua
administração. Assim foi feito e o grupo passou a ocupar uma área da APA de
Maricá.
O grupo, então, conta hoje com as diversas
políticas públicas desenvolvidas na cidade: como o Bolsa Mumbuca Indígena
(espécie de Bolsa Família municipal com valor diferenciado aos indígenas),
Escola Multiseriada (com oferta de ensino infantil e parte do ensino
fundamental) e Posto de Saúde dentro do espaço da aldeia.
Ao mesmo tempo, o grupo hoje sofre com o conflito
territorial existente por conta do projeto de construção do complexo
turístico-residencial Fazenda São Bento da Lagoa. A área que ocupam é
reivindicada pela empresa espanhola IDB Brasil para a construção do complexo
residencial do empreendimento. A obra neste momento permanece com a licença
suspensa. Houve protestos este ano em torno da aldeia quando o empreendimento
iniciou suas obras, no momento em que estavam com a licença em ativo.
Um dado relevante de se mencionar é que parte do
complexo que compõe o grande empreendimento passa a se chamar Maraey. O termo
vêm do conceito “Yvy mara’ey” (terra sem males), sendo este um termo de
relevante importância para a construção da identidade Guarani Mbya. O termo passa
a ser utilizado posteriormente pela empresa após seu contato com a aldeia. O
que parece contraditório é que é justamente em relação a um grupo do povo
Guarani Mbya que os conflitos sobre a construção do resort se estabelecem.
·
Como é a situação dos povos
indígenas em outras regiões do estado do Rio?
Com relação às aldeias indígenas, o Rio de Janeiro
contava em 2020, segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), com seis
aldeias: três aldeias regularizadas, uma em fase de delimitação e duas em fase
de estudo. Sabemos que existem mais aldeias no estado, como as aldeias de
Maricá, que não tiveram ou ainda estão em processo inicial de demarcação de
suas terras, fruto também de toda uma política de congelamento destes
processos, organizada no governo anterior.
A maior parte das aldeias no estado é composta por
Guaranis, no caso os Guarani Mbya. Diversos trabalhos acadêmicos, como a tese
de doutorado de Luis Carlos de Oliveira Lopes (2019) vão mostrar como o Rio de
Janeiro passa de um estado no qual se declara a extinção dos povos indígenas
(como visto na década de 1970) para um processo de emergência étnico-política
ligada à construção da rodovia BR-101.
O fato é que sempre existiram indígenas na região
do litoral sul do estado, sendo que a construção da rodovia promovera a
visibilização das populações tradicionais que ocupavam o espaço.
Esse contexto de ameaça à
permanência no local, acaba por forçar os indígenas a se mobilizarem e
protagonizarem inúmeros processos de territorialização na década de 1980 que
culminam nas demarcações iniciadas a partir da década de 1990.
Foi aí que se iniciou o processo de demarcação,
como o que ocorreu na aldeia de Paraty-Mirim, seguido por Araponga, Bracuí e
Rio Pequeno, por exemplo. Além das aldeias mencionadas, vale lembrar que
existem diversas aldeias urbanas, como a Aldeia Maracanã, e diversos indígenas
moradores e ocupantes de distintos espaços da cidade.’
Ø Sonia Guajajara cobra maior participação dos povos indígenas nos
mecanismos de financiamento internacional
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara,
pediu maior participação e poder de decisão para os povos indígenas nos fóruns
de decisão e instrumentos de financiamento à proteção da biodiversidade durante
sua participação na Sétima Assembleia do Fundo Global para o Meio Ambiente
(GEF), que aconteceu em Vancouver, Canadá, nesta sexta-feira (25/08).
Ainda segundo a ministra, que falou em um painel
sobre governança inclusiva e transformadora, os territórios indígenas
representam cerca de 22% da superfície global, abarcando mais de 80% da
biodiversidade do planeta e aproximadamente 6% da população mundial, mas que
apesar dessa relevância, os povos indígenas recebem menos de 1% do
financiamento climático.
“Muito disso se deve ao fato de que a governança
não reconhece a capacidade dos povos indígenas e comunidades locais de falar
sobre seus territórios e levam a políticas que não reconhecem o papel destes
atores na preservação da biodiversidade”, afirmou.
Falando como representante do governo brasileiro na
assembleia, Sonia destacou que aos olhos do Brasil, uma governança
transformadora, inclusiva e responsável para um planeta sustentável passa, pelo
menos, pelo compromisso com a preservação da biodiversidade e o enfrentamento
às mudanças climáticas na centralidade das políticas globais.
Segundo a ministra, o aumento do financiamento
internacional deve ser acompanhado de metas globais de resultado e de um
urgente reequilíbrio no peso entre os países responsáveis pelo financiamento e
os responsáveis pela execução dos projetos, para que esses tenham mais
capacidade decisória e de implementação.
Sonia também reforçou mensagem já dada aos líderes
internacionais pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que na Cúpula da
Amazônia, realizada em Belém do Pará, no começo do mês, afirmou que: “sanar a
falta de representatividade é elemento essencial de uma proposta abrangente e
profunda de reforma da governança global que beneficie todos os países em
desenvolvimento.” A ministra complementou a frase de Lula, dizendo que essa nova
governança vai beneficiar a todos os países, inclusive os mais desenvolvidos.
A Assembleia do GEF reúne líderes e autoridades em
temas ambientais de 185 países. Segundo a organização, o evento desponta como
um momento crucial para avaliar as metas para 2030 de acabar com a poluição, a
destruição da natureza, combater as mudanças climáticas e impulsionar a
conservação inclusiva.
A ministra também alertou a comunidade
internacional sobre a tentativa de parte do Legislativo brasileiro em
restringir a demarcação de terras indígenas no Brasil por meio da aprovação da
tese do Marco Temporal, contida no PL 2.903, que agora tramita pelo Senado
Federal.
Durante o evento, que começou na terça-feira
(22/08), foi oficialmente lançado o Fundo do Marco Global da Biodiversidade,
que se apresenta como uma nova fonte de financiamento para proteger espécies e
ecossistemas em todo o mundo. Os aportes iniciais foram feitos pelo Canadá, com
200 milhões de dólares canadenses (R$ 715 milhões), e Reino Unido, com 10
milhões de libras esterlinas (R$ 60 milhões).
Falando especificamente sobre o novo fundo, a
ministra lembrou que os projetos do GEF que melhor produziram resultados no
Brasil no tocante a territórios indígenas foram aqueles que foram construídos
diretamente com os povos e que resultaram em políticas públicas. “Os
conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais trazem
resultados concretos, com representatividade e financiamento mais adequados”,
afirmou.
A ministra lembrou, ainda, que graças à atuação do
Brasil, o novo fundo alocará 20% do portfólio em projetos com povos indígenas e
comunidades locais, algo que reflete o reconhecimento cientificamente
comprovado do papel dos povos indígenas na conservação.
Em sua fala de encerramento, Sonia afirmou que os
compromissos firmados em fóruns como o GEF são importantes, mas que mais
relevante é definir, agora, os mecanismos concretos de implementação de
políticas com participação ativa das populações locais.
“Se 82% da biodiversidade do planeta está sob a
guarda dos povos indígenas no mundo, é urgente proteger os direitos desses
povos. Se os direitos dos povos indígenas no mundo, os modos de vida, estão
ameaçados, toda essa biodiversidade está ameaçada. Se essa biodiversidade está
ameaçada, portanto, a humanidade inteira está em risco. Termino aqui com este
convite ao reconhecimento do papel que os povos indígenas, comunidades locais e
território dos povos indígenas exercem para todo o planeta. O GEF é um
importante mecanismo para apoiar estes povos e estes territórios”, concluiu a
ministra.
O GEF foi criado às vésperas da Cúpula da Terra de
1992, no Rio de Janeiro, como um mecanismo financeiro para permitir que os
países em desenvolvimento atuem em desafios ambientais urgentes. O fundo foi
escolhido para administrar o Marco Global da Biodiversidade na Cúpula da
Biodiversidade da COP15 em dezembro de 2022, e seu Conselho de Administração
aprovou os planos em junho de 2023, em reunião realizada em Brasília, que
contou com a participação da ministra.
Fonte: Por Eduardo Miranda, no Brasil de Fato/EBC
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