Confira os escândalos que desmoralizaram militares
Nos últimos dias, o comandante do Exército, general
Tomás Miguel Paiva, fez circular nos quartéis a Ordem Fragmentária nº 1, uma
espécie de carta com as diretrizes de sua gestão, que começou em janeiro deste
ano.
Esse tipo de documento é usado, segundo o Glossário
das Forças Armadas, para “enviar instruções separadas a uma ou mais unidades ou
elementos subordinados, determinando a parte que cada uma deverá desempenhar no
cumprimento de um plano de operações”.
O texto deixa claro que o Exército é “uma
instituição de Estado, apartidária, coesa e integrada à sociedade” e que é
preciso “intensificar as ações que contribuam para a proteção e o
fortalecimento da sua imagem e reputação”.
O que chamou a atenção, no entanto, foi o seu
conteúdo e o contexto em que foi divulgado.
As orientações chegaram ao conhecimento público no
momento em que as Forças Armadas, tradicionalmente bem avaliadas pela
população, sofrem um forte desgaste em meio aos recorrentes casos de
envolvimento de oficiais graduados em escândalos em uma série de malfeitos.
Dessa forma, o texto do general Paiva representa
uma espécie de “meia-volta, volver”, uma ordem para deixar clara a intenção de
recuar no movimento de avanço de atuação política dos militares, sendo que o
pino dessa granada institucional foi tirado e provocou enormes efeitos
colaterais durante os anos Bolsonaro, respingando na moral da tropa.
A Ordem Fragmentária foi assinada na sexta-feira
18, um dia após VEJA publicar reportagem de capa na qual relatava que o
advogado do tenente-coronel Mauro César Cid, ajudante de ordens do
ex-presidente Jair Bolsonaro, afirmara que seu cliente iria admitir que vendeu
joias recebidas pela Presidência em viagens oficiais por ordem do ex-chefe, a
quem teria repassado o dinheiro.
Os negócios suspeitos com bens públicos já haviam
motivado no início do mês uma operação da Polícia Federal em endereços ligados
ao militar e a seu pai, o general de quatro estrelas Mauro Lourena Cid, também
investigado.
Mauro Cid já estava preso desde maio por
supostamente ter falsificado cartões de vacina contra a Covid-19 para ele,
familiares e Bolsonaro.
Foi nessa condição que ele foi fardado depor na
CPMI do 8 de Janeiro, mas ficou calado, em situação constrangedora para as
Forças Armadas.
Se não bastasse, na mesma semana, o hacker Walter
Delgatti Neto, também na CPMI, envolveu o então ministro da Defesa, Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, em uma trama golpista ao dizer que esteve cinco
vezes no ministério no final de 2022, quando se reuniu com o general para
discutir formas de pôr em xeque o resultado da eleição.
A parceria entre um criminoso, que acabou de ser
condenado a vinte anos de prisão por ter invadido celulares de autoridades da
Lava-Jato, e o ocupante do mais alto posto da burocracia militar foi revelada
por VEJA em novembro daquele ano.
O rombo provocado por esses escândalos na imagem das
Forças Armadas foi captado por uma pesquisa da Quaest, que apontou recuo
expressivo na credibilidade da instituição, um ativo que parecia inabalável até
então.
O número daqueles que confiam pouco superou o dos
que confiam muito, e o percentual que não confia subiu 5 pontos.
“É claro que os recentes acontecimentos atingem a
imagem da instituição”, aponta o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz,
que foi ministro no início da gestão Bolsonaro.
A trajetória de Santos Cruz, aliás, ajuda a
ilustrar um pouco o buraco em que os militares se meteram.
Ele foi um dos oficiais de alta patente que deram
sustentação ao novo presidente, um ex-capitão praticamente expulso do Exército
por ser um mau militar.
Durou seis meses no cargo e foi demitido após brigar
com o filho Zero Dois do presidente, Carlos Bolsonaro.
Hoje chama o ex-presidente de “fanfarrão
irresponsável”, que arrastou militares sérios para a lama.
Mas é um certo exagero sugerir que há inocentes
nessa história.
A chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto se
deu no mesmo momento em que boa parte dos companheiros dos tempos da Academia
Militar das Agulhas Negras (Aman) ascendia ao topo da hierarquia: no início do
seu governo, nove das quinze cadeiras do Alto-Comando do Exército eram ocupadas
por generais oriundos das turmas de 1977 (a mesma de Bolsonaro), 1978 e 1979,
entre eles dois que seriam ministros (Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos)
e um que seria comandante do Exército (Edson Pujol).
Foi em uma formatura na Aman, em 2018, que Bolsonaro
lançou a candidatura a presidente, aplaudido por centenas de militares
perfilados para ouvi-lo — o gesto foi interpretado como um aval ao seu projeto
eleitoral.
Em outros termos, Bolsonaro precisava de apoio,
enquanto parte da elite dos militares queria retomar protagonismo na vida
política do país.
Logo na posse, o novo presidente enfileirou no
ministério três generais, um almirante, um tenente-coronel e um capitão, além
do vice, general Hamilton Mourão.
Também houve um aumento vertiginoso de militares em
postos de segundo e terceiro escalões.
Michel Temer tinha 2 765 deles em cargos do
governo, número que foi a 6 175 em 2021.
Havia militares também em conselhos das estatais,
como Petrobras, Eletrobras, Itaipu Binacional, Telebras e Correios.
A entrada no governo significou ainda um alto
retorno financeiro, já que muitos deles acumularam os vencimentos militares com
os salários de funções civis.
Se a aliança serviu a Bolsonaro e aos militares,
não se pode dizer o mesmo em relação ao Brasil.
Na pandemia, o país tinha no comando do Ministério
da Saúde um general, Eduardo Pazuello, cuja suposta qualidade era ser
especialista em logística.
Com ele, a pasta mandou lotes de vacina do Amapá
para o Amazonas e vice-versa e mostrou inoperância em um dos momentos mais
angustiantes, o da falta de oxigênio em Manaus.
Em outubro de 2020, quando Bolsonaro vetou a compra
das “vacinas chinesas” da CoronaVac, o general ilustrou qual era o seu tamanho
na crise. “É simples assim: um manda, o outro obedece”, disse.
Perdido entre a estreiteza ideológica e a
incompetência, terminou a gestão com quase 700 000 mortos pelo vírus.
A relação entre militares e governo também
permitiria tragicomédias, como a apreensão de cocaína em aeronave da FAB que
integrava a comitiva presidencial, na Espanha, e as compras de Viagra, próteses
penianas e remédios contra calvície, além de 56 milhões de reais gastos em
toneladas de picanha, filé-mignon e salmão.
O envolvimento político dos militares cruzou a
linha do aceitável também pela maneira como permitiu uma confusão entre os
papéis das Forças Armadas e do governo.
Um exemplo foi visto em agosto de 2021, quando
dezenas de blindados desfilaram na Praça dos Três Poderes em gesto claro de
intimidação ao Congresso, que votava a PEC do voto impresso.
Bolsonaro, maior porta-voz da proposta, acompanhou
o desfile no Palácio do Planalto ao lado dos comandantes do Exército, Marinha e
Aeronáutica.
Em outro episódio problemático, o presidente usou
as comemorações do 7 de Setembro, uma data cara aos militares, para atacar o
presidente do TSE, Alexandre de Moraes.
Alguns oficiais ainda incentivaram ou participaram
de atos na porta de quartéis, com faixas pedindo a volta da ditadura e o uso do
artigo 142 da Constituição, com a interpretação distorcida de que ele dá às
Forças Armadas poder para fazer uma intervenção para “restaurar a ordem”.
Esses gestos acrescentaram um novo capítulo aos
estragos que a movimentação política de oficiais produziu na história do país.
Desde a proclamação da República, liderada pelos
marechais, até o golpe dos generais em 1964, esses avanços deixaram feridas
difíceis de cicatrizar.
Ao contrário do que ocorreu em países vizinhos, a
superação desses momentos aqui se deu na base do apaziguamento.
Para voltar à caserna após o fim da ditadura, os
militares foram acomodados no novo modelo democrático com benefícios
previdenciários, investimentos estratégicos em defesa e anistia.
“Os militares brasileiros não aprenderam a conviver
com a democracia porque nunca responderam pelos seus crimes”, diz Lucas Pereira
Rezende, professor de ciência política da UFMG.
A turbulência voltou a ameaçar as relações
institucionais nos anos 2010, marcados pela recessão econômica e pela onda de
protestos contra o establishment político.
A instauração da Comissão da Verdade por Dilma Rousseff
trouxe à tona esqueletos que as Forças Armadas tentavam manter no armário.
Foi nesse contexto que Bolsonaro despontou como
porta-voz de saudosistas do antigo regime.
“A ascensão dele caminhou no desalinhamento:
governabilidade tensa, abrutalhada, o tempo todo procurando aprofundar os
limites da democracia, provocando até os limites”, diz José Eduardo Faria,
professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Cabe agora a Lula, que começou a carreira política na
ditadura, chegando a ser preso por ela em meio às históricas greves do ABC, a
complexa tarefa de colocar ordem na caserna.
A tentativa se dá também à base do apaziguamento.
No lançamento do Novo PAC, o presidente destinou 53
bilhões de reais para as Forças Armadas — mais do que para educação e saúde.
O pacote inclui a construção de navios e
submarinos, a compra e modernização de aeronaves e o desenvolvimento de mísseis
de longo alcance.
No sábado 19, em meio ao fogo alto da crise, Lula
reuniu os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica e ouviu deles que as
Forças Armadas têm interesse em que os fatos sejam esclarecidos e as condutas,
individualizadas.
“As condutas investigadas nada têm a ver com o
Exército”, defende o general da reserva Paulo Chagas.
O ministro da Defesa, José Múcio, se encontrou com
Flávio Dino (Justiça), com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, e enviou
ofício a Alexandre de Moraes, do STF, para tentar, em vão, saber quais
militares teriam se encontrado com o hacker Delgatti na Defesa.
A movimentação para tentar isolar as Forças Armadas
das delinquências pode esbarrar no fato de que as investigações ainda estão em
andamento e tendem a arrastar mais gente fardada.
Os outrora poderosos generais palacianos Braga
Netto e Augusto Heleno — suspeitos de apoiar a baderna golpista de 8 de janeiro
— e o ex-ministro Paulo Sérgio Nogueira estão na mira da CPMI.
Há, ainda, o risco de resistência à despolitização
por parte de radicais na corporação, uma erva daninha difícil de extirpar e que
sempre provoca problemas.
Em 1981, quando o regime dos generais ensaiava a
abertura, um sargento e um capitão morreram ao tentar explodir bombas no
Riocentro durante um show musical, com o objetivo de culpar a oposição e
tumultuar a distensão.
Nos anos Bolsonaro, a cúpula das Forças Armadas
produzia ordens do dia celebrando o golpe de 1964.
Hoje, a mensagem aos quartéis é claramente outra:
abandonar a pretensão política e defender o que resta de credibilidade das
instituições em meio ao mar de lama.
Os desdobramentos das investigações em curso, com
possíveis prisões e o aparecimento de novos investigados, vão testar ao limite
a disposição da tropa em seguir à risca o “meia-volta, volver” do general
Paiva.
Para o bem do Brasil, o melhor é que seja mesmo
assim: ordem dada, ordem cumprida.
Ø Finalmente descobriremos o que fazem as Forças Armadas
Na conversa de sábado passado à noite no Alvorada,
regada a uísque, entre Lula, José Múcio Monteiro e os três comandantes
militares — general Tomás Paiva, almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, e
o tenente-brigadeiro de ar Marcelo Kanitz Damasceno — ficou combinado também
que o governo deve lançar uma campanha para “explicar” o que fazem as Forças
Armadas, além de defender as fronteiras nacionais.
É uma forma, óbvia, de tentar melhorar a imagem das
três forças, abaladas com o deletério bolsonarismo que se infiltrou nas três
corporações nos últimos anos.
Ø Convocações de militares pela CPI preocupa Defesa e Exército
Na última quarta-feira, o ministro da Defesa, José
Múcio Monteiro, fez um périplo em Brasília pelos três principais órgãos
envolvidos nas investigações sobre o 8 de janeiro: a CPMI dos atos golpistas, o
Ministério da Justiça e a direção-geral da Polícia Federal. Depois de cada
visita, Múcio declarou que seu objetivo era obter a lista de nomes de militares
investigados nos inquéritos da PF, em especial o que apura as visitas do hacker
Walter Delgatti ao Ministério da Defesa.
Nos bastidores, porém, a maior preocupação de Múcio
e do comandante do Exército, Tomás Paiva, é outra: evitar a convocação em série
de generais envolvidos tanto nos atos golpistas como nas negociações com o
hacker para ajudar a minar a credibilidade do sistema eletrônico de votação.
Na conversa reservada que tiveram com os membros da
CPMI, o ministro e o general desenharam um cenário que também foi descrito à
equipe da coluna por outros dois generais e um coronel da reserva.
De acordo com eles, os militares da ativa estão
preocupados com os efeitos que a CPMI e as investigações da PF terão sobre a já
manchada imagem do Exército. Há, na tropa, ainda bastante ligada ao
bolsonarismo, muita indignação com o que dizem ser um esforço para desmoralizar
as Forças Armadas.
O mesmo discurso foi repetido na direção da Polícia
Federal. Por isso, embora tomando cuidado para não fazer parecer que estava
tentando intervir ou forçar uma barra, Múcio deixou claro que, por ele e pelo
comandante do Exército, o melhor mesmo era não convocar general algum para
depor.
Tanto na CPMI como na PF, o que o ministro ouviu é
que não havia intenção deliberada de constranger os militares, mas seria
impossível não convocar alguns deles para depor e, no extremo, não indiciar. Na
cúpula da CPI se considera que será difícil evitar a convocação de “umas 2 ou 3
figuras de alta patente”.
“Toda vez que vem para a CPI alguém do Exército,
seja do lado do Bolsonaro, ou do lado do governo, é um rebuliço lá dentro. E é
uma comunidade muito unida com aquela vida de caserna. Quando vem alguém depor,
eles falam ‘Ah, é porque estão querendo desmoralizar o Exército’”, disse à
equipe da coluna um integrante da comissão.
No topo das prioridades da CPI, o ex-ministro da
Defesa Paulo Sérgio Nogueira, o ex-chefe do Comando Militar do Planalto,
general Gustavo Henrique Dutra, o ex-comandante do Exército Marco Antônio
Freire Gomes e os ex-ministros de Bolsonaro Walter Braga Netto e Augusto
Heleno.
Na PF, essa lista ainda ganha o acréscimo do
general Mauro Lourena Cid, pai do ajudante-de-ordens de Jair Bolsonaro,
tenente-coronel Mauro Cid, investigados no inquérito que apura a venda nos
Estados Unidos de joias sauditas recebidas como presentes de Estado. O
presidente da CPI, Arthur Maia (União-BA), já declarou que o caso das joias não
é o foco das apurações, mas na PF o constrangimento será inevitável.
Embora esse tipo de negociação nem sempre ocorra
diante dos holofotes, até mesmo a publicidade dada às visitas de Múcio visava
mandar um sinal para a tropa de que o comando está preocupado e atuando para
defender a imagem do Exército.
O clima tenso tem exigido do general Tomás um
trabalho interno e externo de articulação com oficiais da ativa e da reserva
para tentar evitar qualquer tentativa de insubordinação. Internamente, ele tem
viajado para visitar tropas pelo Brasil e pedido aos seus comandantes que façam
o mesmo.
Na semana passada, ele emitiu uma “ordem de
serviço”, como se chamam os textos com diretrizes sobre o trabalho do Exército,
em que declarava como prioridades “intensificar as ações que contribuam para a
proteção e o fortalecimento da imagem e da reputação do Exército”, “buscar a
ampliação de recursos orçamentários” e reforçar a assistência social do
Exército.
Preocupado também com o mau humor na reserva, ainda
mais impregnada pelo bolsonarismo do que a ativa, Tomás Paiva tem mantido contato
frequente com alguns generais que atuaram no governo passado e que ele
considera “formadores de opinião”.
Nessas conversas, faz relatos sobre sua ação
institucional e dá informações sobre o que tem feito nos bastidores – como, por
exemplo, o apoio moral ao general Mauro Lourena Cid, que ele sempre ressalta
que é parte da família militar, independentemente das irregularidades que tenha
cometido.
Tudo para tentar diminuir o incômodo generalizado
com o desgaste da prisão do tenente-coronel Mauro Cid e da implicação de seu
pai, o general Mauro Lourena Cid, no caso das joias.
Especialmente na reserva, as críticas têm ocorrido
longe da exposição das redes sociais. Em grupos privados, segundo estes
relatos, muitos têm se queixado sobre o desgaste da imagem da Força e à falta
de cuidado da chamada “família militar”, em especial no caso de Mauro Cid.
Segundo fontes ouvidas pela equipe da coluna,
alguns generais da reserva têm sinalizado essa insatisfação deixando de
comparecer a solenidades oficiais nos últimos meses, como a celebração do Dia
do Exército, em abril, apesar de convidados. Um potencial termômetro será a
comemoração do Dia do Soldado, nesta sexta-feira, em Brasília.
Nos perfis oficiais do Exército e de alguns
comandos regionais, como o do Sudeste, publicações referentes à data
comemorativa receberam uma enxurrada de críticas da militância bolsonarista. A
maioria das mensagens acusa as Forças Armadas de “trair” golpistas presos pelos
ataques do 8 de janeiro e tacha militares da ativa como “melancias” – gíria
militar referente a oficiais que se dizem conservadores, mas na verdade são
esquerdistas ou comunistas.
Fonte: Veja/O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário