TRABALHO QUE GARANTE A LIBERDADE
Em 28 de abril de
2021, um ônibus saiu de Aracatu, cidade do sudoeste da Bahia, rumo a
Pedregulho, no interior de São Paulo. A bordo, moradores de Aracatu que iam
trabalhar numa fazenda de café. O ônibus estava em más condições, alguns
passageiros foram em pé, mas o trajeto de 1200 km, feito em cerca de 17 horas
de viagem, foi concluído. Entre os 76 passageiros, estavam Taiane Nunes dos
Santos, seu marido e seu filho de 1 ano e 7 meses. Aos 17 anos, ela deixou,
pela primeira vez, a cidade onde nasceu e cresceu. O marido iria pra colheita,
e ela seria babá das crianças que ficariam sozinhas enquanto os pais
trabalhavam nos cafezais.
Segundo
o combinado feito com o gato – aliciador de pessoas para trabalho escravo -,
após um período de 4 meses, Taiane receberia 500 reais para cada criança
cuidada. Ela ficou responsável por seis crianças. O batente começava às quatro
da manhã e se estendia até às oito da noite – 16 horas de trabalho diárias, de
domingo a domingo, sem folga prevista. Mesmo assim ela achou que valia a pena –
e nunca se deu conta de que, em quatro meses, cada hora de trabalho renderia
cerca de 1,50 reais. “Aqui em Aracatu não tem trabalho pra todo mundo, é comum
ir pras plantações”, explica. “Disseram que ia ser bom, que a gente ia ter
comida, que ia ter um dormida boa. Foi tudo ao contrário.”
No
alojamento em Pedregulho, os quartos não tinham camas suficientes para acomodar
todos os trabalhadores. Os preços dos mantimentos oferecidos eram abusivos. Já
na primeira semana na fazenda, os trabalhadores manifestaram a necessidade de
melhores condições, sem resultado. Faltava até água para banho. Em caso de
acidentes, os trabalhadores não tinham suporte. Eles pagavam para usar as
ferramentas e também foram cobrados pela passagem do ônibus da Bahia para São
Paulo. As dívidas iam crescendo, já que o valor gasto com mantimentos era
abatido do pagamento que seria feito ao final da colheita. Para piorar a
situação, as compras precisavam ser feitas em um estabelecimento específico com
alimentos superfaturados. O transporte ficava por conta do aliciador, e era
impossível conseguir fazer as compras em outro lugar.
Em
8 de junho de 2021, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado ao
Ministério Público do Trabalho, chegou a Pedregulho e contabilizou 56
trabalhadores sem registro, todos de Aracatu. “Foi muito assustador porque a
gente ainda não imaginava que estava passando por uma situação de trabalho
análogo à escravidão”, lembra Taiane. Entre a inspeção e o resgate, os quinze
dias de espera foram permeados por assédios, com os aliciadores tentando
convencer os trabalhadores a deixarem tudo pra lá. Quando a proposta foi
rejeitada pelos trabalhadores, a violência escalou. “Eles jogavam pedra na casa
da gente a noite toda, foi desesperador. As mães precisaram colocar a mão na
boca dos seus filhos para eles não chorarem.
Quando os
agricultores voltaram a Aracatu, foram procurados para fazer parte do projeto
Vida Pós-Resgate, desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho em parceria
com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A ideia era oferecer aos resgatados
uma atividade que assegurasse trabalho e renda, para que eles se emancipassem
socialmente e não mais fossem atraídos para trabalhos em condições degradantes.
“A gente estava com medo. Todo mundo achou que seria mais gente tentando nos
enganar”, lembra Taiane, que agora, aos 19 anos, preside a Associação
Agroecológica de Aracatu – Bahia, a Aagroab. “Numa votação me indicaram como
presidente e pediram muito para assumir o cargo, porque eu era uma das poucas
pessoas que sabia ler e escrever.”
Criado em
2017, o Vida Pós-Resgate surgiu para combater a alta reincidência dos casos de
trabalho análogo à escravidão. Segundo Lys Sobral Cardoso, procuradora e
gestora da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas) do Ministério Público do Trabalho e uma
das coordenadoras do projeto, as políticas públicas atuais não são suficientes
para garantir a emancipação dos resgatados: “A principal política pública de
atendimento às vítimas é o seguro-desemprego – cerca de um salário mínimo por
três meses. Muitas vezes, as indenizações demoram e em outras nem chegam a ser
pagas. Então mesmo nos casos em que havia assistência, os casos de reincidência
não eram poucos, e às vezes até para um mesmo empregador, o que mostrava que a
gente precisava de uma política emancipatória de fato.”
Segundo
o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, 1,73% dos 35 mil
trabalhadores resgatados da escravidão no país entre 2003 e 2017 eram vítimas
reincidentes, ou seja, 613 trabalhadores foram resgatados pelo menos duas vezes
no período de quinze anos. O número, que parece baixo, esconde um problema
recorrente dos índices que tratam do trabalho escravo no Brasil: a
subnotificação. Outra dificuldade é que muitas vezes pessoas naturalizam o
trabalho análogo à escravidão – o que, aliado à dificuldade de aceso aos órgãos
fiscalizadores, diminui drasticamente o número de denúncias, casos descobertos
e resgates. À piauí, Taiane contou que não era a primeira vez que
os aracatuenses iam para colheita. “Tem gente que vai sempre. Vai fica uns 3 a
5 meses, aí volta pra casa e no próximo ano volta de novo. Tem gente que já tem
uns cinco anos nessa”.
Com
14 mil habitantes, Aracatu ocupava em 2016, de acordo com a Superintendência de
Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), a segunda posição no ranking dos
municípios baianos de origem dos trabalhadores resgatados em situação análoga à
escravidão. O município, a 620 km de Salvador, sofre com a baixa oferta de
empregos formais, e esse é um dos motivos para que os gatos consigam aliciar os
trabalhadores da região. “Aqui não tem emprego pra todo mundo, só tem mercado,
farmácia e lojas pequenas, então a necessidade obriga o pessoal a ir”, conta
Taiane. Ainda segundo o SEI, anualmente saem de Aracatu de 2,5 mil a 3 mil
pessoas.
Para
Gilca Oliveira, especialista em Economia Rural, professora de economia da UFBA
e uma das coordenadoras do Vida Pós Resgate, o mais preocupante da situação de
Aracatu é o perfil das migrações: “É uma migração que mobiliza famílias
inteiras. E é mais preocupante porque as crianças rompem o ciclo de estudos e
vão naturalizando a exploração em condições análogas a escravidão.” Taiane vive
isso em seu dia a dia: “Aracatu fica vazia quando as pessoas vão para a
colheita. As escolas ficam com no máximo 30% dos alunos.”
O
Vida
Pós-Resgate tem três metas definidas: mapear o que aconteceu com os
trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão entre 2003 e 2016
no Mato Grosso e na Bahia; apoiar iniciativas que protejam os trabalhadores das
instabilidades do mercado de trabalho; e colaborar com a análise e os ajustes
de políticas públicas já existentes para a assistência de trabalhadores
resgatados. O idealizador do projeto, Vitor Araújo Filgueiras, trabalhou como
auditor fiscal do Ministério do Trabalho entre 2007 e 2017 e atualmente é
professor no Programa de Pós-Graduação em Economia da UFBA. Segundo ele, o Vida
Pós-Resgate se diferencia de outros programas da área por buscar alternativas
além do mercado de trabalho tradicional. É preciso, diz ele, não deixar apenas
com o trabalhador a responsabilidade de conseguir nova ocupação. “As políticas
públicas que têm dominado essa temática buscam imputar ao trabalhador a
responsabilidade por conseguir um emprego. Mas o que se percebe é que, em
momentos de fragilidade econômica, essas pessoas permanecem vulneráveis e
acabam voltando à situação de servidão”, explica. No projeto, uma das
preocupações é fazer com que os resgatados produzam alimentos saudáveis que possam
garantir a soberania alimentar das famílias e da comunidade e também ser
comercializados.
Ações
por trabalho análogo à escravidão costumam resultar em dois tipos de
indenizações: por danos individuais, cujos recursos vão para cada trabalhador,
e por danos coletivos, quando os recursos são dirigidos a projetos sociais ou
fundações. O que o Vida Pós-Resgate faz é destinar as indenizações por danos
coletivos a associações criadas pelas próprias vítimas. O dinheiro é utilizado
para adquirir os insumos necessários para que os trabalhadores recomecem a
vida, inclusive comprando terras.
A
equipe do Vida Pós-Resgate tem trabalhado em parcerias para transformar o
projeto em política pública. Isso facilitaria, por exemplo, a compra de terras,
um dos entraves para que o trabalho siga adiante. Em Aracatu, os trabalhadores
criaram a associação, obtiveram um CNPJ e conseguiram receber os
recursos.
Com
a sustentabilidade como prioridade, o projeto quer colocar em prática um
sistema integrado de produção, com criação de peixes e galinhas e cultivo de
hortaliças. Como Aracatu fica no semiárido da Bahia, é preciso utilizar as
tecnologias apropriadas para garantir a produção. Foram firmadas com a Embrapa
(Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), voltada para soluções de
pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, e
a Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural), política do governo federal
focada no aperfeiçoamento dos sistemas de produção e na facilitação de acesso a
recursos, serviços e renda, de forma sustentável, para famílias rurais.
Agora,
a principal barreira a ser quebrada é a da compra da terra, porque na maior
parte dos casos os terrenos não têm escritura. Segundo a procuradora Lys
Cardoso, os trabalhadores de Aracatu chegaram a encontrar um terreno bom, mas
problemas na documentação do terreno e do atual dono da terra atrasaram o
processo. Cerca de vinte trabalhadores desistiram e voltaram para a plantação
de café. Taiane, à frente da associação, luta para que as conquistas não
desapareçam. “Eu sei que é uma responsabilidade enorme, mas farei tudo que é
possível para dar certo. A luta segue”, afirma. Para os trabalhadores que
ficaram, há uma ajuda de custo que seguirá até o momento em que o sistema
produtivo estiver operando. “Está tardando mais do que esperávamos por tantos
entraves burocráticos e caminhos que estão sendo trilhados pela primeira vez…
esse é o custo de um projeto piloto”, defende a professora Gilca Oliveira.
Fonte:
Revista Piauí
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