O sedutor mito das
ruínas das cidades perdidas
O
sol do fim de tarde projetava sombras sobre as centenas de faces de pedra
esculpidas no Templo de Bayon, enquanto eu me embrenhava pelo santuário do
século 12 no coração do sítio arqueológico de Angkor no Camboja.
Os
rostos psicodélicos despontavam de torres e paredes, todos com lábios carnudos
esboçando um sorriso desconcertante.
Era
meu primeiro dia em Angkor, e eu sabia pouco sobre a história da cidade na
época. Mas perambulando de templo em templo, me deixei facilmente levar pelos
devaneios da minha imaginação.
Na
minha mente, multidões de devotos carregavam oferendas brilhantes. Os cinzéis
ecoavam enquanto os artesãos criavam as obras-primas primorosas ao meu redor,
enquanto reis grandiosos desfilavam por largas avenidas repletas de estátuas.
"Justamente
porque um lugar não existe mais, ele pode ser transformado na cidade ideal, na
cidade dos sonhos de alguém", escreveu Aude de Tocqueville em seu livro
Atlas of Lost Cities: A Travel Guide to Abandoned and Forsaken Destination
("Atlas das cidades perdidas: um guia de viagem para destinos abandonados
e esquecidos", em tradução livre), publicado em 2014.
"A
cidade perdida é, portanto, poesia, mundo de sonho e cenário para nossas
paixões e meandros."
De
fato, lugares perdidos e abandonados exercem uma forte atração sobre a
imaginação. São uma isca para viajantes ávidos, inspirando um senso de aventura
que alimenta grandes expedições e lendas.
Vemos
nossas vidas refletidas nas pedras, imaginamos nossos dramas íntimos perante
seus cenários românticos e em ruínas. E se uma mortalha de desastres paira
sobre muitas cidades perdidas, até mesmo isso é amenizado com o passar do
tempo.
"Por
provavelmente milhares de anos, as pessoas têm contado histórias de aventura
sobre terras dramáticas além de nossas fronteiras — histórias sobre
civilizações antigas", diz Annalee Newitz, autora de Four Lost Cities: A
Secret History of the Urban Age ("Quatro cidades perdidas: uma história
secreta da era urbana", em tradução livre).
A
obra percorre continentes e milênios, apresentando quatro sítios arqueológicos
como exemplos práticos de vida urbana: Angkor, no Camboja; a
cosmópolenativo-americana de Cahokia; a cidade romana de Pompeia; e a neolítica
Çatalhöyük, na Turquia moderna.
Enquanto
histórias sobre cidades perdidas se tornam contos de viagem atraentes, Newitz
argumenta que essas narrativas muitas vezes ocultam as histórias reais por trás
dos lugares mais magníficos da humanidade.
Isso
aconteceu em Angkor, onde passei tardes ensolaradas em meio às ruínas.
Newitz
explica que a cidade era habitada quando o explorador francês Henri Mouhot
chegou lá em 1860 — na verdade, nunca havia sido totalmente abandonada —, mas o
visitante não poderia imaginar que antepassados cambojanos fossem capazes de
tamanha grandeza.
"À
primeira vista, ficamos repletos de uma profunda admiração, e não podemos
deixar de perguntar o que aconteceu com essa raça poderosa, tão civilizada, tão
iluminada, responsável por essas obras gigantescas", escreveu Mouhot.
Ele
especulou que Angkor havia sido construída por antigos gregos ou egípcios. Na
França, explica Newitz, sua visita foi aclamada como uma
"descoberta".
"As
histórias de cidades perdidas se tornaram tão populares na era moderna — a
partir do século 19 ou 18 — porque eram realmente uma boa maneira de disfarçar
o colonialismo", explica Newitz.
"Isso
permite que você justifique todos os tipos de incursões coloniais. Dizer 'esta
não é uma civilização que está indo bem por conta própria. E a evidência que
vemos disso é que eles se afastaram de um grande e misterioso passado perdido.'
"
Encontrar
cidades e civilizações perdidas era uma obsessão para alguns exploradores e
colonizadores europeus.
Esse
frenesi foi alimentado, em parte, pela busca pela cidade perdida mais famosa da
história: Atlântida, que apareceu pela primeira vez nos escritos de Platão.
Sua
Atlântida fictícia prosperou antes que o declínio moral trouxesse o castigo
divino.
Os
contemporâneos do filósofo teriam reconhecido a história como uma alegoria, diz
o historiador Greg Woolf, autor do livro The Life and Death of Ancient Cities:
A Natural History ("A vida e a morte das cidades antigas: uma história
natural", em tradução livre).
"Contar
um mito para ilustrar uma verdade maior era amplamente compreendido",
acrescenta Woolf.
"Não
acho que alguém tenha acreditado seriamente que [Atlântida] existia, mas era um
mito conveniente."
No
entanto, quando os textos de Platão sobre Atlântida foram distribuídos em
traduções modernas, encontraram um público mais crédulo.
"As
pessoas estavam lendo isso exatamente ao mesmo tempo que fundavam colônias no
Novo Mundo", explicou Edith Hall, especialista em clássicos, em entrevista
recente ao podcast History Extra, da BBC.
Interpretando
mal o trabalho de Platão, muitos leram o conto alegórico de forma literal,
disse ela.
"Eles
ficaram impressionados. Todo mundo disse que (Atlântida) tinha que estar na
América."
Quando
esses colonizadores europeus encontraram civilizações nativas, escreve Newitz,
eles lutaram por conexões com um passado misterioso, muitas vezes ignorando
convenientemente povos contemporâneos bastante reais.
Foi
o que aconteceu em Cahokia, uma antiga metrópole localizada perto da atual
cidade americana de St Louis.
Os
imponentes montes de terra presentes ali rivalizavam com as pirâmides egípcias
em altura, e no auge de Cahokia em 1050 d.C., a cidade era maior do que Paris.
Os recém-chegados europeus tiveram dificuldade de aceitar isso.
"Viajantes
e aventureiros contavam a si mesmos todos os tipos de histórias malucas, como
se os antigos egípcios tivessem vindo aqui para construir", diz Newitz.
Foi
um mito que serviu para justificar o roubo de terras indígenas amplamente
descritas como "vazias". Enquanto isso, assim como em Angkor, os
descendentes dos construtores de Cahokia foram desprezados como sendo incapazes
de realizar tais projetos.
Contos
de cidades perdidas também podem esconder outras verdades, escreve Newitz, como
a maneira como os povos antigos se reinventavam quando deixavam um lugar para
trás.
O
desastre e o colapso são muitas vezes apresentados como o fim da história, mas
em Pompeia e Çatalhöyük, Newitz enxerga o vislumbre de um novo começo em meio à
agitação social.
Depois
que a erupção vulcânica transformou Pompeia em um cemitério, em 79 d.C., os
pompeianos traumatizados começaram imediatamente a reconstruir suas vidas nas
proximidades de Nápoles e Cumas.
Citando
o trabalho do especialista em clássicos Steven Tuck, Newitz relata que muitos
refugiados conhecidos pelos historiadores tinham nomes que os marcavam como
liberti, escravos libertos.
Enquanto
as convenções romanas para nomes costumavam ser conservadoras, mantendo os
mesmos nomes geração após geração, Tuck observou um padrão interessante entre
as famílias de refugiados de Pompeia.
Deixando
para trás seus antigos nomes liberti, alguns optaram por chamar seus filhos
pelos nomes dos lugares onde chegavam, como a movimentada cidade portuária de
Puteoli.
Lá,
algumas famílias recém-chegadas deram aos filhos o nome de Puteolanus.
É
como se mudar de um campo de refugiados para Londres e chamar seu filho de
"Londrino", Tuck me explicou por e-mail.
"A
realocação deu a eles essa oportunidade e eles a aproveitaram."
E
nas próprias cidades em declínio, Newitz apresenta uma comunidade vívida, e não
povos antigos presos ao capricho da história.
É
o que ela vê nas ruínas de Çatalhöyük, um assentamento neolítico que prosperou
há 9 mil anos na planície de Konya, no centro da atual Turquia.
As
casas ali eram construídas uma ao lado da outra como as células de um favo de
mel, diz ela no livro.
Nas
noites quentes, os moradores se reuniam nos telhados, fazendo refeições e
artesanato juntos. Mas, apesar de toda efervescência criativa da vida na
cidade, nem tudo eram flores.
Com
o tempo, ficou mais difícil permanecer em Çatalhöyük: o clima se tornou menos
favorável e as tensões sociais aumentaram.
Embora
muitas histórias sobre cidades perdidas pareçam confusas e míticas, Newitz
retrata o abandono de lugares como Çatalhöyük como resultado de um processo bem
fundamentado.
Com
o tempo, o povo de Çatalhöyük simplesmente optou por voltar para áreas mais
rurais, um processo familiar para qualquer morador de cidade grande hoje que
melancolicamente passa os olhos pelos anúncios de imóveis que evocam a vida no
campo.
"Vamos
procurar um lugar melhor e tentar de novo, tentar uma nova experiência, tentar
construir de forma diferente, tentar viver de maneira diferente", afirma
Newitz, sugerindo conversas que podem ter ocorrido nos lares neolíticos.
As
famílias partiram uma a uma, até que finalmente Çatalhöyük ficou vazia.
Mas
quando os habitantes foram embora, cada um levou consigo o que considerava mais
importante. Assim, suas artes, ideias e cultura material se irradiaram pela
planície de Konya à medida que famílias construíam uma nova vida longe do denso
povoado.
Embora
Cahokia e muitas outras cidades possam estar abandonadas, de certa forma, elas
não estão perdidas de maneira alguma para nós.
"Ainda
temos todas essas memórias culturais de onde estivemos", diz Newitz.
"É
a continuação de todo o caminho."
Ø
A 'cidade perdida'
descoberta por pesquisadores de animais que se imaginava extintos
A selva de Mosquitia, que se estende do leste de
Honduras ao extremo norte da Nicarágua, é uma das maiores florestas tropicais
da América Central e — até recentemente — um dos lugares menos explorados do
planeta.
Em
2013, arqueólogos descobriram as ruínas de uma antiga "cidade
perdida" escondida em suas profundezas, a partir do uso da tecnologia de
mapeamento a laser LIDAR (da sigla em inglês Light Detection and
Ranging, ou seja, detecção e medição com luz).
Desde
então, pesquisadores têm estudado esta floresta densa, não apenas à procura de
mais vestígios da antiga cidade mesoamericana, mas em busca de vida selvagem em
seu território intocado.
E
o que descobriram recentemente foi melhor do que podiam imaginar: um rico
ecossistema com centenas de espécies da fauna e da flora — algumas das quais
acreditava-se estarem extintas.
Em
2017, uma equipe de biólogos — liderada pelo Programa de Avaliação Rápida da
Conservação Internacional em parceria com o governo de Honduras — passou duas
semanas na selva de Mosquitia.
A
expedição era para pesquisar e catalogar as diversas espécies raras e ameaçadas
de extinção que encontraram na bacia do Rio Plátano, que corre pela floresta.
Entre
as descobertas feitas pela equipe, estão 22 espécies de plantas e animais nunca
antes registradas em Honduras — e duas espécies da fauna que se pensava estarem
extintas no país: o morcego Phylloderma stenops e a
cobra Rhinobothryum bovallii, além do besouro-tigre, que tinha sido
visto apenas na Nicarágua e era considerado extinto.
"O
fato de termos encontrado o besouro-tigre na 'cidade perdida' sugere que este
lugar é realmente 'saudável'", diz Trond Larsen, líder da expedição.
No
total, os pesquisadores documentaram centenas de espécies de plantas,
borboletas e mariposas, aves, anfíbios, répteis, peixes e mamíferos — destaque
para uma grande presença de felinos, como onças, pumas, jaguatiricas,
jaguarundis e gatos-maracajá — vivendo na floresta tropical.
"Alguns
mamíferos grandes tendem a fugir assim que ouvem ou sentem o cheiro de gente
perto. Mas os macacos-aranha-de-Geoffroy, espécie ameaçada de extinção, não
eram nada tímidos", recorda Larsen.
"Havia
grupos enormes deles nas árvores, balançando os galhos para a gente, curiosos
em tentar descobrir o que estava acontecendo, por que todas aquelas pessoas
estavam trabalhando ao redor deles."
Larsen
lembra ainda o encontro que teve com um puma quando caminhava sozinho à noite
pela floresta.
"Eu
me virei e vi aqueles olhos grandes e brilhantes se movendo lentamente na minha
direção, ele estava meio agachado e movia a cabeça para frente e para trás
olhando para mim."
"Nós
meio que olhamos para baixo, e então o puma se virou e desapareceu em meio à mata.
Estava escuro como breu, e eu não fazia ideia de onde ele estava. Foi quando
comecei a ficar um pouco nervoso", revela.
A
principal explicação para tamanha diversidade é que a área permaneceu
praticamente intocada pelo homem por séculos, depois que os ancestrais das
comunidades indígenas que hoje vivem na região abandonaram inexplicavelmente a
antiga cidade que um dia existiu ali.
"Podia
haver atividades não muito longe de onde estávamos trabalhando, mas nas
imediações de onde estávamos, era praticamente intocado pelo homem",
afirma o pesquisador.
·
Difícil acesso
A
floresta de 350 mil hectares é coberta sobretudo por árvores densas de 25m a
35m de altura, com algumas chegando a atingir 50m — e, por isso, o acesso não é
fácil.
Os
pesquisadores tiveram que ser transportados de helicóptero até lá.
"A
única forma de acesso aos locais que visitamos era de helicóptero, porque era
longe de qualquer estrada ou qualquer tipo de acesso", explica.
Em
solo, a folhagem da mata era tão densa que precisaram abrir caminho com facões.
E,
por questão de segurança, Larsen conta que a equipe foi escoltada o tempo todo
por soldados armados.
A
área também compreende a Reserva da Biosfera do Rio Plátano, a maior área
protegida de Honduras — e Patrimônio Mundial da Unesco.
Além
de abrigar toda essa vida selvagem, a selva de Mosquitia é essencial para o
processo de captura dos gases causadores do efeito estufa da atmosfera.
No
entanto, a região tem sido ameaçada pelo tráfico de animais e pelo desmatamento
— 90% dos danos à floresta tropical são causados pela pecuária ilegal, que
também é fortemente
impulsionada pelo tráfico de drogas na área.
Em
um esforço para preservar a região, a floresta tropical agora está sendo
parcialmente vigiada e patrulhada por militares hondurenhos.
Em
2018, o governo lançou um programa para proteger tanto a floresta quanto as
ruínas da cidade antiga, que permaneceram intocadas e sem ser saqueadas por
gerações — algo incomum para qualquer sítio arqueológico na América Central.
Ø
A
'Cidade Perdida do Deus Macaco' que guarda animais antes considerados extintos
Em 2015, um grupo de arqueólogos achou um
"tesouro" na floresta de La Mosquita, no nordeste de Honduras.
Lá,
eles encontraram as ruínas milenares de um assentamento que alguns consideram
corresponder à chamada "Cidade Branca", também conhecida como
"Cidade Perdida do Deus Macaco".
Agora,
um grupo de pesquisadores revelou que esse lugar está no meio de um ecossistema
próspero e exuberante, onde existem várias espécies raras, outras que se
acreditava estarem extintas e até uma aparentemente desconhecida.
A
expedição ficou a cargo da organização Conservation International, com o apoio
do governo de Honduras.
Mas
como é este lugar e o que os cientistas descobriram?
·
Uma área pouco explorada
Com
350 mil hectares, a floresta La Mosquita é a maior área protegida de Honduras e
é uma das zonas menos exploradas das florestas da América Central.
Os
biólogos da Conservation Internacional consideram que o local tem uma
biodiversidade "excepcional", com uma grande riqueza de aves,
mamíferos, insetos, peixes, anfíbios e plantas.
Para
os especialistas, essa diversidade é um sinal de que a floresta está
"intacta e saudável".
"Nossas
descobertas enfatizam o papel fundamental da conservação dos ecossistemas
intactos da Cidade Branca para garantir a conectividade da paisagem e a
continuidade a longo prazo de espécies ameaçadas", diz um comunicado da
Conservation International.
·
Quais espécies eles acharam?
Entre
as descobertas mais surpreendentes, os integrantes da expedição destacam:
- 22 espécies de
aves que não eram registradas em Honduras, incluindo a "grande arara
verde", que é ameaçada de extinção e considerada "extremamente
rara" nesta região;
- O morcego de
cara vermelha, que não era visto em Honduras havia 75 anos, foi "redescoberto";
- A falsa cobra
coral de árvore, que não era vista em Honduras desde 1965;
- Um
besouro-tigre que era considerado extinto;
- Um peixe da
espécie Molly que aparentemente nunca havia sido registrado;
- Uma população
flutuante de queixadas, uma espécie de porco que não é mais encontrada em
grande parte da América Central;
- 30 espécies de
mamíferos, incluindo caçadores, como onças, pumas, tigrillos e
jaguatiricas;
- 183 espécies
de plantas, 246 espécies de borboletas, 22 espécies de anfíbios e 35
espécies de répteis.
"Em
geral, nossas descobertas mostram que a área tem importância ambiental e
arqueológica global", disse Trond Larsen, diretor do Programa de Avaliação
Rápida da Conservation International.
"Com
esse conhecimento em mãos, as partes interessadas podem agora começar a
desenhar e implementar estratégias de conservação para proteger esse
ecossistema."
Fonte:
BBC Travel
Nenhum comentário:
Postar um comentário