O desafio de
distribuir a renda no Brasil
A
distribuição funcional da renda refere-se à repartição da renda gerada na
economia pelos fatores utilizados na produção. O termo funcional indica que a
repartição da renda é determinada de acordo com a função desempenhada pelos
agentes no processo produtivo, se proprietários de capital, da força de
trabalho ou responsável pela arrecadação e alocação dos impostos. Tais relações
contribuem para a avaliação dos padrões distributivos nas sociedades.
Considerando
que as remunerações incluem os salários e as contribuições sociais recebidas
pelos assalariados e o excedente operacional é o rendimento das empresas
(financeiras e não financeiras), dos proprietários de imóveis, de terras e de
outros ativos; e que a renda gerada na economia também inclui o montante
destinado aos impostos sobre a produção, as condições econômicas e sociais são
determinantes para o resultado da distribuição funcional. Fatores como a
organização produtiva, o peso e a forma de tributação, o valor do salário
mínimo e o grau de organização sindical, bem como os efeitos de políticas
econômicas, têm impactos sobre como a renda é distribuída entre os distintos
agentes institucionais.
O
estudo da distribuição funcional é importante sobretudo para países que
historicamente apresentam renda desigual, como o caso do Brasil. Internacionalmente,
este tema está no âmbito da Agenda 2030 para o acompanhamento de indicadores
sociais, econômicos e ambientais dos países membros da ONU. O indicador
“participação das remunerações do trabalho no PIB” faz parte do Objetivo 10:
“Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles”.
Como
evoluiu a distribuição funcional no Brasil nos últimos anos? A política de
valorização do salário mínimo contribuiu, de fato, para uma melhor distribuição
funcional da renda? Como foi sua trajetória depois do fim do ciclo de
crescimento econômico do país, após 2014? E, em seguida, durante o
aprofundamento da crise econômica e da estagnação que o Brasil viveu nos anos
seguintes? Utilizando a nomenclatura apresentada por Pochmann (2022), em que o
período recente da história política brasileira é classificado em mandatos
presidenciais denominados Neoliberal (1994-2002), Trabalhista (2003-2015) e
Ultraliberal (2016 em diante), a pergunta adicional é se as distintas
tendências políticas que governaram o país entregaram resultados diferenciados
para a participação da remuneração do trabalho no PIB brasileiro.
Os
resultados, obtidos a partir da base de dados do Sistema de Contas Nacionais do
IBGE, indicam que houve queda da participação da remuneração do trabalho até
2004, sendo que após esse ano, ao contrário, houve permanente tendência de
crescimento que vigorou até 2015. De 2016 em diante, entretanto, a remuneração
do trabalho sobre o PIB assumiu tendência inversa, com estagnação e posterior
redução até 2020, último ano disponível.
O
comportamento favorável aos trabalhadores, entre 2004 e 2015, pode ser
atribuído a fatores externos e internos. Em um primeiro momento, prevaleceu o
crescimento da economia mundial e o aumento das exportações brasileiras, o que
beneficiou a economia dos países emergentes. Entretanto, após a crise
internacional de 2008 e a retração dos mercados mundiais, foram os aumentos
reais do salário mínimo, a consolidação de programas sociais reconhecidos e a
expansão do investimento público que estimularam a demanda doméstica e
propiciaram o aquecimento da economia que, por sua vez, sustentou a criação de
vagas formais no mercado de trabalho. Embora tenha beneficiado o trabalhador,
este aquecimento do mercado interno foi também positivo para empresas, pois as
vendas de bens e serviços cresceram, assim como o excedente operacional em
termos absolutos.
A
comparação internacional mostra que, em um ranking de 50 países da base de
dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o
Brasil avançou da 38ª para a 28ª posição na participação da renda do trabalho,
entre 2004 e 2015. Entretanto, com a drástica reversão nos anos seguintes,
entre 2016 e 2020, o Brasil perdeu o que foi conquistado e voltou para a 38ª
posição no ranking. Nacionalmente, a participação da remuneração do trabalho
retornou ao nível de 2010, revelando uma década perdida nesse indicador
(Gráfico 1).
Após
o final da gestão da presidenta Dilma, no início de 2016, uma série de
políticas econômicas contra os trabalhadores foram rapidamente implementadas.
Dentre elas, destaca-se a reforma trabalhista, que tornou os trabalhadores mais
vulneráveis com a possibilidade de terceirização irrestrita e a adoção dos
contratos intermitentes de trabalho. O fim da regra de reajuste real do salário
mínimo, referência para a maioria dos empregados formais e até mesmo informais,
e a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que inibe o
investimento e a geração de empregos fomentada pelo Estado, foram duas outras
medidas que prejudicaram a destinação da renda gerada aos trabalhadores.
O
conjunto dessa obra, compilada sob o nome de “Ponte para o Futuro”, apresentada
no governo Temer e continuada no governo Bolsonaro, trouxe nítido
desaquecimento da economia, deterioração do mercado de trabalho e – talvez o
pior dos efeitos – rigidez para que as rendas geradas pela atividade econômica
sejam repartidas com mais equilíbrio entre capital e trabalho. A aprovação, já
em 2021, da autonomia (em relação ao governo eleito) do Banco Central, órgão
que define a taxa básica de juros vigente no país, foi mais uma medida que
proporciona aos detentores de capital margens maiores na distribuição da renda.
Dessa
forma, além de intensos, os efeitos contrários a uma melhor distribuição
poderão ser duradouros, independentemente do governo que esteja no comando do
Poder Executivo Federal. A indução do crescimento via gastos públicos é
importante instrumento para qualquer país, sobretudo para os menos
desenvolvidos e com alto grau de carências sociais, como o Brasil. A
coordenação de políticas monetária e fiscal com o Banco Central e a efetiva
distribuição de renda com programas sociais e com aumentos reais dos salários,
bem como o fortalecimento da ação sindical são fundamentais para a retomada da
melhoria da distribuição funcional da renda no Brasil.
Para
tanto é necessário que se adotem medidas que favoreçam a remuneração do fator
trabalho, responsável por cerca de 75% da renda total das famílias brasileiras.
Dentre elas destacamos:
• Aumentar gastos de investimento e
custeio dos equipamentos públicos;
• Rever a regra de reajuste do salário
mínimo, passando a conceder novamente aumentos acima da inflação;
• Reduzir juros em uma ação coordenada
entre o governo e o Banco Central;
• Fortalecer os sindicatos e proteger os
trabalhadores, sobretudo os mais vulneráveis;
• Implantar uma reforma tributária
progressiva com o objetivo de desonerar o consumo e aumentar a tributação da
renda e do patrimônio.
O
governo Lula, marcado por ter conquistado, no passado, resultados favoráveis à
classe trabalhadora, crescimento econômico e melhor distribuição da renda, será
capaz de enfrentar tal desafio. Mas, dadas as dificuldades estabelecidas após
anos de retrocesso político, será necessário um amplo apoio das forças progressistas
para sua realização.
Entre o assalariamento precário e a
condição de escravidão. Por Henri Acselrad
Após
a eleição presidencial de 2018, especulou-se, no Brasil, sobre a eventual
contradição, no interior do governo federal então eleito, entre, de um lado, um
programa ultraliberal capitaneado por um economista formado na Escola de
Chicago e, por outro, um suposto nacionalismo autoritário sustentado por
militares que ganharam presença numérica na máquina governamental. Ao longo da
gestão governamental do período 2019-2022, foi tornando-se clara a ausência de
contradição e mesmo a convergência de forças na promoção articulada do que
poderíamos chamar de um trabalho reacionário: forças que pretendiam aprofundar
as condições de exploração do trabalho no campo e nas cidades e, também, forças
que pressionam territórios indígenas e tradicionais para favorecer a expansão
de áreas para a grande agropecuária e a mineração. O que teria unificado estas
forças de diferentes origens então instaladas no governo? O que estes
diferentes blocos de forças demonstraram ter em comum foi a expectativa de
configurar um projeto liberal-autoritário, voltado para a desmontagem de
direitos e a elevação da lucratividade dos negócios tanto pelo aumento dos
ganhos por unidade de trabalho empregada, como pela extensão das áreas
exploradas, inclusive pela ocupação de terras públicas.
Por
um lado, a pretensão de abandonar a vida política às leis do mercado penetrou o
Estado, justificando medidas indiferentes à pobreza, ao desenraizamento social,
à discriminação racial, à destruição do meio ambiente e da saúde coletiva. Por
outro lado, tornou-se explícita a recusa a tudo o que pudesse evocar
solidariedade entre pessoas, povos e gerações. Aqueles sujeitos que, na
retórica neoliberal, são apresentados como incapazes de competir, por não se
terem supostamente mostrado suficientemente empreendedores, são, pelo viés
autoritário, discriminados e inferiorizados. Na lógica deste liberalismo
autoritário, não se justificaria, para os supostos “perdedores” da ordem
competitiva, a adoção de políticas de combate à desigualdade ou de proteção à
saúde. A eles restaria aceitar trabalhar nas condições que lhes são ofertadas,
desprovidos de direitos e de proteção social, condições nas quais, por uma concepção
monolítica e abstrata, o chamado “mercado” se mostraria inclinado a acolhê-los.
Assim é que, compassivo com relação aos que dizem sofrer a “horrível condição
de ser patrão”, imediatamente após sua eleição em 2018, o presidente que
encarnou este projeto explicitamente inigualitário ameaçou os trabalhadores de
que, caso não abrissem mão de seus direitos, não obteriam emprego1.
Neste
caldo ideológico, a portaria do Ministério do Trabalho – que, em 2017, tentou,
sem sucesso, legalizar o trabalho escravo – não deveria ser entendida em
separado do projeto mais amplo de aplicar, ao mercado de trabalho formal, uma
reforma trabalhista que tornasse mais estritas as normas disciplinares
impostas, não só aos escravizados pela dívida, mas aos trabalhadores em geral.
Não por acaso representantes do agronegócio alegaram, na ocasião daquela
iniciativa, que “as novas condições políticas” – leia-se, aquelas geradas pelo
golpe parlamentar destituinte de 2016 – autorizavam a legalização de condições
de trabalho até então julgadas degradantes2. Nas condições vigentes a partir de
então, não se trataria apenas de um retorno às formas tradicionais de
imobilização do trabalho – dispositivos de fixação da mão de obra em espaços
isolados e de pouca visibilidade pública – mas da emissão de um sinal
disciplinador dos trabalhadores em geral, pelas possibilidades abertas de se
impor maior penibilidade e precarização do trabalho.
Para
entendermos a conexão entre as condições de existência do assalariamento formal
e o trabalho em condições análogas à da escravidão, não custa lembrar o
economista polonês Michael Kalecki3 que, nos anos 1940, já havia caracterizado
as razões pelas quais o estado de laissez-faire é o preferido do empresariado:
por meio da retração ou relocalização de seus próprios investimentos, os
empresários influenciam o nível do emprego e, consequentemente, induzem os
graus de disciplina que esperam obter dos trabalhadores. Para entender a
persistência de casos de trabalho análogo ao da escravidão, nas vinícolas do
Sul, no interior de São Paulo, de Goiás e em Duque de Caxias, temos que
reconhecer a influência da conjuntura e da correlação de forças sociais que
vigorou nos últimos anos. A conjuntura aberta com a eleição de um novo governo
em 2022 leva não só à exigência de se fazer cumprir a legislação que regula a
contratação de trabalho vindo de fora de uma região, mas a de por em pauta a
garantia dos direitos de autodefesa dos trabalhadores em geral.
“Terceirização é prima-irmã do trabalho
escravo”, diz ministro de Lula
Em
entrevista nesta sexta-feira (24/3), o ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT),
avaliou que a ampliação da terceirização aprovada pela reforma trabalhista de
2017 é um dos fatores responsáveis pelo aumento dos casos de trabalho análogo à
escravidão no Brasil.
“A
terceirização é prima-irmã do trabalho escravo. Cresceu muito (o trabalho
análogo ao escravo), um crescimento preocupante”, afirmou Marinho.
Apesar
da crítica, o ministro evitou falar em “revogação” da nova lei da terceirização
e de outros pontos da reforma trabalhista patrocinada pelo governo Michel
Temer, como petistas defendiam na campanha eleitoral de 2022. Segundo ele, o
governo Lula pretende ser o mediador do debate.
Marinho
ressaltou que vem cobrando celeridade na elaboração de um projeto em comum
acordo entre as centrais sindicais e o patronato, para que a proposta possa ser
encaminhada ao Congresso Nacional.
“Eu
venho cobrando, quase toda semana, as sindicais. Quase três meses se passaram.
Não temos mais quatro anos (de governo). Precisamos acelerar esse processo de
entendimento. A meta das próprias sindicais é consolidar essa conversa no
primeiro semestre”, contou.
• Trabalho análogo ao escravo
Na
entrevista, Marinho contou que mais de 920 pessoas foram resgatadas de
condições análogas à escravidão desde o início de 2023. “Mais importante do que
resgatar as pessoas é evitar que elas sejam escravizadas”, afirmou o ministro
do Trabalho à coluna.
Marinho
anunciou que o ministério planeja um monitoramento de trabalhadores contratados
a cada safra de grãos. O primeiro acordo deve ser fechado com produtores de
café. O ministro, porém, pediu para empresários não se assustarem com as
fiscalizações.
“Não
vim aqui com um chicote na mão para castigar as empresas. Nós queremos chamar a
atenção das empresas para elas assumirem a responsabilidade com os
trabalhadores”, afirmou.
Fonte:
Fonte: Por João Hallak Neto, em Terapia Política/Outras Palavras/Metrópoles
Nenhum comentário:
Postar um comentário