Cooperação
internacional com países importadores é essencial para combater crimes
ambientais
O
aumento dos crimes ambientais e correlatos no Brasil possui relação com um
processo de fragilização e desestruturação da legislação e dos órgãos
ambientais, que na última década — e, em especial, desde 2019 — sofreu cortes
orçamentários e de redução de pessoal inéditos em âmbito nacional. Esse
contexto favoreceu o avanço da criminalidade, refletido, por exemplo, na
expansão dos garimpos ilegais em Terras Indígenas, com graves consequências
para as populações locais e para o meio ambiente, como ficou claro na crise
humanitária que afeta o povo Yanomami.
O
enfraquecimento da fiscalização ambiental, somado ao estímulo às práticas
extrativistas ilegais por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua
administração, contribuiu para mudar o
perfil da criminalidade ambiental, principalmente na Amazônia. Em outras
palavras, houve um fortalecimento de grupos criminosos organizados que lucram
com crimes ambientais, ao mesmo tempo em que se beneficiam de outras atividades
ilícitas organizadas, como o tráfico de drogas, de armas e de pessoas. Essa
relação ficou explícita no caso do grupo responsável pelo assassinato do
jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, em 2022. Ao mesmo tempo
que o grupo lucrava com a pesca ilegal em terras protegidas, também estava
envolvido com o tráfico de drogas.
E
mesmo quando as denúncias de crimes ambientais chegam à fase judicial, ainda é
baixo o número de condenações por tais ilícitos. Apesar de alguns avanços
recentes, como o uso de imagens via satélite e a criação de sistemas de
integração de informações, alguns gargalos históricos impõem empecilhos a um
combate eficaz destes crimes. Nesse contexto, a promoção da cooperação
internacional, especialmente com autoridades relevantes em países importadores
de produtos florestais, é um dos mecanismos que se destacam em estudo recente,
de minha autoria em parceria com Luísa Falcão e publicado pela Plataforma CIPÓ,
sobre operações de combate ao crime ambiental, que buscou fornecer insumos para
o aprimoramento das práticas das instituições de comando e controle.
Através
da cooperação internacional, ao se reportar irregularidades a países
destinatários dos produtos florestais, como em situações de apreensões de
madeira extraída ilegalmente, se incentiva a responsabilização não apenas do
vendedor da madeira brasileira, mas também do comprador nos mercados
consumidores. Considerando a carência de recursos humanos e materiais dos
órgãos fiscalizadores no país, especialmente na região Norte, a cooperação
internacional se destaca como uma alternativa eficaz para identificar aqueles
que lucram com comércio ilegal de recursos da floresta, como madeira e ouro.
Operações
de combate ao crime ambiental de grande repercussão, como a Operação
Arquimedes, engendradas por órgãos como Polícia Federal, Ibama e Ministério
Público Federal, utilizaram dos mecanismos de cooperação, ao identificar que,
de portos como o de Manaus (AM), se concentravam as exportações de madeira para
o exterior, oriunda de diversas localidades da região. Identificando fraudes
documentais e contêineres repletos de madeira extraída ilegalmente, passaram a
trocar informações com autoridades estrangeiras. Em 2018, a Justiça Federal
autorizou o compartilhamento de provas com o Departamento de Justiça dos Estados
Unidos, por meio de instrumento que rege a cooperação bilateral entre os dois
países, o Mutual Legal Assistance, que no Brasil é regulamentado pelo Decreto
3.810/2001. A prática inclusive incentiva a criação de um ambiente favorável à
regularização da exploração madeireira para fins de reabertura do mercado
consumidor estrangeiro.
A
cooperação pode ir além do compartilhamento de informações e documentos e ser
expandida para atuação conjunta, como a criação de equipes conjuntas de
investigação e na construção de mecanismos de devida diligência (due diligence)
e rastreamento de cadeias produtivas. Autoridades competentes nos países
envolvidos, como a Polícia Federal e a Receita Federal, poderiam integrar suas
bases de dados com sistemas de alerta de infratores recorrentes, de modo a
facilitar a responsabilização legal de (nos dois lados da cadeia) empresas e
indivíduos.
Para
além do incentivo à cooperação internacional, o estudo também traz outras
recomendações, como a promoção da criação de mais varas, promotorias e unidades
especializadas na área ambiental; a adoção de práticas investigativas que
foquem nas transações financeiras relacionadas ao comércio de produtos e ativos
advindos dos crimes ambientais, de modo a responsabilizar legalmente os que
financiam e lucram com tais crimes; entre outras medidas. A responsabilização
em todos os elos da cadeia, da extração ao consumo, deve ser entendida como
prioridade para a construção de um contexto que promova o desenvolvimento
sustentável e a justiça climática na Amazônia.
Antropólogas indígenas: de ‘objetos de
estudo’ a protagonistas
Francineia
Fontes Baniwa ri com entusiasmo ao contar uma conversa que teve com sua
companheira de viagem, Nelly Marubo, no trem para a Escócia: “Nelly olhou para
mim e disse: ‘Um dia também vamos ser professoras universitárias!’ E eu disse:
‘com certeza’”.
Nelly
e Fran são exemplos de uma geração emergente de antropólogos indígenas
brasileiros que estão transformando a relação tradicional entre antropólogos e
os povos que eles estudam. Ambas são doutorandas e visitaram o Reino Unido em
setembro de 2022, juntamente com Glicéria Tupinambá, ativista e artista
indígena.
O
objetivo da viagem? Foi justamente lecionar na St Andrews, uma das melhores
universidades do Reino Unido. Glicéria fez uma apresentação para alunos do
primeiro ano de antropologia da universidade sobre a luta pela terra dos
Tupinambá, enquanto as palestras de Fran e Nelly defenderam as vantagens de
serem mulheres antropólogas amazônicas concluindo o doutorado.
Nelly
descreve para alunos e professores de antropologia como é crescer nas
florestas. Ela diz se lembrar de sua mãe dizendo a ela: “Os antropólogos
escrevem tudo errado. Você tem que ir lá e escrever com a nossa voz [porque] os
antropólogos falam de nós do jeito deles, não do nosso jeito”.
E
foi exatamente para isso que as três mulheres indígenas foram para a Escócia.
Embora
venham de regiões muito diferentes do Brasil, as três mulheres compartilham a
experiência de lutar com seus povos por suas terras indígenas. Suas histórias
retratam um país profundamente racista, com força policial, poder judiciário e
populações rurais anti-indígenas.
O
povo Baniwa de Fran está localizado no noroeste da Amazônia, na região do Alto
Rio Negro, próximo à fronteira com a Venezuela e a Colômbia. Nas décadas de
1960 e 1970, o garimpo de ouro explodiu na área. No entanto, os 23 grupos
indígenas do Alto Rio Negro reconheceram o perigo da poluição por mercúrio e se
uniram para formar a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
“Se eles não tivessem agido, acho que o Alto Rio Negro não existiria hoje”, diz
Fran. “[Somos] 23 povos e estamos muito unidos na questão da defesa do
território porque vemos o que outros parentes [indígenas] passam. … Seu
território sendo invadido, sendo poluído.”
O
povo Tupinambá de Glicéria é originário da Mata Atlântica, na Bahia. Segundo
ela, a luta contra os fazendeiros apoiados pela polícia começou na década de
1990, quando ela era criança. “Eu caminhava no mato, pescava […] e subia nas
árvores, colhia frutas. E um dia eu estava nessa rotina, encontrei uma cerca e
essa cerca me impediu de chegar ao rio”, conta Glicéria. “E daquele dia em
diante ficamos em algumas áreas muito apertadas, muito pequenas.”
Depois
de 2001, Glicéria diz que ela e alguns jovens Tupinambá decidiram revidar,
levando-os a um confronto direto com a Polícia Federal. Glicéria conta que foi
um momento desesperador, em que foi presa e encarcerada com seu bebê. Depois de
uma luta prolongada e às vezes violenta, diz ela, os Tupinambá acabaram
recebendo ajuda de acadêmicos brasileiros. “Eles conseguiram registrar muitas
coisas que, na verdade, eram uma violação dos nossos direitos e uma
criminalização da nossas lideranças”, diz Glicéria. Os Tupinambá agora veem
suas matas se recuperarem e os animais voltarem para as terras, e Glicéria
conta que, com sua luta, conseguiram estabelecer um princípio importante:
“Existe outro modo de vida. Que tenhamos esse direito de viver nosso modo de
vida, ligados à terra”.
Nelly
é do Vale do Javari, no oeste da Amazônia, perto da fronteira com o norte do
Peru, onde, ela diz, 27 grupos indígenas isolados vivem ao lado do povo Marubo,
como revelou uma pesquisa de mapeamento aéreo de 2010. Essa é a área onde o
jornalista britânico Dom Phillips e o especialista indígena Bruno Pereira foram
assassinados enquanto faziam uma reportagem sobre a pesca ilegal em junho de
2022. De acordo com Nelly, a pesca ilegal é apenas uma das muitas pressões que
ameaçam essa área cultural e biologicamente preciosa. “Estamos vivendo uma
invasão do lado do Acre com os caçadores e do lado peruano com os garimpeiros e
plantadores de coca. Do lado do Amazonas, [enfrentamos] uma invasão de
pescadores que pescam para os colombianos”.
A
viagem à Escócia, que fez parte do programa “Amplifying Amerindian Voices”
(Amplificando Vozes Ameríndias, em uma tradução livre), patrocinado pelo Fundo
de Impacto da Universidade de St Andrews, foi organizada por Cecilia McCallum,
professora de antropologia da Universidade Federal da Bahia.
De
acordo com McCallum, a visita realmente aumentou a compreensão e a experiência
dos graduandos escoceses. “Eles tiveram a oportunidade de conhecer mulheres
indígenas da Amazônia que eliminam totalmente os tipos de estereótipos dos
quais é tão difícil se livrar se você estuda antropologia”, diz ela.
• Laços de colonização
Na
Escócia, as três mulheres indígenas se encontraram com parlamentares do Partido
Verde liderados pelo membro do Parlamento Escocês Patrick Harvie. “Queríamos
ser políticos”, explica McCallum, “então ficamos muito satisfeitos quando um
dos professores da Universidade de St Andrews se ofereceu para organizar uma
viagem [para elas] verem o Parlamento [Escocês]”.
Lá,
as três mulheres relataram as lutas que enfrentaram e firmaram uma nova
parceria. “Fiquei muito feliz em ter esse encontro com eles aqui, e que eles se
abriram para nos ouvir e entender e que possamos unir forças”, explica
Glicéria.
Harvie
identifica uma ligação entre as questões históricas escocesas relacionadas com
os desmatamentos das terras altas dos séculos 18 e 19 e as comunidades
brasileiras de hoje lutando por terras e contra o desmatamento. “A Escócia é um
país que nos séculos anteriores viu um desmatamento maciço, apreensão de terras
das pessoas que viviam lá, inclusive [com uso de] violência. E a desigualdade
que surgiu disso ainda está conosco séculos depois”, diz Harvie.
Fran
diz que essas semelhanças a deixaram muito impressionada, desde a queima de
malocas até os colonizadores proibindo os indígenas de falarem sua língua. “E
aqui [na Escócia] também havia isso. As pessoas chegaram matando, escravizando.
Forçando-os a sair de seu território… e essa cicatriz nós [ambos] carregamos.”
Para
McCallum, dar a essas mulheres indígenas a oportunidade de ouvir a história da
colonização interna no Reino Unido foi significativo. “Temos uma longa história
de objetificação de ‘índios’, povos indígenas, [povos] africanos. … Eles
[indígenas] também têm o hábito … de objetificar o [colonizador] e só ver esse
grande tipo de mega-opressor, que tem pele branca e olhos azuis e assim por
diante, e é bom sofisticar um pouco o entendimento deles da história do
colonialismo”.
Mas,
embora houvesse um trauma colonial compartilhado, também havia sinais de
esperança durante essa viagem — especialmente quando Fran e Nelly puderam
visitar Bamff Wildlands, uma antiga propriedade escocesa com um tradicional
castelo baronial em seu centro. A atual residente e gestora de Bamff, Sophie
Ramsay, explica que a terra está em sua família “há um tempo ridiculamente longo”
– cerca de 40 anos – e seu pai “já era bastante informado ecologicamente”, pois
havia feito um mestrado em conservação ecológica e “procurou maneiras de abrir
gradualmente mais espaço para a natureza e incentivar os processos naturais”.
Embora
o desmatamento tenha aumentado a taxas alarmantes na Amazônia brasileira nos
últimos quatro anos sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, na Europa as
florestas antigas foram praticamente eliminadas séculos atrás e hoje apenas
2,5% do Reino Unido é coberto por floresta nativa original. Mas há um movimento
crescente para proteger as matas que restam e dar mais terras para a floresta
nativa. A renaturalização e a agricultura regenerativa estão se tornando cada
vez mais populares no Reino Unido, com uma publicação chamando a agricultura
regenerativa de “o novo rock ‘n’ roll”.
Segundo
Ramsey, mais ações são necessárias em resposta à crise da biodiversidade e às
mudanças climáticas. “Embora as pessoas aqui falem muito sobre a Floresta
Amazônica, tanto de nossa própria natureza foi destruída historicamente que nem
mesmo sabemos como ela [era]”, explica. Durante a visita à fazenda, ela afirma
que 450 acres da propriedade foram entregues a um ambicioso projeto de
renaturalização que inclui a reintrodução de castores para ajudar a recuperar
um canal de drenagem de pântano que atravessa a propriedade.
“São
iniciativas incríveis”, diz Fran, “Você se emociona aqui sabendo que tem gente
que está nessa mesma luta, nessa mesma causa com a gente.”
• De “objetos de estudo” a protagonistas
Como
Fran explicou a uma sala de aula com cerca de 300 antropólogos do primeiro ano,
ela traz uma perspectiva diferente para o mundo da antropologia, que é o estudo
da cultura humana e da sociedade: “Temos um conceito, uma ciência própria como
povo indígena para interpretar narrativas e entender o mundo através da
antropologia”, diz ela, acrescentando que isso muda “essa questão de ser objeto
de estudo, e hoje somos protagonistas de nossas próprias narrativas, de nossa
própria história”.
Fran
e Nelly veem o desenvolvimento de uma antropologia indígena como uma ferramenta
crítica para confrontar suas contínuas lutas pela terra. “No meio da floresta,
com todos os desafios, somos pioneiros. Sou a primeira mulher com mestrado do
meu povo”, diz Fran, acrescentando que tem a responsabilidade de representar 23
povos como protagonista “nesse mundo novo e diferente”.
A
mudança climática está afetando as comunidades das três mulheres indígenas,
alterando ciclos climáticos anuais normalmente previsíveis e atividades
tradicionais de subsistência. “Monitoramos [as estações] por meio de
constelações estelares. … Verão, estação chuvosa, estação seca. Tudo era
perfeito”, explica Fran. “Hoje está tudo misturado, complicado. Então [as
mudanças climáticas] afetam diretamente nosso sustento de preparar o campo,
pescar, colher”.
Para
essas três mulheres, universidades e governos precisam ter um diálogo próximo
com os povos indígenas para encontrar uma solução para enfrentar as mudanças
climáticas, pois são especialistas em seus territórios. Para elas, é a conexão
que o conhecimento indígena tem com outros seres não humanos – sejam eles
animais ou espíritos das florestas – que é importante que a cultura ocidental
reconheça e aprenda.
As
experiências dessas mulheres mostram que é possível ver o mundo de outra forma
e criar novas e positivas narrativas, mesmo em momentos difíceis como os
enfrentados pelos Tupinambá.
Relembrando
o conselho de sua mãe, Nelly diz aos alunos de antropologia da Universidade de
St Andrews: “Hoje, dentro do movimento indígena, do movimento indigenista, não
queremos mais que o homem branco faça as coisas por nós”.
Fonte:
por Flávia do Amaral Vieira, no Le Monde/Mongabay
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