domingo, 26 de março de 2023

Cooperação internacional com países importadores é essencial para combater crimes ambientais

O aumento dos crimes ambientais e correlatos no Brasil possui relação com um processo de fragilização e desestruturação da legislação e dos órgãos ambientais, que na última década — e, em especial, desde 2019 — sofreu cortes orçamentários e de redução de pessoal inéditos em âmbito nacional. Esse contexto favoreceu o avanço da criminalidade, refletido, por exemplo, na expansão dos garimpos ilegais em Terras Indígenas, com graves consequências para as populações locais e para o meio ambiente, como ficou claro na crise humanitária que afeta o povo Yanomami.

O enfraquecimento da fiscalização ambiental, somado ao estímulo às práticas extrativistas ilegais por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua administração,  contribuiu para mudar o perfil da criminalidade ambiental, principalmente na Amazônia. Em outras palavras, houve um fortalecimento de grupos criminosos organizados que lucram com crimes ambientais, ao mesmo tempo em que se beneficiam de outras atividades ilícitas organizadas, como o tráfico de drogas, de armas e de pessoas. Essa relação ficou explícita no caso do grupo responsável pelo assassinato do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, em 2022. Ao mesmo tempo que o grupo lucrava com a pesca ilegal em terras protegidas, também estava envolvido com o tráfico de drogas.

E mesmo quando as denúncias de crimes ambientais chegam à fase judicial, ainda é baixo o número de condenações por tais ilícitos. Apesar de alguns avanços recentes, como o uso de imagens via satélite e a criação de sistemas de integração de informações, alguns gargalos históricos impõem empecilhos a um combate eficaz destes crimes. Nesse contexto, a promoção da cooperação internacional, especialmente com autoridades relevantes em países importadores de produtos florestais, é um dos mecanismos que se destacam em estudo recente, de minha autoria em parceria com Luísa Falcão e publicado pela Plataforma CIPÓ, sobre operações de combate ao crime ambiental, que buscou fornecer insumos para o aprimoramento das práticas das instituições de comando e controle.

Através da cooperação internacional, ao se reportar irregularidades a países destinatários dos produtos florestais, como em situações de apreensões de madeira extraída ilegalmente, se incentiva a responsabilização não apenas do vendedor da madeira brasileira, mas também do comprador nos mercados consumidores. Considerando a carência de recursos humanos e materiais dos órgãos fiscalizadores no país, especialmente na região Norte, a cooperação internacional se destaca como uma alternativa eficaz para identificar aqueles que lucram com comércio ilegal de recursos da floresta, como madeira e ouro.

Operações de combate ao crime ambiental de grande repercussão, como a Operação Arquimedes, engendradas por órgãos como Polícia Federal, Ibama e Ministério Público Federal, utilizaram dos mecanismos de cooperação, ao identificar que, de portos como o de Manaus (AM), se concentravam as exportações de madeira para o exterior, oriunda de diversas localidades da região. Identificando fraudes documentais e contêineres repletos de madeira extraída ilegalmente, passaram a trocar informações com autoridades estrangeiras. Em 2018, a Justiça Federal autorizou o compartilhamento de provas com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, por meio de instrumento que rege a cooperação bilateral entre os dois países, o Mutual Legal Assistance, que no Brasil é regulamentado pelo Decreto 3.810/2001. A prática inclusive incentiva a criação de um ambiente favorável à regularização da exploração madeireira para fins de reabertura do mercado consumidor estrangeiro.

A cooperação pode ir além do compartilhamento de informações e documentos e ser expandida para atuação conjunta, como a criação de equipes conjuntas de investigação e na construção de mecanismos de devida diligência (due diligence) e rastreamento de cadeias produtivas. Autoridades competentes nos países envolvidos, como a Polícia Federal e a Receita Federal, poderiam integrar suas bases de dados com sistemas de alerta de infratores recorrentes, de modo a facilitar a responsabilização legal de (nos dois lados da cadeia) empresas e indivíduos.

Para além do incentivo à cooperação internacional, o estudo também traz outras recomendações, como a promoção da criação de mais varas, promotorias e unidades especializadas na área ambiental; a adoção de práticas investigativas que foquem nas transações financeiras relacionadas ao comércio de produtos e ativos advindos dos crimes ambientais, de modo a responsabilizar legalmente os que financiam e lucram com tais crimes; entre outras medidas. A responsabilização em todos os elos da cadeia, da extração ao consumo, deve ser entendida como prioridade para a construção de um contexto que promova o desenvolvimento sustentável e a justiça climática na Amazônia.

 

       Antropólogas indígenas: de ‘objetos de estudo’ a protagonistas

 

Francineia Fontes Baniwa ri com entusiasmo ao contar uma conversa que teve com sua companheira de viagem, Nelly Marubo, no trem para a Escócia: “Nelly olhou para mim e disse: ‘Um dia também vamos ser professoras universitárias!’ E eu disse: ‘com certeza’”.

Nelly e Fran são exemplos de uma geração emergente de antropólogos indígenas brasileiros que estão transformando a relação tradicional entre antropólogos e os povos que eles estudam. Ambas são doutorandas e visitaram o Reino Unido em setembro de 2022, juntamente com Glicéria Tupinambá, ativista e artista indígena.

O objetivo da viagem? Foi justamente lecionar na St Andrews, uma das melhores universidades do Reino Unido. Glicéria fez uma apresentação para alunos do primeiro ano de antropologia da universidade sobre a luta pela terra dos Tupinambá, enquanto as palestras de Fran e Nelly defenderam as vantagens de serem mulheres antropólogas amazônicas concluindo o doutorado.

Nelly descreve para alunos e professores de antropologia como é crescer nas florestas. Ela diz se lembrar de sua mãe dizendo a ela: “Os antropólogos escrevem tudo errado. Você tem que ir lá e escrever com a nossa voz [porque] os antropólogos falam de nós do jeito deles, não do nosso jeito”.

E foi exatamente para isso que as três mulheres indígenas foram para a Escócia.

Embora venham de regiões muito diferentes do Brasil, as três mulheres compartilham a experiência de lutar com seus povos por suas terras indígenas. Suas histórias retratam um país profundamente racista, com força policial, poder judiciário e populações rurais anti-indígenas.

O povo Baniwa de Fran está localizado no noroeste da Amazônia, na região do Alto Rio Negro, próximo à fronteira com a Venezuela e a Colômbia. Nas décadas de 1960 e 1970, o garimpo de ouro explodiu na área. No entanto, os 23 grupos indígenas do Alto Rio Negro reconheceram o perigo da poluição por mercúrio e se uniram para formar a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). “Se eles não tivessem agido, acho que o Alto Rio Negro não existiria hoje”, diz Fran. “[Somos] 23 povos e estamos muito unidos na questão da defesa do território porque vemos o que outros parentes [indígenas] passam. … Seu território sendo invadido, sendo poluído.”

O povo Tupinambá de Glicéria é originário da Mata Atlântica, na Bahia. Segundo ela, a luta contra os fazendeiros apoiados pela polícia começou na década de 1990, quando ela era criança. “Eu caminhava no mato, pescava […] e subia nas árvores, colhia frutas. E um dia eu estava nessa rotina, encontrei uma cerca e essa cerca me impediu de chegar ao rio”, conta Glicéria. “E daquele dia em diante ficamos em algumas áreas muito apertadas, muito pequenas.”

Depois de 2001, Glicéria diz que ela e alguns jovens Tupinambá decidiram revidar, levando-os a um confronto direto com a Polícia Federal. Glicéria conta que foi um momento desesperador, em que foi presa e encarcerada com seu bebê. Depois de uma luta prolongada e às vezes violenta, diz ela, os Tupinambá acabaram recebendo ajuda de acadêmicos brasileiros. “Eles conseguiram registrar muitas coisas que, na verdade, eram uma violação dos nossos direitos e uma criminalização da nossas lideranças”, diz Glicéria. Os Tupinambá agora veem suas matas se recuperarem e os animais voltarem para as terras, e Glicéria conta que, com sua luta, conseguiram estabelecer um princípio importante: “Existe outro modo de vida. Que tenhamos esse direito de viver nosso modo de vida, ligados à terra”.

Nelly é do Vale do Javari, no oeste da Amazônia, perto da fronteira com o norte do Peru, onde, ela diz, 27 grupos indígenas isolados vivem ao lado do povo Marubo, como revelou uma pesquisa de mapeamento aéreo de 2010. Essa é a área onde o jornalista britânico Dom Phillips e o especialista indígena Bruno Pereira foram assassinados enquanto faziam uma reportagem sobre a pesca ilegal em junho de 2022. De acordo com Nelly, a pesca ilegal é apenas uma das muitas pressões que ameaçam essa área cultural e biologicamente preciosa. “Estamos vivendo uma invasão do lado do Acre com os caçadores e do lado peruano com os garimpeiros e plantadores de coca. Do lado do Amazonas, [enfrentamos] uma invasão de pescadores que pescam para os colombianos”.

A viagem à Escócia, que fez parte do programa “Amplifying Amerindian Voices” (Amplificando Vozes Ameríndias, em uma tradução livre), patrocinado pelo Fundo de Impacto da Universidade de St Andrews, foi organizada por Cecilia McCallum, professora de antropologia da Universidade Federal da Bahia.

De acordo com McCallum, a visita realmente aumentou a compreensão e a experiência dos graduandos escoceses. “Eles tiveram a oportunidade de conhecer mulheres indígenas da Amazônia que eliminam totalmente os tipos de estereótipos dos quais é tão difícil se livrar se você estuda antropologia”, diz ela.

•        Laços de colonização

Na Escócia, as três mulheres indígenas se encontraram com parlamentares do Partido Verde liderados pelo membro do Parlamento Escocês Patrick Harvie. “Queríamos ser políticos”, explica McCallum, “então ficamos muito satisfeitos quando um dos professores da Universidade de St Andrews se ofereceu para organizar uma viagem [para elas] verem o Parlamento [Escocês]”.

Lá, as três mulheres relataram as lutas que enfrentaram e firmaram uma nova parceria. “Fiquei muito feliz em ter esse encontro com eles aqui, e que eles se abriram para nos ouvir e entender e que possamos unir forças”, explica Glicéria.

Harvie identifica uma ligação entre as questões históricas escocesas relacionadas com os desmatamentos das terras altas dos séculos 18 e 19 e as comunidades brasileiras de hoje lutando por terras e contra o desmatamento. “A Escócia é um país que nos séculos anteriores viu um desmatamento maciço, apreensão de terras das pessoas que viviam lá, inclusive [com uso de] violência. E a desigualdade que surgiu disso ainda está conosco séculos depois”, diz Harvie.

Fran diz que essas semelhanças a deixaram muito impressionada, desde a queima de malocas até os colonizadores proibindo os indígenas de falarem sua língua. “E aqui [na Escócia] também havia isso. As pessoas chegaram matando, escravizando. Forçando-os a sair de seu território… e essa cicatriz nós [ambos] carregamos.”

Para McCallum, dar a essas mulheres indígenas a oportunidade de ouvir a história da colonização interna no Reino Unido foi significativo. “Temos uma longa história de objetificação de ‘índios’, povos indígenas, [povos] africanos. … Eles [indígenas] também têm o hábito … de objetificar o [colonizador] e só ver esse grande tipo de mega-opressor, que tem pele branca e olhos azuis e assim por diante, e é bom sofisticar um pouco o entendimento deles da história do colonialismo”.

Mas, embora houvesse um trauma colonial compartilhado, também havia sinais de esperança durante essa viagem — especialmente quando Fran e Nelly puderam visitar Bamff Wildlands, uma antiga propriedade escocesa com um tradicional castelo baronial em seu centro. A atual residente e gestora de Bamff, Sophie Ramsay, explica que a terra está em sua família “há um tempo ridiculamente longo” – cerca de 40 anos – e seu pai “já era bastante informado ecologicamente”, pois havia feito um mestrado em conservação ecológica e “procurou maneiras de abrir gradualmente mais espaço para a natureza e incentivar os processos naturais”.

Embora o desmatamento tenha aumentado a taxas alarmantes na Amazônia brasileira nos últimos quatro anos sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, na Europa as florestas antigas foram praticamente eliminadas séculos atrás e hoje apenas 2,5% do Reino Unido é coberto por floresta nativa original. Mas há um movimento crescente para proteger as matas que restam e dar mais terras para a floresta nativa. A renaturalização e a agricultura regenerativa estão se tornando cada vez mais populares no Reino Unido, com uma publicação chamando a agricultura regenerativa de “o novo rock ‘n’ roll”.

Segundo Ramsey, mais ações são necessárias em resposta à crise da biodiversidade e às mudanças climáticas. “Embora as pessoas aqui falem muito sobre a Floresta Amazônica, tanto de nossa própria natureza foi destruída historicamente que nem mesmo sabemos como ela [era]”, explica. Durante a visita à fazenda, ela afirma que 450 acres da propriedade foram entregues a um ambicioso projeto de renaturalização que inclui a reintrodução de castores para ajudar a recuperar um canal de drenagem de pântano que atravessa a propriedade.

“São iniciativas incríveis”, diz Fran, “Você se emociona aqui sabendo que tem gente que está nessa mesma luta, nessa mesma causa com a gente.”

•        De “objetos de estudo” a protagonistas

Como Fran explicou a uma sala de aula com cerca de 300 antropólogos do primeiro ano, ela traz uma perspectiva diferente para o mundo da antropologia, que é o estudo da cultura humana e da sociedade: “Temos um conceito, uma ciência própria como povo indígena para interpretar narrativas e entender o mundo através da antropologia”, diz ela, acrescentando que isso muda “essa questão de ser objeto de estudo, e hoje somos protagonistas de nossas próprias narrativas, de nossa própria história”.

Fran e Nelly veem o desenvolvimento de uma antropologia indígena como uma ferramenta crítica para confrontar suas contínuas lutas pela terra. “No meio da floresta, com todos os desafios, somos pioneiros. Sou a primeira mulher com mestrado do meu povo”, diz Fran, acrescentando que tem a responsabilidade de representar 23 povos como protagonista “nesse mundo novo e diferente”.

A mudança climática está afetando as comunidades das três mulheres indígenas, alterando ciclos climáticos anuais normalmente previsíveis e atividades tradicionais de subsistência. “Monitoramos [as estações] por meio de constelações estelares. … Verão, estação chuvosa, estação seca. Tudo era perfeito”, explica Fran. “Hoje está tudo misturado, complicado. Então [as mudanças climáticas] afetam diretamente nosso sustento de preparar o campo, pescar, colher”.

Para essas três mulheres, universidades e governos precisam ter um diálogo próximo com os povos indígenas para encontrar uma solução para enfrentar as mudanças climáticas, pois são especialistas em seus territórios. Para elas, é a conexão que o conhecimento indígena tem com outros seres não humanos – sejam eles animais ou espíritos das florestas – que é importante que a cultura ocidental reconheça e aprenda.

As experiências dessas mulheres mostram que é possível ver o mundo de outra forma e criar novas e positivas narrativas, mesmo em momentos difíceis como os enfrentados pelos Tupinambá.

Relembrando o conselho de sua mãe, Nelly diz aos alunos de antropologia da Universidade de St Andrews: “Hoje, dentro do movimento indígena, do movimento indigenista, não queremos mais que o homem branco faça as coisas por nós”.

 

Fonte: por Flávia do Amaral Vieira, no Le Monde/Mongabay

 

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