Na Bahia,
quilombolas pedem consulta prévia e paralisação de obra da Suzano dentro de
território tradicional
A
titulação dos territórios das comunidades e povos tradicionais é uma medida
fundamental para garantir sua sobrevivência e, consequentemente, dos
ecossistemas naturais com os quais eles convivem e protegem há gerações.
No
estado da Bahia, o atraso na implementação dessa política tem provocado danos
sociais e ambientais ainda não mensurados, incluindo agressões e mortes de
pessoas e aniquilação de milhares de hectares de vegetação primária ou em
estágio avançado de recuperação nos biomas Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga,
intensificando a insegurança hídrica de comunidades e cidades e a
vulnerabilidade local e global frente à crise climática.
Alguns
desses casos, no Cerrado do extremo-oeste do estado, já noticiados em ((o))eco.
Na Mata Atlântica, no extremo sul do estado, o alvo são quilombolas dos
municípios de Caravelas e Nova Viçosa, que sofrem com desmandos da Suzano Papel
e Celulose em seu território – já certificado pela Fundação Palmares, mas ainda
não titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Os monocultivos de eucalipto avançam sobre as áreas das comunidades
tradicionais, provocando seguidos danos ambientais, sociais e culturais.
Atacar
tragédias como essas pela raiz é o objetivo de uma carta endereçada a
autoridades federais e estaduais, cobrando agilidade na regularização dos
territórios de comunidades indígenas, quilombolas, ciganas, povos de terreiro,
pescadores artesanais e marisqueiras, comunidades de fundo e fecho de pasto,
geraizeiros e extrativistas.
A
carta foi enviada na última semana pelo Fórum em Defesa das Populações
Indígenas e Comunidades Tradicionais na Bahia e é assinada por 125 entidades.
Criado em agosto, o Fórum é formado por um conjunto de lideranças das próprias
comunidades e povos, além de membros do Ministério Público Federal (MPF),
defensores públicos, pesquisadores e entidades parceiras, como o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), a Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e a Associação de Advogados de
Trabalhadores Rurais (AATR).
Os
destinatários incluem o presidente Lula (PT), ministérios e autarquias afins,
lideranças do Legislativo e Judiciário federais, e, em âmbito estadual, o
governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT) e as secretarias de
Desenvolvimento Rural (SDR), Igualdade Racial (Sepromi), Justiça e Direitos
Humanos (SJDHDS), Meio Ambiente (Sema), Segurança Pública (SSP) e Assistência
Social (Seades).
O
documento traça ações a serem implementadas pelos governos federal e estadual.
No caso dos quilombolas, o Fórum evidencia dados da Fundação Cultural Palmares
(FCP) que mostram a vulnerabilidade fundiária dos territórios por conta da
demora na finalização dos processos de titulação, paralisados há uma década no
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Das
674 comunidades já certificadas pela Fundação Palmares, por exemplo, quase 94%
não têm sequer o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) no
Incra. Considerando que 407 comunidades quilombolas (quase dois terços) estão
certificadas há mais de 10 anos, o documento alerta: “mais de 100 anos serão
necessários para finalizar a regularização dos territórios quilombolas na Bahia
se o Incra continuar no ritmo atual”.
Os
signatários pedem, para os governos Lula e Jerônimo, a elaboração de planos de
atuação, com cronograma definindo prazos e metas para os próximos quatro anos e
com detalhamento de ações a cada bimestre. À gestão estadual é solicitado um
mapeamento de todo o território baiano, “identificando e arrecadando todas as
terras públicas” e que seja feita, “com urgência, a retirada de cercas,
barramentos, tapumes e similares que, ao longo de territórios tradicionais, têm
fechado caminhos centenários de servidão e cercado manguezais, praias, rios,
áreas tradicionais de extrativismo etc”.
Também
é pedido, para todos os povos e comunidades tradicionais, o monitoramento das
regiões de conflito por uma força de segurança especializada a ser criada para
este fim. A Convenção 169 da OIT é outro ponto em destaque, sendo pedida
“garantia real e efetiva do direito à consulta prévia, livre e informada (…) em
relação a projetos, obras, atividades e empreendimentos que impactem ou tenham
potencial para impactar territórios tradicionais”. A consulta, assinalam, “deve
ocorrer independentemente da fase do processo de certificação ou titulação do
território”.
Os
apontamos se assemelham aos que foram feitos em junho passado pelos
procuradores Marília Siqueira da Costa e Ramiro Rockenbach da Silva Matos
Teixeira de Almeida, na Recomendação Conjunta 2/2022, confeccionada no calor da
audiência pública realizada dias antes em Salvador. Na ocasião, as comunidades
quilombolas relataram que “projetos, obras, atividades e empreendimentos que
impactam ou têm potencial para impactar territórios quilombolas vêm sendo
objeto de licenciamento ambiental pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos
Hídricos (Inema) sem a devida e necessária consulta prévia, livre e informada
aos povos e comunidades tradicionais respectivos”, assinalam os procuradores.
O
documento cita uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de agosto de 2021,
onde o ministro Edson Fachin salienta “a necessidade de serem implementadas
medidas concretas em favor das comunidades quilombolas, impondo à União,
inclusive, a elaboração de método de acompanhamento das demandas apresentadas
por esses coletivos. E isso, ‘independentemente da fase do processo de
certificação ou titulação, visto que as comunidades não podem ser penalizadas
ou privadas de direitos em razão da mora estatal na regularização fundiária de
suas terras’”.
Ao
Inema, recomenda que “adote todas as medidas necessárias para assegurar
Consulta Prévia, Livre e Informada às comunidades quilombolas na Bahia,
listadas pela Fundação Cultural Palmares, independentemente da fase do processo
de certificação ou titulação, em relação a projetos, obras, atividades e
empreendimentos que impactem ou tenham potencial para impactar territórios
tradicionais sujeitos à atuação desse órgão ambiental estadual”.
• Estrada
A
iniciativa do Fórum baiano, calcada na audiência pública e na Recomendação do
MPF, foi recebida com esperança por oito comunidades quilombolas do extremo-sul
da Bahia, que desde dezembro rogam pela suspensão das obras da Suzano Papel e
Celulose em uma estrada que atravessa seus territórios tradicionais e pela
consulta prévia imediata, nos moldes da Convenção 169 da OIT.
No
rastro da obra, flagrantes de corte raso de Mata Atlântica e muitos transtornos
aos moradores, inclusive com a retirada de uma ponte que faz a ligação entre as
comunidades e onde um ancião morreu ao tentar improvisar uma solução que não
deixasse os moradores ilhados entre si.
Os
relatos são fartos, mas as máquinas não cessaram o trabalho em nenhum momento,
tudo com a anuência do Inema. Em ofício datado de 9 de fevereiro onde responde
à notificação do procurador da República José Gladston Viana Correia, do MPF de
Teixeira de Freitas, a diretora-geral do Inema, Márcia Cristina Telles de
Araújo Lima, considera as obras da Suzano como meros “melhoramentos de vias” e
que, por isso, estão dispensadas de licenciamento ambiental.
Com
esse posicionamento, a gestora – que já foi seguidas vezes denunciada por
entidades da sociedade civil como principal responsável pela intensificação dos
conflitos socioambientais que envolvem comunidades e tradicionais da Bahia na
última década e foi reconduzida ao cargo em fevereiro, sob novos e intensos
protestos – se mostra mais uma vez alinhada ao agronegócio e de olhos e ouvidos
vedados para as comunidades. Em resposta ao mesmo procurador, a Suzano repetiu
o discurso.
Assinado
pelo advogado Leandro Henrique Mosello Lima, o ofício da empresa alega que a
obra em curso se enquadra como uma das ações de manutenção executadas “de
maneira permanente” pela empresa, “não se constituindo como uma obra de
infraestrutura pontual e específica” e que, por isso, dispensa licenciamento
ambiental.
Sobre
as consultas às comunidades, alega que “inexiste qualquer violação ao
cumprimento do requisito da consulta livre, prévia e informada (Convenção OIT
169), por não estarem presentes os requisitos cumulativos e essenciais ao seu
ensejo, notadamente quanto a existência de território declarado, reconhecido e
aperfeiçoado como quilombola”, mas que, ainda assim, a papeleira “promove
diálogos permanentes com as comunidades autodeclaradas quilombolas,
reconhecendo sua importância”.
Afirma
ainda que os reclames em tela integram “uma sucessiva tentativa de reputar à
empresa responsabilidades ou nexos causais sobre questões gerais, abstratas e
coletivas, tentando contorcer a realidade com sucessivas e reiteradas
manifestações com fatos desprovidos de constatação técnica, científica ou
minimamente correspondentes à verdade”.
• Desmatamento e construções
Ambas
alegações destoam fortemente dos registros fotográficos e de relato feito pelo
Conselho das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Território do Extremo
Sul da Bahia em dezembro. Falando em nome das comunidades de Volta Miúda, Rio
do Sul, Helvécia, Naiá, Mutum, Cândido Mariano, Vila Juazeiro e Mota, o
documento registra os “riscos à saúde física, mental”, a “degradação e
utilização de caminhos tradicionais das comunidades” e afirmam que entendem a
obra não como de manutenção de estradas usadas não só pela Suzano, mas que ela
está sendo construída com objetivo exclusivo de concluir a ligação dos
eucaliptais, que também estão irregulares dentro do território quilombola, à
fábrica de celulose na cidade de Mucuri, na divisa com o Espírito Santo.
O
Conselho denuncia ainda “negociações escusas e promessas de aquisição das
terras afetadas, desequilibrando os conceitos filosóficos e de vida dos
agricultores familiares que integram a comunidade produtiva em seu assento de
direito”.
O
clamor recebeu, em janeiro, o apoio de 85 organizações baianas, brasileiras e
estrangeiras, e de mais de 200 pessoas em uma carta endereçada ao MPF/BA e à
Defensoria Pública da União (DPU/BA). “Pedimos para que tomem providências para
paralisar imediatamente a destruição ilegal em curso da Mata Atlântica e de
caminhos tradicionais destas comunidades por parte da empresa Suzano e sua obra
para construir uma nova estrada, agravando a destruição e invasão dos
territórios dessas comunidades”.
Essa
violência, contextualizam os signatários, “acontece logo após a Suzano receber
um empréstimo de US$ 725 milhões do Banco Mundial/IFC, em dezembro de 2022,
para construir uma nova fábrica de celulose no Brasil. Isso ocorreu apesar dos
protestos contrários a essa decisão por parte de inúmeras organizações
brasileiras e internacionais, denunciando os impactos devastadores do modelo de
produção do monocultivo de eucalipto para papel e celulose, promovido pela
Suzano no Brasil”.
• “Tô de joelhos dobrados todos os dias”
Presidente
da Associação Quilombola de volta Miúda Caravelas (APRVM) e da Cooperativa
Quilombola do Extremo Sul da Bahia (Coopqes), Célio Leocádio diz que a situação
é angustiante. “Tem momento que a gente não sabe mais onde buscar recurso, fica
sem saber o que de fato fazer. Eu tô de joelhos dobrados todos os dias, mas
tenho fé de que em alguma coisa a gente vai vencer”.
Ele
conta que a estrada começou a entrar nas comunidades em dezembro, mas calcula
que a obra toda teve início desde 2021, saindo da fábrica de Mucuri. “Como lá
não tem comunidade quilombola, eles foram fazendo o que bem entendem, mas aqui
a gente está lutando para defender os nossos direitos”.
Mas
ele conta que não foi a estrada quem inaugurou as agressões da papeleira no
território quilombola. “A situação é muito delicada. Começamos a trabalhar com
a procuradoria de Teixeira de Freitas em 2017, denunciando as patifarias todas
dela”, depõe. O primeiro tema que o MPF tentou mediar foi o afastamento dos
eucaliptais para que as comunidades sofram menos com a presença dos
monocultivos e tenham espaço para sua produção agrícola e atividades sociais.
O
rol de impactos é variado: venenos aplicados de avião que contaminam o ar, o
solo e as águas, mortandade de animais domésticos e silvestres, secamento de
nascentes, muito barulho e poeira provocado pela passagem das carretas que
transportam as toras de eucalipto, acidentes com carretas, queda de eucaliptos
com as ventanias, empilhamentos da madeira nas margens das estradas que
bloqueiam o trânsito dos moradores e facilitam a ação de bandidos.
“Temos
mais de mil páginas de denúncias desde 2017 na procuradoria”, estima Célio
Leocádio. A única ação vencida, no entanto, foi junto à companhia elétrica, a
Coelba, que levou energia elétrica para a comunidade de Volta Miúda em 2021.
“Com a Suzano a gente não consegue nada. O jurídico dela é muito forte”.
Todas
as comunidades são certificadas pela Fundação Palmares. São oito. Cinco com
processo no Incra. “Estudo foi concluído antes de Bolsonaro e nós esbarramos
com ele na parte da publicação do RTID. Fizemos cadastros das famílias, Incra
veio fazer a conferência dos territórios. Relatórios aprovados, mas não
publicados. Só uma teve relatório publicado. Itanhém, comunidade dos Motta”.
Outra
ação cara para os quilombolas da região é a que foi impetrada pelo MPF em 2019,
pleiteando ao Incra que finalize o RTID das comunidades certificadas. A
primeira decisão foi proferida em 2022 a favor do MPF, mas o Incra recorreu.
Com o novo governo federal e a carta enviada pelo Fórum de entidades ao
presidente, ministros, governador e secretários, a esperança é que agora os
relatórios sejam retomados e devidamente publicados.
A
consulta prévia (OIT 169), que também consta na carta do Fórum, deve receber em
breve um reforço via academia. “A Uneb [Universidade do Estado da Bahia] está
com projeto para trabalhar em Volta Miúda e a Pró Reitoria de Salvador pediu
para estender a todas as oito comunidades. Conseguiram aprovar um convênio e
vão custear os profissionais da UFBA [Universidade Federal da Bahia] para fazer
os nossos protocolos de consulta”, comemora Célio.
Fonte:
O eco
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