quinta-feira, 9 de março de 2023


 Lei sancionada em 2013, e questionada agora, pode ter facilitado o garimpo ilegal no Brasil

Uma lei sancionada em 2013 pode ter contribuído, nos últimos anos, para estimular e facilitar os lucros do garimpo ilegal no Brasil. O texto permite que ouro seja comercializado no Brasil apenas com base nas informações dos vendedores, sob presunção de "boa-fé" (veja detalhes abaixo).

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A regra é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ser revista, justamente no momento em que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenta conter a ação de garimpeiros nas terras Yanomami.

        1. O que diz o texto

O texto diz que "presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente" quando as informações prestadas pelo vendedor “estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro”.

As informações sobre as quais a proposta faz referência são:

        nota fiscal emitida por cooperativa ou, no caso de pessoa física, recibo de venda e declaração de origem do ouro emitido pelo vendedor;

        nota fiscal de aquisição emitida pela instituição autorizada pelo Banco Central do Brasil a realizar a compra do ouro.

A proposta aprovada diz ainda que “é de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro”.

Na prática, a redação permite que o vendedor do ouro – muitas vezes, um posseiro ou garimpeiro ilegal – apresente recibo de venda acompanhado de declaração de origem para que se presuma a legalidade do metal adquirido e a boa-fé na operação.

Como a boa-fé e a legalidade são presumidas, não há uma rotina de fiscalização da legitimidade desses documentos, que podem ser notas frias ou adulteradas.

        2. Como a regra foi aprovada

Essa norma consta em uma Medida Provisória (MP) editada pelo governo Dilma Rousseff (PT) em abril de 2013 – que, inicialmente, tratava apenas da ampliação do Programa Garantia-Safra para beneficiar agricultores familiares prejudicados por estiagem ou excesso de chuvas.

Durante a tramitação no Congresso, no entanto, parlamentares incluíram na MP o dispositivo que, na prática, afrouxou as regras de fiscalização sobre a origem do ouro comercializado no Brasil.

A inclusão de trechos sem relação com a matéria original, como nesse caso, é conhecida no jargão legislativo como "jabuti".

        3. O que dizem os especialistas

A redação reduz a responsabilidade dos bancos e agentes financeiros autorizados a mediar compra e venda de ouro no país.

A regra em vigor permite que as entidades comprem o ouro com base em informações prestadas, exclusivamente, pelos vendedores.

“De fato, é inequívoco que a extração ilegal de ouro é uma das causas do avanço do desmatamento e da violação de Direitos Humanos na Amazônia. A continuidade dessa atividade ilegal, por sua vez, está relacionada à falta de transparência e controle sobre a cadeia de extração e comércio do ouro no Brasil”, dizem o Greenpeace, o Instituto Escolhas, o Laboratório do Observatório do Clima e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente.

Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), as entidades afirmam que, ao permitir a compra de ouro com base apenas nas informações fornecidas pelos vendedores – sem que seja necessário adotar nenhuma outra providência no sentido de comprová-las –, a norma permite que ouro ilegal oriundo da Amazônia seja escoado para o mercado “com aparência de licitude”.

As organizações destacam ainda que a "evidência de vínculos familiares e empresariais entre alguns titulares de garimpos na região amazônica e representantes [de instituições financeiras]" podem tornar as irregularidades na origem do ouro "invisíveis para a sociedade".

“Ao apagar as possíveis irregularidades na primeira parte da cadeia de extração e comércio de ouro no país, o dispositivo de lei questionado também desestimula que o Poder Público adote providências para desenvolver mecanismos de controle e monitoramento mais eficientes, modernos e avançados.”

O PV, autor de uma ação apresentada ao STF, argumenta que o dispositivo impugnado exime as instituições financeiras de aprimorar seus mecanismos de controle e monitoramento.

"O contexto do dispositivo insere-se, nos termos do que temos exposto até aqui, no ambiente de agressões desmedidas e sucessivos recordes de desmatamento ambiental, denotando a ocorrência de um estado de coisas inconstitucional em relação ao dever estatal irrenunciável de preservação adequada e eficiente do meio ambiente, em sua integridade", afirma o partido.

        4. O que o STF pode fazer

Tramitam na Corte duas ações que pedem a derrubada do trecho. Uma da Rede Sustentabilidade em parceria com o PSB, e outra do Partido Verde.

Ambas são relatadas pelo ministro Gilmar Mendes. O ministro adotou o rito abreviado na apreciação das ações, o que permite com que os procedimentos sejam julgados pelo plenário definitivamente no mérito, sem análise do pedido de liminar (decisão provisória).

Ainda não há data para o julgamento.

        5. Governo Lula estuda tema

Segundo apurou a TV Globo, ministros têm analisado as implicações do dispositivo.

O assunto, inclusive, foi pautado em uma reunião entre Lula e ministérios para tratar da crise na Terra Indígena Yanomami, realizada há duas semanas no Palácio do Planalto.

No encontro, ministros disseram entender que essa presunção de legalidade e boa-fé atrapalha o combate e a fiscalização do garimpo ilegal em áreas de preservação e terras indígenas.

 

       "Cobiça pelo ouro está acabando com a vida coletiva", diz presidente da Funai. Por Rubens Valente, Evilene Paixão

 

A presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana, que participou da comitiva que visitou a Terra Indígena Yanomami nesta semana, disse que a prioridade agora “é salvar vidas” e que está sendo dada uma oportunidade para os garimpeiros saírem livremente da área. O governo criou corredores aéreos para permitir a saída “espontânea” dos garimpeiros antes que as forças de segurança intensifiquem as incursões no terreno, com destruição de equipamentos e prisões. Em entrevista exclusiva à Agência Pública na sede da Funai em Boa Vista (RR) nesta quarta-feira (8), a agora ex-deputada federal Joênia, a primeira indígena nomeada presidente do órgão de assuntos indígenas desde 1910, quando a Funai ainda se chamava SPI (Serviço de Proteção ao Índio), disse que o garimpo ilegal não é resposta à crise econômica no país.

LEIA A ENTREVISTA:

        A primeira dúvida é sobre a desintrusão dos garimpeiros. Está sendo discutido o plano, o Ministério da Defesa fala em plano. A Funai vai participar dessas incursões que ocorrerão? Afinal é uma terra indígena.

Na verdade, o plano ainda está em andamento, o plano está sendo construído, interministerial. O que está acontecendo hoje [quarta-feira] é uma operação de emergência à saúde. Foi anunciada pelo presidente [Lula], a prioridade agora é salvar vidas. Das crianças, dos adultos que estão morrendo de fome. Então o único plano que está em andamento, e que a Funai está participando também, é a operação emergencial à saúde. Quem está chefiando é o Ministério da Saúde. Lógico, por conta dos reflexos que teve, da movimentação na área, houve essa questão da proibição de pouso, aliás, de sobrevoos, que foi anunciada pelo presidente. Aí o reflexo disso foi justamente a corrida [dos garimpeiros] pra sair da área, né? É o tempo que o presidente, os ministros, falaram que ‘vocês, antes de começar realmente o plano de desintrusão, têm a oportunidade de sair ali livremente’. Então foi dada essa oportunidade, foi pública. As pessoas estão querendo sair. Agora, lógico, como nas outras vezes, o governo está se preparando. Já houve planos discutidos na Justiça, em outras ações judiciais. Cabe à força de segurança agir estrategicamente.

        E nesse processo, se houver uma incursão, é justo que a Funai participe porque ela também faz esse papel de intermediação [com os indígenas]?

A Funai tem que participar, como qualquer outra vez que participou. Mas volto a dizer, o plano ainda não está sendo concluído. Estão discutindo. Todo dia tem reuniões. Mas as coisas vão acontecendo em parte.

        Se a sra. tivesse que mandar uma mensagem aos garimpeiros que estão lá ilegalmente, criminosamente, o que diria?

Olha, garimpo em terras indígenas é crime. Como qualquer crime, ele tem que ser sanado. O dever do Estado brasileiro é propiciar a segurança dos povos indígenas e combater o crime. Que eles [garimpeiros] possam sair voluntariamente. O garimpo ilegal não vai responder a essa crise econômica que todo o país está passando. A questão do garimpo em terras indígenas está levando à morte de crianças inocentes. Essa cobiça pelo ouro pode salvar economicamente algum momento de uma vida de um garimpeiro, mas está acabando com a vida coletiva de um grupo. Tem quem acha que está salvando seu bolso, mas está sendo cumplice de um genocídio também. Que possa atender esse apelo das famílias Yanomami para deixar seu domicílio. Eu digo que terra indígena é domicílio indígena. Como ninguém queria ser perturbado na sua casa e colocado em vulnerabilidade sua família. Da mesma forma, os Yanomami, que são brasileiros, têm direito, o direito está respaldado pela nossa Constituição, e o que eles estão pedindo para desintrusar da sua casa é mais do que justo, é mais do que um dever do Estado. Então não se trata aí de um conflito de interesse, se trata de garantir um direito que já é garantido em lei. Garimpo não está garantido em lei nem vai garantir porque a nossa Constituição não permite regulamentação de garimpos em terras indígenas. Então alguém que vai estar fomentando um garimpo na prática do garimpo porque acha que vai um dia regulamentar, não tem isso na nossa Constituição. É crime, vai continuar sendo crime, e essa prática aí está custando a vida de crianças.

        Sabemos que a base parlamentar de Roraima é pro-garimpo, governador [Antonio Denarium], deputados, inclusive a comissão parlamentar federal dos novos deputados pediu para acompanhar. Há toda essa ação. E o governador agora também está sugerindo um auxílio [financeiro] para esses garimpeiros. Como a Funai vê essas opiniões e sugestões da bancada daqui de Roraima?

A preocupação da Funai é a proteção da vida indígena. Agora, as questões sociais, de assegurar que o garimpeiro tenha algum benefício social para sanar sua crise econômica, que não consegue emprego, aí tem que ver com outros órgãos. Neste momento, a obrigação de Funai é ter a proteção territorial, é garantir que os povos indígenas tenham sua casa, seu domicílio, suas terras livres de qualquer invasão, é lutar por uma fiscalização, até porque é dever da Funai fiscalizar as terras indígenas, demarcar, proteger, propiciar a vida dos povos indígenas. Essa é a preocupação da Funai. A questão dos benefícios sociais, a questão de o que fazer com os garimpeiros já é parte de outros departamentos do Estado brasileiro.

        De que forma a Funai vai se estruturar, tanto em termos de pessoal e de estrutura das bases de fiscalização? Há dinheiro suficiente para isso?

Infelizmente o nosso orçamento anual é deficitário, digamos, ele é insuficiente. Todo mundo sabe, vivo falando, que nesses últimos mais de quatro anos que Funai não tem recebido nenhum recurso condizente com a obrigação de Funai. Foi aprovado [orçamento de] quase R$600 milhões, mas desses, quase R$400 milhões são para manter a Funai existindo. E o que resta? Mais de R$100 milhões para cumprir contratos já firmados. O que restaria para cumprir a obrigação de demarcar, proteger, fiscalizar, organizar, desenvolvimento sustentável, direitos sociais são um pouco mais do que R$90 milhões, digamos assim, e que são insuficientes pra atender 14% do Estado brasileiro. Ou seja, muitas terras indígenas, mais de um milhão de vidas de populações indígenas. Então ela não é suficiente. Então nós temos que buscar um complemento em outros ministérios, digamos assim. Por isso que nós temos que contar com o governo Lula, já que ele falou em seu discurso de campanha e de posse também, e vive repetindo, que vai colocar os povos indígenas como prioridade. E ele fez isso muito bem, chamando para entregar faixa [presidencial], criando Ministérios dos Povos Indígenas, colocando indígena na Funai. Todas as sinalizações de apoio aos povos indígenas estão sendo dadas. E eu espero que seja dada também na questão orçamentária. Porque nós não temos como responder tamanha obrigação com recurso orçamentário [atual]. Foi muito boa a PEC que foi aprovada que deixou de fora do teto as doações socioambientais, o que vai propiciar à Funai buscar parcerias porque as terras indígenas são estratégicas para conservação da biodiversidade, para combater a crise climática. Então, acho que tem toda a justificativa de a gente buscar parcerias também.

        E esse foco de preocupação sobre os indígenas isolados? Qual é o plano, qual a estratégia sobre esse tema.

A Funai tem que estruturar suas bases da Funai principalmente à frente dos indígenas isolados e de recente contato, que hoje também está precária. Faltam servidores, falta uma valorização do quadro, tem que fazer concurso público, tem que dar uma estrutura de funcionamento às bases, recuperar algumas bases que foram fechadas no governo anti-indígena de Bolsonaro. Então assim, tem muita coisa básica que a Funai tem que fazer, já de imediato. E outra é buscar orçamento para que possa fortalecer a Funai e as frentes que tratam de índios isolados principalmente.

 

       Desnutrição atinge cerca de 50% de crianças Yanomami de até 5 anos monitoradas pelo SUS

 

Ao menos desde 2015, cerca de metade das crianças Yanomami de até 5 anos apresentam peso baixo ou muito baixo para a idade. O pico de crianças fora do peso adequado foi em 2021, quando 56,5% de crianças yanomami estavam com algum nível de déficit de peso.

Os dados são do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena do Ministério da Saúde fornecidos via Lei de Acesso à Informação.

Os números não representam o total das crianças Yanomami, mas aquelas que foram atendidas pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Sistema Único de Saúde (SasiSUS), acompanhadas pela Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN).

Essas crianças são cadastradas para que seja realizado monitoramento e avaliação das ações de saúde a serem realizadas pelas equipes multidisciplinares de saúde indígena.

Desde janeiro, a Terra Indígena Yanomami, a maior reserva indígena do Brasil, enfrenta grave crise sanitária, com dezenas de casos de malária e desnutrição grave.

O governo federal decretou em 20 de janeiro emergência de saúde pública para viabilizar assistência aos indígenas, e também tem atuado junto às forças policiais para retirar milhares de garimpeiros que exploram ilegalmente a terra indígena.

        Situação ao longo dos anos

Em 2015, de 3516 crianças acompanhadas pelo Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi), 1059 estavam com peso baixo e 666 com peso muito baixo para a idade. Isso representou, naquele ano, 49,1% do total das crianças acompanhadas fora do peso considerado ideal.

Em 2016, eram 50,9% crianças nessa condição. Em 2017, eram 47,4%. E 49,7% em 2018.

Os períodos abarcam as gestões dos ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer.

        2021 foi o pior ano

Em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, houve o maior aumento proporcional na taxa de crianças fora do peso ideal, com aumento de 5 pontos percentuais, para 54,5% das crianças, mesmo índice de 2020.

O pior cenário se verificou em 2021, quando 56,5% das crianças estavam com déficit de peso: dos 4245 Yanomami de até 5 anos monitorados, 1269 estavam com peso baixo e 1130 com peso muito baixo. O período coincide com a pandemia da Covid-19.

No ano passado, a situação apresentou melhora, no entanto. mais da metade das crianças monitoradas seguia fora do peso ideal: 52,2%.

 

Fonte: g1/Agencia Pública

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