domingo, 26 de março de 2023

EDUCAÇÃO: Reforma ou “deforma” do ensino médio?

A atual dita “reforma” do Ensino Médio, expressa na Lei 13.415 de 16.2.2017, deferiu alterações radicais na proposta da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em relação etapa da Educação Básica. Dentre muitos artigos científicos e investigativos produzidos nesses últimos tempos, a tônica adotada em sua maioria é: a reforma causou uma grande “deforma” (ou deformação, se preferir) na qualidade do ensino ofertada aos alunos de todo o Brasil. A proposta, em tese, visa ampliar a gama de possibilidades futuras aos jovens, ofertando-lhes a autonomia na escolha de disciplinas – consideradas optativas – visando sua trajetória após o Ensino Médio. Na prática a proposta representou a marginalização de diversas disciplinas, consideradas por muitos como de “segundo escalão”, dentre as quais a Filosofia e a Sociologia se sobrepõem.

A responsabilidade do Ensino Médio no país é de cada estado da federação, todavia a sua estruturação e a organização curricular partem das políticas estabelecidas no âmbito nacional, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases, dos Planos Nacionais de Educação, das Diretrizes Curriculares Nacionais, através de documentos elaborados por aqueles que exercem cargos em agências governamentais. Todavia, quais são as justificativas para uma mudança brusca na matriz curricular em todo país? Segundo a Lei 13.415 a baixa qualidade do Ensino Médio ofertada no país, acrescentado à necessidade de torná-lo mais atrativo aos alunos, devido aos altos índices de abandono e reprovação escolar, reforça a importância da reforma curricular, tendo por finalidade tornar o currículo flexível, atrativo e dinâmico, atendendo aos interesses dos alunos do Ensino Médio.

Notamos um grande equívoco logo de cara na justificativa que a Lei trouxe: a errônea atribuição do abandono e da reprovação dos alunos basicamente à organização curricular, não considerando os demais aspectos envolvidos. Quais seriam? A péssima infraestrutura da maioria das escolas no país (inexistentes ou péssimos laboratórios, falta de bibliotecas, poucos ou inexistentes espaços para Educação Física e atividades culturais), sem levar em consideração a carreira dos professores, com péssimos salários, e problemas na vinculação a uma única escola, tendo que “se virar” para subsistirem e dar conta de seus boletos. Além disso, quem formulou a lei ignora basicamente o afastamento de muitos jovens da escola, não somente do Ensino Médio, devido à necessidade em auxiliar para a renda familiar, realidade dos jovens de periferia e dos lugares descentralizados do país. Segundo o artigo de Celso João Ferretti intitulado “A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de qualidade de educação” (2018), um estudo para a Unicef de 2014 evidenciou que os adolescentes pesquisados apontaram como causas do abandono escolar, além das questões curriculares, a violência familiar, a gravidez na adolescência, a ausência de diálogo entre docentes, discentes e gestores e a violência na escola. Ou seja, os desafios externados pelos alunos entrevistados não corroboram com a narrativa da mudança estrutural do currículo regular de disciplinas, sob a justificativa de melhora no conteúdo e preparo para o mundo do trabalho. Esse último, inclusive, com inúmeras justificativas práticas que em tese colaborariam na imersão da juventude no mercado de trabalho, explicita não apenas as contradições e relação antagônica de classes na sociedade, mas busca tornar o jovem cada vez mais técnico e pouco capaz de desenvolver livremente suas próprias capacidades.

Dito isso, disciplinas da área das ciências humanas – Artes, Educação Física, Filosofia, História, Sociologia etc. – são vistas como “perda de tempo”, “ociosas” e “infrutíferas”, que automaticamente atingem a classe docente reduzindo sua atuação profissional. Podemos, inclusive, destacar três conseqüências dessa desvalorização das áreas para o profissional: 1) a exclusão da obrigatoriedade das disciplinas, que na prática restringe o mercado de trabalho para professores que atuam nessas disciplinas; 2) a diminuição das ofertas de trabalho das instituições de ensino para estes profissionais, causando um grave problema de desvalorização de carreira; 3) o olhar sobre a dimensão do trabalho docente sob um aspecto negativo e não atraente. Isso aflige todo o itinerário formativo e profissional do docente, seja ele no passado (aquele que se formou e atua regularmente), no presente (aquele que se formou há pouco tempo/está em processo de formação) e no futuro (quem deseja tornar-se um professor). Ou seja, menos professores e mais técnicos!

A disputa pela hegemonia na educação revela a impossibilidade em considerar os problemas da formação humana capazes de serem resolvidos apenas por mudanças educativas, restritas ao currículo, metodologias, formação, pois o cenário educacional apresenta limites para além das salas de aula. É necessário, segundo Ferretti (2018), “entendê-la, também, como campo de contradições e, portanto, como campo de possibilidades de mudança, pelo menos no âmbito cultural (em sentido amplo)”.

Da mesma forma que o filósofo grego Sócrates foi assassinado pelo Estado, pela sociedade e pelos seus pares, acusado de “desviar” os jovens, hoje as ciências humanas sofrem pelo estigma da desvalorização de seus profissionais e da sua marginalização, devido aos discursos que pejorativamente acusa de exclusivamente “marxista”. A falta de conhecimento histórico e filosófico é uma triste realidade que coaduna com os planos dos grupos que almejam a transformação dos fatos históricos ou seu total esquecimento. Todavia o que me parece tão perigo quanto é o plano abjeto para torná-las repulsivas aos jovens, sem aplicação na vida ou sem utilidade. Esse discurso é constantemente propagado por setores que amam construir teorias de conspiração, repare.

Certamente que existem inúmeras ameaças à educação e o seu acesso pela juventude, mas jamais a Filosofia, a História ou a Sociologia seriam as grandes protagonistas. As grandes seriam o desemprego, a fome, o preconceito, a violência urbana, a falta de saneamento básico, a pouca valorização dos profissionais da educação, a necessidade dos jovens em abandonar as escolas para contribuírem financeiramente dentro de suas casas, o pouco (ou quase nenhum) investimento estrutural, por parte dos governantes, em escolas e creches pelo país, dentre outras muitas coisas. No final das contas todos são afetados pela falta de ação política na educação: profissionais da educação e seus familiares, alunos e seus familiares, a sociedade cada vez menos crítica às realidades impostas por ideologias repressivas e condenatórias, além do futuro totalmente incerto e incapaz, nas mãos de quem realmente planeja apagar com a história.

Reformar sem pensar na estrutura, no alicerce, na base da construção é maquiar sem propósito algum. Pensar nas diversas categorias e setores da sociedade que influenciam na vivência e atuação dos discentes na escola, é trabalhoso, mas profícuo aos olhos de quem tem a educação como prioridade. Porém vai tocar na ferida de muita gente. E quem gosta de ter sua mazela exposta?

 

       Novo ensino médio é alvo de críticas de alunos e especialistas em educação

 

O Ministério da Educação está discutindo com a sociedade o chamado "novo ensino médio", que começou a ser implementado no ano passado, em todo o Brasil. Mas sem investimentos, o novo sistema, que dá ao estudante o direto de escolher quais disciplinar cursar, é criticado por alunos e pesquisadores do assunto.

Bruna Felix, presidente do grêmio estudantil de uma escola da rede estadual de São Paulo, e Camila Cavalcante, líder de turma, afirmam que têm a sensação de que a escola não está nem preparando para o mercado de trabalho nem para a universidade. Para elas, faltam espaços para as aulas práticas e muitos professores não estão qualificados.

“A gente tem aula de artes na minha turma e essa aula tem um foco muito fora do que a minha professora foi formada”, exemplifica Bruna.

Pela lei, aprovada em 2017, as escolas devem oferecer diferentes itinerários formativos para os estudantes, dentro de quatro grandes áreas: ciências humanas e sociais, linguagens, ciências da natureza e matemática. A ideia é atualizar e aproximar o conteúdo escolar da realidade dos estudantes de hoje, mas a prática vem mostrando que esse modelo impõe muitos desafios às redes públicas de ensino.

A flexibilização aumentou a carga horária de 800 horas por ano para 1.000. Tem mais aulas de matérias específicas e práticas e menos de formação básica, que inclui língua portuguesa e matemática.

“Retiraram matérias básicas da nossa base curricular. Eu acho que nós não deveríamos priorizar os itinerários, e sim essas matérias, porque essas matérias vão estar no vestibular”, defende Camila.

O governo federal reconhece que o novo ensino médio precisa de correções. Abriu, na semana passada, uma consulta pública por 90 dias para avaliar e reestruturar o modelo.

Pesquisadores que estudam educação ouvidos pelo Jornal Hoje concordam que, da forma que está, não dá para continuar. Para Fernando Cássio, professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, a lei deveria ser revogada.

“Nós estamos vendo falta de professor e essa falta de professores, claro, atinge mais fortemente àquelas escolas mais vulneráveis. A reforma do ensino médio prejudica mais os estudantes mais pobres, aqueles que mais precisam de uma escola pública”, destaca ele.

A diretora de articulação do Movimento pela Base, Alice Ribeiro, acredita que o novo ensino médio pode dar certo, se houver o investimento adequado.

“É importante que se acompanhe isso de perto por muito tempo, com dados e evidências muito concretos. Isso é uma política muito estruturante, que leva tempo para funcionar e, para isso, ele precisa de apoio técnico e financeiro. E ele precisa das revisões que forem necessárias e de todo o monitoramento que é necessário para que funcione para os estudantes”, diz.

 

       Reforma do Ensino Médio aumenta exclusão nas escolas

 

Entre os itens da lista de retrocessos que compõem o chamado Novo Ensino Médio, sancionado pelo presidente golpista Michel Temer (MDB), em 2017, há um ponto que poderia representar um avanço. Com a mudança na lei, desde 2022, todas as escolas do Brasil tiveram que se adaptar para flexibilizar a grade de horário como forma de oferecer itinerários formativos, uma série de disciplinas, projetos e oficinas voltadas a anteder as necessidades e perspectivas dos estudantes.

Na teoria, a ideia poderia ser defendida por organizações que lutam em defesa de um modelo de ensino mais atrativo e inclusivo. Na prática, o modelo implementado durante a pandemia sem o devido diálogo com a sociedade se mostrou um fracasso, ao diminuir a carga de disciplinas básicas, impedir o acesso universal de alunos e alunas e se apresentar como mais uma porta de acesso às verbas públicas para a iniciativa privada.

A partir de 2018, o ex-presidente derrotado no último pleito, Jair Bolsonaro (PL), aprovou documentos que referendaram e deram sustentação às mudanças, como o novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referência para o trabalho das escolas e para a estruturação da Educação Geral Básica, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

Desde a regulamentação, a reforma recebe críticas de inúmeras entidades e movimentos que defendem o direito à educação. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), aponta, dentre outros aspectos discutíveis, que os itinerários formativos trazem problemas que vão desde a ausência de opções de disciplinas para todas as escolas até alunos que ficaram fora dos espaços escolares a partir da implementação do turno de período integral.

•        Ilhas de exclusão

Por conta dessa opção, as unidades que funcionavam em dois turnos passaram a adotar apenas um e restringiram o acesso de estudantes que podem ter dificuldade em estudar, seja por conta do deslocamento, seja porque precisam conciliar os estudos com alguma atividade profissional.

A diretora da secretaria para Assuntos Educacionais do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Pernambuco (Sintepe) e professora da rede estadual, Marília Cibelli, aponta como os itinerários, apresentados no modelo atual, fizeram do conhecimento algo para a poucos e ferem, inclusive, a proposta de homogeneizar a estrutura educacional proposta na Base Nacional Comum Curricular.

“O que vemos são ilhas de ofertas de determinados itinerário em determinados lugares, principalmente em bairros mais ricos. Por exemplo, em Recife temos algumas escolas na periferia que oferecem itinerários mais voltados para a área de tecnologia, mas, em geral, esse conteúdo é restrito a colégios mais no centro e próximos a uma área que chamamos de Porto Digital.”

Além da falta de estrutura das unidades de ensino e mesmo de professores e professoras capacitados para ministrar as aulas, que gera discrepâncias entres as regiões, Marília também cita a desconexão entre o que é passado nos itinerários com o que é ministrado durante as aulas regulares.

“Parece que até os formadores não sabem o que fazer, pois não há uma conexão do que é trabalhado na formação com a prática na sala de aula. Não há um cuidado por parte do Estado em se preocupar com a didática, o modelo, a forma como se trabalhar esse currículo. Não há planejamento”, critica.

•        Escolhas limitadas

Em junho de 2022, a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) divulgou uma nota técnica em que aponta os retrocessos presentes no formato aplicado de itinerários formativos.

O levantamento analisou a aplicação da medida e verificou que 1.327 escolas paulistas de Ensino Médio da rede estadual (35,9%) oferecem apenas dois itinerários formativos entre dez possíveis para o 2º ano, o mínimo exigido pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Mas como o aluno só pode escolher um, a formação nas matérias que não estão contempladas fica comprometida.

Segundo o estudo, entre os 645 municípios do estado, 334 possuem somente uma escola pública de Ensino Médio e os estudantes e as estudantes não têm opção além de aceitar o que é ofertado. Nas escolas maiores, o cenário não é muito melhor, já que as matrículas são realizadas de acordo com a proximidade com o endereço de residência e a variedade nas opões depende das condições estruturais das escolas.

Outro fator importante, destaca a nota, é a ausência de professores. Após dois meses do início do ano letivo, 22,1% das aulas dos itinerários formativos do Ensino Médio do 1º semestre de 2022 ainda não haviam sido atribuídas.

O levantamento da Repu indica ainda que em 90,30% das turmas do 1º e 2º anos da rede estadual a expansão era feita à distância com a mesma plataforma utilizada para o ensino remoto durante a pandemia. Para estudantes do período noturno e das escolas de perfil socioeconômico mais baixo, a expansão de carga horária presencial é quase nula, pontua a pesquisa.

Na avaliação da secretária do Sintepe, Marília Cibelli, muitos dos problemas seriam resolvidos a partir do diálogo com a sociedade civil. “Em muitos Estados e em Pernambuco essa participação se deu de forma muito tímida, por meio webinários [seminários realizados pela internet] promovidos pelas Secretaria de Educação. Tivemos seminário de construção onde se apresentou o documento para opinarmos, mas, na prática, não tínhamos a noção de como seria. A ideia vendida foi de que tudo iria se ajeitar”, lembra.

•        Telecurso repaginado

O secretário de Políticas Públicas para a Juventude da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), Matheus das Neves, ressalta que os itinerários formativos deveriam servir para o estudante se aprofundar nas áreas relacionadas às demandas do vestibular que deseja prestar, da carreira que deseja seguir ou daquilo que mais se afeiçoa. Mas, de fato, serve a interesses privados, que lucram com a venda de materiais, inclusive no formato digital.

“O que a gente avalia de mais grave é a defasagem em dois pilares: o projeto de vida e o ensino técnico. O ensino técnico funciona como se fosse um telecurso no século 2021, porque a maioria das aulas são remotas e ofertadas pelo Sistema ‘S’ ou Organizações Sociais (OS), que são empresas. Já o eixo que trata do projeto de vida é cumprido mas não sob o viés de educação financeira conectada com a realidade de classe desses estudantes e sim como um debate de coach que ensina a tramar sua ‘jornada de herói’. A gente sabe que isso é fruto de uma agenda neoliberal que se aprofunda desde 2107”, afirma.

A luta pela revogação da Reforma do Ensino Médio foi uma das diretrizes definidas pela UBES em seminário realizado nesta semana, no Rio de Janeiro. Em resolução, a entidade aponta a construção de um novo modelo a partir do diálogo com a comunidade escolar, inclusive os estudantes.

 

Fonte: Por Railson da Silva Barboza, no Le Monde/g1/CNTE

 

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