'Cota' para negros
em cargos de confiança no governo federal pode 'mudar a cara' das políticas
públicas, dizem especialistas
“É
a primeira vez na História que vamos ter uma Esplanada dos Ministérios
minimamente negra. É reparação histórica”, disse, em entrevista ao g1, a
ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, sobre o decreto assinado nesta
semana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que definiu como 30% o
percentual mínimo de cargos e funções de confiança no Executivo a serem
ocupados por pessoas negras.
A
edição do decreto faz parte de um conjunto de medidas apresentado pelo
Ministério da Igualdade Racial em uma cerimônia no Palácio do Planalto na
última terça-feira (21) – Dia Internacional da Luta pela Eliminação da
Discriminação Racial, que incluem:
• um programa para a promoção de direitos
da população quilombola;
• a titulação de terras para três
comunidades quilombolas;
• a criação de grupos de trabalho com a
participação de vários ministérios sobre ações afirmativas, juventude negra,
enfrentamento ao racismo religioso e preservação da memória com a valorização
do Cais do Valongo – localizado no Rio de Janeiro, o cais é Patrimônio
Histórico da Humanidade pela Unesco.
Muitas
das medidas ainda estão no campo da sinalização de prioridades – as iniciativas
concretas serão construídas ao longo dos próximos meses.
Mas
o decreto sobre o preenchimento de altos cargos do Executivo federal por
pessoas negras tem alto potencial de impacto político, simbólico e social já no
curto e médio prazo, segundo especialistas ouvidos pelo g1.
• O que são os cargos comissionados
Os
cargos e funções de confiança são os mais altos da administração pública.
Responsáveis por atividades de assessoramento e liderança, costumam receber os
maiores salários e, historicamente, são ocupados majoritariamente por pessoas
brancas – homens, principalmente.
Um
estudo do Instituto de Economia Aplicada (Ipea) mostrou que em, 2020, homens
brancos ocupavam 65% dos cargos mais altos dos ministérios. As mulheres brancas
representavam 15%. Já os homens negros, 13%. O percentual de mulheres negras
era o mais baixo de todos: apenas 1,3%.
São
números distantes da realidade da população brasileira. Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% das pessoas se autodeclaram
negras (pretas e pardas). Já 43% se autodeclaram brancos.
A
nova regra pretende mudar essa assimetria. “Não é cota, é preenchimento”,
afirma Anielle Franco.
“Nós
temos pessoas negras qualificadas para preencher esses cargos”, afirma a
ministra. Segundo Franco, o Ministério da Igualdade Racial possui um banco com
6 mil currículos que já foi compartilhado, a pedido dos titulares das pastas,
com ministérios como Planejamento, Relações Institucionais, Justiça e com a
Embratur (Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo).
No
início de janeiro, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, afirmou ser
“difícil” levar mulheres pretas para trabalhar em Brasília. Depois da
declaração, ela disse ter recebido “um monte de currículo” – inclusive das mãos
de Anielle Franco.
• Quem nomeia e quem pode ocupar cargos
comissionados
Ministros
e presidentes de órgãos podem indicar e exonerar pessoas livremente para os
cargos em comissão e para as funções de confiança. A diferença é que os cargos
podem ser ocupados tanto por servidores quanto por profissionais sem vínculos
permanentes com o serviço público. Já as funções de confiança são reservadas
para servidores públicos de carreira, ou seja, aqueles que entraram na
administração por meio de concurso público.
• O que prevê o decreto
O
decreto 11.443, assinado pelo presidente Lula na última terça-feira (31),
determina que pelo menos 30% dos chamados cargos e funções comissionadas nos
órgãos e entidades da administração pública federal sejam ocupados por pessoas
negras até 31 de dezembro de 2025.
Esses
cargos são subdivididos entre diferentes níveis de hierarquia. A nova política
de preenchimento distingue os níveis mais baixos dos mais altos, estabelecendo
o percentual de 30% para ambos – de forma a evitar que os cargos do topo
continuem ocupados apenas por pessoas brancas.
Metas
intermediárias serão estabelecidas pelos Ministérios da Igualdade Racial e da
Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. As duas pastas ainda definirão um
percentual mínimo de mulheres.
Segundo
a ministra da Igualdade Racial, o governo está levantando o número atualizado
de cargos e funções comissionados ocupados atualmente por pessoas negras. O
dado deve sair até junho. , e o dado consolidado deverá sair até junho. Ela
estima que o número deve ficar abaixo de 5%.
"Primeiro
a gente quer fazer esse recadastramento com um olhar específico para que as
pessoas respondam de maneira precisa sobre como elas se identificam em termos
de raça e gênero para, a partir desse diagnóstico, poder estabelecer metas que
olham para cada órgão e para cada nível", afirma Cristiana Mori, secretária-executiva
do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
Desde
2014, 20% dos cargos em concursos públicos são reservados para pessoas negras.
O estudo do Ipea mostra que a legislação já teve efeito. No ano 2000, 16,8% dos
servidores federais concursados no Poder Executivo eram negros. Em 2019, esse
número tinha saltado para 38,1%.
• Impactos
“É
uma medida transformadora, sobretudo porque no Brasil temos um Estado branco
que pensa e gere políticas públicas que atingem de modo desproporcional pessoas
negras: educação pública, Bolsa Família, saúde pública com o SUS, segurança
pública”, diz o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor de sociologia e
ciência política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Quase
80% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS), por
exemplo, se autodeclara negra (preta e parda).
Campos
explica que não necessariamente pessoas negras produzirão melhores políticas
para pessoas negras, mas podem agregar pontos de vista e conhecimentos que tem
o potencial de “mudar a cara” das políticas públicas brasileiras.
Segundo
Gabriela Lotta, professora e pesquisadora de Administração Pública e Governo da
Fundação Getulio Vargas (FGV), várias pesquisas já apontam que equipes mais
diversas promovem decisões melhores, tanto no setor público quanto no privado.
“Diferentes perspectivas aprimoram o processo decisório, gerando decisões mais
eficazes”, diz ela. “No caso do Estado isso é ainda mais crítico, porque são as
decisões tomadas por ele vão afetar a vida de todos nós".
O
pesquisador Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec),
da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, viveu isso na prática. Há 10
anos, ele era o único negro no centro de pesquisa – então coordenado por
mulheres brancas –, uma das primeiras instituições acadêmicas brasileiras a se
dedicar integralmente aos temas da violência e da segurança pública.
Na
última década, o centro não apenas aumentou de tamanho como promoveu uma
política de diversidade – racial e sexual – com metas claras. Hoje, as
principais iniciativas são lideradas por pessoas negras. “Esse processo
diversificou nossa atuação, passamos a dar atenção para outras formas de
produzir conhecimento e de levar esse conhecimento para a população”, diz
Nunes.
Ele
dá como exemplo os trabalhos específicos sobre violência contra mulher,
tecnologias no policiamento e política de drogas. “A nossa própria reflexão
sobre políticas de drogas passou a ser mais plural e a colocar no centro uma
leitura que não parte do ponto de vista das classes médias brancas da Zona Sul,
para quem uma eventual legalização das drogas têm outro sentido do que tem para
moradores da favela”.
Segundo
Cida Bento, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das
fundadoras do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(Ceert), a nova política pode colaborar para romper o que ela define como
“pacto da branquitude” -- um pacto não verbalizado e muito menos formalizado,
mas que mantém o mesmo perfil de pessoas em postos de liderança, na medida em
que “pessoas brancas indicam outras pessoas brancas”.
“Brancos
conhecem brancos. Por exemplo, quando um ministro branco é perguntado se ele
tem uma indicação de profissional experiente para algum posto na equipe, ele
provavelmente vai conhecer e indicar mais pessoas brancas, porque os incluídos
são os brancos”, explica Bento.
Essa
assimetria de representatividade, com a concentração de postos de liderança na
mão de pessoas brancas, produz o que Luiz Augusto Campos, da UERJ, define como
uma “espécie de apartheid vertical na relação do Estado com a sociedade” no
Brasil.
Desse
ponto de vista, o impacto simbólico do decreto não pode ser ignorado. “Se o
Estado representa o povo, é mais do que justo e natural de que o perfil das
pessoas que formam o Estado represente o povo. No sentido de a população olhar
para o Estado e se ver representada ali”, diz Lotta, da FGV.
“Isso
tem impacto na percepção de legitimidade do Estado, na noção de cidadania e na
própria valorização da democracia. A lógica é: se a pessoa olha para o Estado e
pensa: ‘esse Estado não tem nada a ver comigo’, ela passa a questionar a
própria democracia”.
• Desafios
Um
dos principais pontos de atenção em relação à nova política é o fato de ela ter
instituída por decreto – instrumento do Poder Executivo que pode ser revogado
no futuro por outro presidente.
“A
única solução para que não seja algo efêmero é ter um olhar sistêmico que torne
a política institucional”, diz a historiadora Ana Paula Brandão, diretora
programática na ActionAid e do Projeto SETA (Sistema de Educação por uma
Transformação Antirracista). “Institucionalizar significa prever recursos,
prever orçamento, prever uma equipe”.
Cida
Bento concorda. “Não é só falar para os outros ministérios que vai acontecer. É
preciso um programa de trabalho, que tenha conceituação, metodologia,
diagnóstico claro, que faça um acompanhamento para verificar onde está tendo
problemas ou dificuldades”.
O
decreto presidencial que determinou a medida prevê que os ministérios da
Igualdade Racial e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos estabeleçam a
forma de controle e monitoramento da ocupação dos cargos. A pasta de gestão
também deverá divulgar o percentual alcançado. Segundo a secretaria-executiva
do ministério Cristiana Mori, já existem sistemas de monitoramento para os
cargos dos mais altos níveis.
"Temos
uma construção anterior das cotas em universidades e nos concursos que nos
ajuda a estabelecer o controle e monitoramento. Possivelmente vamos ter que criar
novos mecanismos", diz Mori.
“Estamos
falando sobre isso porque as políticas públicas construídas há décadas pelo
movimento negro se consolidaram nos últimos anos”, diz Brandão.
“Temos
um marco legal muito sólido. O que não temos, muitas vezes, é vontade política.
Temos, ainda, a resistência de uma pequena parcela da população que não quer
abrir mão dos seus privilégios e trabalhar as coisas com equidade”, afirma a
historiadora.
Para
o sociólogo Luiz Augusto Campos, é comum analisar a desigualdade brasileira
apenas em termos de recursos econômicos quando, na realidade, há também uma
desigualdade de poder. O que a política de preenchimento dos cargos de
confiança faz como ação afirmativa é distribuir poder, não apenas recursos.
Veja ponto a ponto do decreto para que
negros ocupem pelo menos 30% dos cargos de confiança do governo
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou, nesta semana, um decreto que
determina que no mínimo 30% dos cargos e funções de confiança do governo federal
sejam ocupados por pessoas negras.
A
nova regra foi anunciada em uma cerimônia no Palácio do Planalto nesta
terça-feira (21) – Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação
Racial -- e faz parte de um pacote de medidas para o combate da desigualdade
racial, capitaneado pelo Ministério da Igualdade Racial.
<<<<
Veja abaixo perguntas e respostas sobre a nova política:
• O que é o decreto?
• Para quais postos vale a nova regra?
• Que pessoas podem ser contempladas?
• Quem vai definir a cor do candidato?
• Como vai ser feito o monitoramento?
<<<
O que é?
O
decreto 11.443 determina que pelo menos 30% dos chamados cargos e funções
comissionadas nos órgãos e entidades da administração pública federal sejam
ocupados por pessoas negras até 31 de dezembro de 2025.
Metas
intermediárias serão estabelecidas pelos Ministérios da Igualdade Racial e da
Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. As duas pastas ainda definirão um
percentual mínimo de mulheres.
• Para quais postos vale?
A
medida vale para cargos e funções comissionadas de órgãos e entidades da
administração pública federal, o que inclui, por exemplo, todos os ministérios
da Esplanada. Nas siglas oficiais, são os CCE (Cargos Comissionados Executivos)
e FCE (Funções Comissionadas Executivas).
Os
cargos e funções comissionadas são também definidos como posições "de
confiança" por serem responsáveis por atividades de direção, liderança e
assessoramento. A quantidade desses postos varia entre os diferentes órgãos do
Executivo.
Cargos
e funções comissionados também são subdivididos entre diferentes níveis de
hierarquia. "Os níveis de 1 a 12 correspondem a titular de titular de
núcleo, setor, seção, serviço, divisão e coordenação. Os níveis de 13 a 17 a
coordenação geral, diretoria, departamento, subsecretaria, secretaria, entidade
autárquica e fundações", explica Cristina Mori, secretária-executiva do
Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
A
nova política de preenchimento distingue os níveis mais baixos dos mais altos,
estabelecendo o percentual de 30% para ambos – de forma a evitar que os cargos
do topo, os de níveis 13 a 17, continuem ocupados apenas por pessoas brancas.
• Que pessoas podem ser contempladas?
Ministros
e presidentes de órgãos podem indicar e exonerar pessoas livremente para esses
postos.
A
diferença é que os cargos comissionados podem ser ocupados tanto por servidores
quanto por profissionais sem vínculos permanentes com o serviço público. Já as
funções comissionadas são reservadas para servidores públicos de carreira, ou
seja, aqueles que entraram na administração por meio de concurso público.
• Quem vai definir a cor do candidato?
O
decreto contempla pessoas que se autodeclaram como pretas ou pardas e que
possuem traços visíveis de aparência que as caracterizam como pessoas negras.
Em
caso de denúncias ou suspeitas de irregularidades na autodeclaração, a norma
estabelece que será "constituída comissão de heteroidentificação
[identificação por outras pessoas] para apuração dos fatos, respeitado o
direito à ampla defesa".
Esse
tipo de comissão normalmente é formada por um grupo de pessoas de diferentes
áreas ou formações que analisam os aspectos fenótipos do candidato --
características visíveis, como cor da pele, formatos do rosto e tipo de cabelo.
Nessa análise, a autodeclaração ou ascendência do candidato não é levada em
conta.
• Quando começa a valer?
O
decreto passou a valer a partir da assinatura do presidente, ou seja, já está
em vigor. Mas ele será implementado de forma gradual: os órgãos e entidades da
administração pública federal têm até 2025 para atingir o percentual de ao
menos 30% dos cargos e funções ocupados por pessoas negras.
Como
vai ser feito o monitoramento?
Os
Ministérios da Igualdade Racial e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos
estabelecerão uma forma de controle e de monitoramento da ocupação desses
postos. Caberá à pasta de gestão divulgar os percentuais.
Fonte:
g1
Nenhum comentário:
Postar um comentário