Como o Brasil vai
encarar o poder das Big Techs?
Existe
uma preocupante inversão no debate sobre o combate à desinformação e ao
discurso de ódio. De repente, o Marco Civil da Internet passou a ser
responsabilizado pela inoperância das plataformas diante dos ataques à ciência
e às informações de qualidade baseadas em fatos. Nos Estados Unidos ou na
Inglaterra não existia o Marco Civil e nem por isso deixamos de assistir uma
onda de desinformação que redundou no Brexit, na eleição de Trump e na invasão
do Capitólio.
O
Marco Civil nunca impediu a moderação de conteúdos pelas plataformas. Quem não
conteve as falsificações da realidade, as “fazendas de cliques”, a proliferação
de grupos fascistas e seu discurso de ódio foram os donos das plataformas. Isso
não ocorre simplesmente por que grande parte do Vale do Silício tem simpatias pelas
ideias de incompatibilidade entre a liberdade irrestrita de exploração
econômica e as democracias, tal como Peter Thiel, fundador do PayPall, ou de
Larry Elisson, co-fundador da Oracle, entusiastas da extrema direita e do
chamado movimento alt-right.
As
plataformas têm um modelo de remuneração extremamente exitoso que redundou em
valores de mercado superiores a 1 trilhão de dólares para as Big Techs que
possuem o seu controle acionário. Qual a dinâmica principal desse modelo de
negócios? Primeiro, a oferta gratuita de interfaces e serviços com o objetivo
de coletar massivamente dados das pessoas que as utilizam. Segundo, esses dados
são tratados pelos sistemas algorítmicos para a formação de perfis de
comportamento e microssegmentação da população que a utiliza. Terceiro, os
perfis são agrupados pelas plataformas para serem atingidos com propaganda
direcionada por quem tem dinheiro, empresas, departamento de marketing, grupos
políticos, entre outros.
Assim,
as plataformas monetizam cada segundo que uma pessoa navega em suas estruturas
que são arquitetadas para atrair e modular as atenções. Por isso, criaram a
lógica da viralização, do engajamento e da venda de likes e impulsionamentos.
Todo esforço das plataformas não visa a informação de qualidade, nem a proteção
da democracia. Seu objetivo é a espetacularização que permita manter as pessoas
olhando e compartilhando seus conteúdos. Por isso, o empobrecimento dos debates
que vemos na política mundial se deve muito a essa lógica viralizante que
depende de tornar tudo em algo surpreendente.
Quando
se ataca o Marco Civil, em geral, o que se pretende é afirmar que as
plataformas estavam impedidas de bloquear os conteúdos mentirosos e
desinformativos. Logo, a lei deve exigir que a desinformação seja contida pelas
plataformas. Desse modo, agora daremos às Big Techs o poder legal de dizer o
que é e o que não é desinformação. Tal como no escândalo da Cambrigde
Analityca, a solução proposta ao Facebook concentrou ainda mais poder na
direção da empresa e não reduziu em nada o processo de desinformação – como
demonstrou Frances Haugen, ex-gerente de produtos da rede social.
Na
segunda quinzena de março de 2023, quem entrasse no canal do Democracy Now no
Youtube se depararia com um aviso: “A comunidade do YouTube identificou o
seguinte conteúdo como impróprio ou ofensivo para alguns públicos”. O vídeo
considerado impróprio era uma reportagem sobre Julian Assange, líder do
Wikileaks que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos. O mesmo Youtube
bloqueou a visualização dos conteúdos do podcast Tecnopolítica em doze
episódios. Em nenhum desses casos existia desinformação ou discurso de ódio,
mas os gestores da plataforma acharam por bem efetivar a redução de
visualizações e o bloqueio de conteúdos. Curiosamente, isso não é realizado nos
canais da extrema direita, nem mesmo no canal do ex-deputado Mamãe Falei. Para
o Youtube esses canais não violam suas regras.
A
regulação necessária das plataformas não deveria aumentar o seu poder
arbitrário sobre os conteúdos. Precisamos de uma lei que reduza esse poder e as
coloque sob o controle das democracias. A regulação exige a necessária
informação sobre os dados por elas coletados, os cruzamentos realizados e os
objetivos dos sistemas algorítmicos que utilizam. Os termos de uso e políticas
de privacidade que expõem não são suficientes para que as democracias e as
sociedades tenham informações básicas em suas operações sobre o comportamento
social.
Plataformas
de relacionamento social não são sites, nem blogs. Elas se colocam como espaços
públicos não vinculados a nenhuma opção cultural, partidária, religiosa ou
mercantil. Fazem isso para atrair todos os públicos e poder atingi-los com
publicidade e marketing. Nessa condição, as plataformas devem estar submetidas
a fiscalização democrática.
Como
o gerenciamento imediato das plataformas é realizado por sistemas algorítmicos
de aprendizado de máquina, é imprescindível a avaliação de impacto do
tratamento de dados que realizam. No mínimo, as finalidades dos modelos que
criam devem ser expostas nitidamente, sem dubiedades e eufemismos, para quem
está sendo por eles modulados. Os termos de uso e as políticas de privacidade
das plataformas são demasiadamente genéricas e não permitem saber se estão
praticando uma coleta e tratamento excessivos, discriminatórios e inadequados
de dados. Tal como os europeus estão criando um Conselho de Inteligência
Artificial composto por especialistas em IA, representantes da sociedade civil,
do governo e do mercado, a regulação das plataformas, dada a sua complexidade
deveria avançar na formação de uma estrutura democrática e multissetorial de
aplicação de regras sobre essas empresas de modulação social.
Tecnologia e as transformações no campo
de batalha. Por Eduardo Barros Mariutti
O
que hoje chamamos de geopolítica começou a se desenhar em uma época em que, por
exemplo, não se diferenciava com clareza geografia de história, o que inclinava
as análises para uma temporalidade mais dilatada, centrada na longa duração
(Vidal de La Blache e, mais recentemente, Fernand Braudel são os exemplos mais
óbvios desta característica). No entanto, sempre tendo como referência esse
quadro temporal mais dilatado, os estudiosos da geopolítica também realizam
estudos de conjuntura, adentrando na temporalidade fugaz dos acontecimentos
(histoire événementielle), o tempo explosivo que “enche a consciência dos
contemporâneos, mas não dura muito, mal se vê a sua chama” (Braudel – História
e Ciências Sociais).
Algumas
transformações importantes ocorrem também em uma temporalidade peculiar, mais
acelerada que a lenta dissolução das estruturas, porém mais lentas que a cena
política. Formam uma espécie de quadro intermediário, que ajuda a ligar a longa
duração com a cena política. Utilizarei aqui The Eye of the War, um livro
brilhante publicado por Antoine Bousquet em 2018 para explorar o impacto da
sociotécnica nas transformações no campo de batalha desde o final do século
XIX.
Ainda
persiste no imaginário público a percepção de que as guerras são decididas em
batalhas capitais, onde um grande número de soldados se engaja em um combate
acirrado até que um dos lados saia derrotado pelo adversário. Como já foi
sugerido, esta imagem está cada vez mais distante do que efetivamente ocorre
nos conflitos militares contemporâneos. Isto por pelo menos dois motivos. Em
primeiro lugar, por conta do maior alcance e letalidade das armas, as tropas
ficam muito mais dispersas e ocultas, pois qualquer grande aglomeração de
soldados sem cobertura e à vista do inimigo se torna presa fácil da artilharia
e da aviação inimiga. O segundo aspecto é que a conduta da guerra se entrelaçou
tanto com o conjunto da vida social que, hoje, é cada vez mais difícil separar
a dimensão militar da civil do conflito.
O
surgimento dos rifles com balas cônicas em propelentes sem fumaça foi um
aspecto decisivo na reconfiguração do campo de batalha. Além da lentidão na
recarga, um mosquete fazia muita fumaça e tinha um alcance letal de cerca de 75
metros. Pressupunha, portanto, uma zona de contato muito estreita com o
adversário. A fumaça dos disparos não só revelava a posição do atirador como
recobria o campo de batalha, reduzindo a visibilidade, exigindo uma maior
proximidade entre os antagonistas. Os fuzileiros da primeira guerra mundial
podiam acertar alvos a 300 metros de distância, com uma cadência de tiro muito
superior. Se somarmos a isto o apoio de metralhadoras e da artilharia com um
alcance de até 20 quilômetros (fogo indireto), não fica difícil concluir que a
distância entre os combatentes aumentou significativamente, assim como a
necessidade de ocultamento e de cobertura contra o fogo inimigo. Desde então, o
campo de batalha não parou de se transformar, tornando-se cada vez mais vasto e
mais disperso, demandando armas com alcance e precisão cada vez maior.
O
que deve ser retido é que os novos armamentos favoreceram uma maior dispersão
dos combatentes e, ao mesmo tempo, intensificaram a disputa no campo da
percepção das forças em conflito. Frente a um fogo inimigo com alta letalidade
e precisão, sem cobertura, qualquer grande concentração dos soldados seria
dizimada com relativa facilidade. Além disto, pequenas unidades passaram a
contar com uma grande capacidade de fogo, tornando-se capazes de gerar uma
devastação que, com os armamentos antigos, exigiriam pelo menos um batalhão.
Isto esvaziou o campo de batalha e obrigou as tropas a reduzirem a sua
visibilidade, usando camuflagens e outras táticas de ocultamento. Ao contrário
dos uniformes espalhafatosos que eram a norma pelo menos até o final do século
XIX, a orientação dominante passou a ser tentar ficar invisível e, ao mesmo
tempo, desenvolver técnicas de sensoriamento remoto para identificar as
posições dos combatentes adversários e de seus apoios logísticos.
Dada
a capacidade de projetar dano devastador a longa distância, a capacidade de ver
sem ser visto pelo adversário se torna uma vantagem decisiva. A Guerra Fria
levou ao paroxismo este princípio, colocando no horizonte “uma guerra realmente
global, que se manifestaria quase simultaneamente em todo o planeta, resultando
em um único e frenético espasmo nuclear” (Bousquet). No entanto, à sombra de um
eventual engajamento apocalíptico entre os EUA e a URSS, os grandes embates
entre superpotências cederam lugar a conflitos mais descontínuos e
espacialmente fragmentados. Conflitos armados geográfica e temporalmente bem
definidos (i.é., com começo e fim claramente delimitados) são cada vez mais
raros. O que se verifica hoje é uma condição muito mais indeterminada, nem
guerra nem paz, marcada por surtos momentâneos de violência que se espalham
pelo planeta, baseados em um imbricamento crescente entre os sistemas
preditivos de vigilância e os dispositivos de projeção remota de dano.
Precisamente
por conta desta característica, Grégoire Chamayou (Teoria do Drone) afirma que
estamos testemunhando a substituição do campo de batalha “tradicional” – onde
quem ataca também pode ser atacado – pelo princípio da caça, contudo, isto se
processa em um cenário em que, a princípio, a presa pode estar em qualquer
parte do planeta, sem direito a nenhum santuário. Logo, se olharmos a questão
do ponto de vista de quem é caçado, a questão de como funcionam os sistemas de
vigilância é prioritária. Apenas mediante a compreensão de como opera o olho da
guerra é possível aos caçados permanecerem ocultos, longe da mira dos
caçadores. E a melhor forma de fazer isto é infiltrar-se na população, evitando
marcadores e comportamentos que podem deflagrar alertas de risco. O paradoxo é
que, quanto mais furtivo o “inimigo” se torna, mais se retroalimenta a lógica
securitária que tende a despedaçar as liberdades civis e, ao mesmo tempo, abrir
um gigantesco mercado colonizado pelas big techs.
Fonte:
Por Sérgio Amadeu da Silveira, em Outras Palavras/Jornal GGN
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