sábado, 11 de março de 2023


 A Argentina de tangos, crises e rebeldias

“Dinheiro e medo, nunca tivemos” foi uma das muitas citações populares que estamparam bandeiras argentinas e foram compartilhadas nas redes sociais durante a última Copa do Mundo. Ela ressoa nos argentinos ao menos de duas maneiras: a recorrente crise econômica e política do país e a capacidade do povo de enfrentar as adversidades.

A ideia de “conhecer o sofrimento” (verso de um conhecido tango) também foi associada ao desempenho da seleção argentina como uma característica particular da cultura argentina: “Nacimos para sufrir, vamos a sufrir siempre, pero vale la pena”, disse o meio-campista Rodrigo De Paul após a final. Essa referência também apareceu em jornais argentinos e de outros países para resumir a performance da seleção: El GráficoPágina 12ABC DeportesEl litoralSputnikInfobae, entre outros.

Embora essa percepção seja mais mito do que realidade, sua ampla utilização na cultura popular tem base empírica. Durante o último quarto do século XX, o país viveu várias crises econômicas e políticas. Em 1975, uma desvalorização maciça do peso combinada com hiperinflação foi seguida por um golpe militar em 1976, que governou por sete anos o país através do terror de Estado. Três tentativas militares de derrubar governos democráticos (1987, 1988, 1990); uma segunda onda de hiperinflação em 1989, que obrigou o presidente Alfonsín a antecipar as eleições nacionais; e a crise de 2001, quando o país deixou de pagar sua dívida externa e passou por um período de turbulência social que durou até 2003.

Em 20 de dezembro de 2022, quando as ruas da Argentina foram inundadas com pessoas comemorando, felizes e eufóricas, a conquista da Copa, era difícil lembrar que, 21 anos antes, milhares de manifestantes tomaram aquelas mesmas ruas devido às dificuldades econômicas e a falta de perspectivas.

A crise social, política e econômica de 2001 trouxe à tona as tensões e contradições do modelo de desenvolvimento neoliberal consolidado na década de 1990. Em outubro de 2001, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Censo, 38% da população vivia abaixo da linha da pobreza; a taxa de desemprego (crescente desde 1991) chegava a 18,3%; e a inadimplência da dívida externa era iminente. Quanto à percepção das instituições democráticas, os índices do Latinobarômetro mostraram que a confiança nos partidos políticos e no Congresso tinha o patamar mais baixo desde 1995 (4% e 10%, respectivamente).

Em 19 de dezembro de 2001, após surtos de saques em várias províncias, o presidente Fernando de la Rúa (líder duma coalizão de centro-esquerda e eleito em 1999) decretou estado de emergência em todo o país. A medida foi contestada pela população através de mobilizações espontâneas que se dirigiam aos centros do poder político em grandes cidades do país; mas o epicentro era Buenos Aires. Milhares de pessoas se reuniram na Plaza de Mayo, no Obelisco da Avenida 9 de Julio e ao redor do Congresso Nacional para exigir a renúncia do presidente e a renovação completa da classe política, gritando: ¡Que se vayan todos! Muitos permaneceram ali até o amanhecer, quando foram brutalmente reprimidos pela polícia. Os protestos se espalharam ao longo do dia seguinte com manifestantes ocupando praças e ruas e resistindo por várias horas aos ataques das forças de segurança – no que a pesquisadora Cecilia Dinerstein chamou de “batalha por Buenos Aires”. Na noite do dia 20, o presidente e todo o seu gabinete renunciaram. Durante as duas semanas seguintes, seguindo a regra constitucional de sucessão, o poder executivo foi delegado a quatro legisladores diferentes, com Eduardo Duhalde (um peronista de centro-direita) permanecendo no cargo como presidente interino. As manifestações continuam aumentando até junho de 2002, após dois jovens piqueteros serem mortos pela polícia durante um protesto.

25)   Qual foi o significado político dessa crise para o país e que mudanças ela trouxe?

Vários estudiosos e ativistas identificaram a natureza deslocadora do ciclo de protestos de 2001 com um “despertar político” – não no sentido de negar os processos políticos em curso na década anterior, mas por apontar os quatro principais desdobramentos da crise. Uma deles era que problemas sociais como desemprego, pobreza e a necessidade de mais intervenção do Estado (através programas de assistência social e melhores serviços sociais) tornaram-se questões públicas inegáveis na agenda política. Em um nível mais macro, abriu espaço para a discussão de modelos alternativos de desenvolvimento que valorizassem a produção sobre a especulação financeira e resgatassem o papel do Estado como planejador de variáveis e dos atores econômicos. A inclusão e a redistribuição tornaram-se novamente os eixos principais dos programas econômicos, e a irracionalidade das políticas de “austeridade” das organizações internacionais de crédito – que, histórica e globalmente, promoveram a servidão em vez do crescimento – tornou-se visível para o público em geral.

Um segundo resultado foi que o movimento piquetero se tornou um ator político permanente no sistema político do país e estabeleceu redes e organizações sociais que (com algumas variações) perduram até hoje. Relacionado a isso, um terceiro resultado foi que as experiências de ação coletiva durante a crise ressignificaram a política de forma mais ampla, incluindo formas alternativas de ativismo e organização social como importantes canais de participação política. A organização política baseada no território como estratégia de participação e sobrevivência se colou tão fortemente na sociedade que até setores de direita perceberam o potencial de aprender a falar com outros segmentos do eleitorado e mobilizar apoios. A expressão desse fenômeno tornou-se ainda mais evidente nos últimos anos.

Por último, uma presença massiva de mulheres nas diversas experiências de ação coletiva que poderiam explicar, posteriormente, a expansão e força do movimento feminista e de mulheres na Argentina. Na época da crise, as mulheres representavam de 60% a 70% da base social do movimento piquetero (Andújar: 2005) e espaços de participação como os Encuentros Nacionales de Mujeres (Encontros Nacionais de Mulheres) – que na década de 1990 tiveram uma média de público de 7 mil – manteve cifras acima de 10 mil desde 2001, chegando a 30 mil em 2005.

26)   Onde estamos agora em termos de movimentos sociais e política?

A Argentina enfrenta agora uma nova crise econômica e nem a direita nem a esquerda parecem ter um modelo de desenvolvimento que se contraponha à dependência de commodities e concilie desenvolvimento com preservação do meio ambiente.

A coalizão governista é uma aliança entre movimentos sociais e grupos de esquerda e centro do partido peronista. A capacidade dos primeiros para influenciar políticas públicas tem sido, no entanto, limitada pelos primeiros desafios que se colocam desde cedo, nomeadamente: recomeçar uma economia recessiva em plena pandemia enquanto se lida com uma nova e inédita dívida externa.

Desde o fim das medidas contra a covid-19, as medidas de austeridade impactaram o apoio popular ao governo e pressionaram a coalizão, especialmente as organizações que exigem mais apoio: mulheres, indígenas, diversidades sexuais, grupos ambientalistas, periferias urbanas. Um dos grandes desafios para esses atores parece ser vincular suas demandas aos debates sobre desigualdade e redistribuição.

 

Ø  Guerra do lítio: Bolívia se ergue, o Império afia as garras. Por Bruno Beaklini

 

O lítio mineral é o chamado “ouro branco” do século XXI e tem mais de 60% de suas reservas entre Argentina, Bolívia e Chile. Desses três países, a Bolívia é hoje o mais forte economicamente. Em novembro de 2019 sofreu um golpe de Estado liderado pela direita paceña (do Departamento de La Paz), mais precisamente por Carlos Mesa (ex-presidente) e a extrema-direita de Santa Cruz de la Sierra, liderada pelo governador do departamento, Luís Fernando Camacho (preso há mais de 30 dias por conspiração e golpe de Estado). Em outubro de 2020, após uma correta unidade indígena, camponesa, mineira, sindical e popular, o candidato do MAS-IPSP, Luis Alberto Arce Catacora, ganhou em primeiro turno com mais de 55,1% dos votos. 

As bases para desenvolver uma economia nacional boliviana estão dadas. Mesmo o departamento rebelde, com oligarcas criminosos e racistas como Branko Marinkovic e o “El Facho Camacho” viu sua economia quintuplicar de tamanho na era Evo Morales Ayma (2006-2019). Em nível nacional, os fundamentos são bons também. No ano de 2022, teve a mais baixa inflação da América do Sul (3,1%), crescimento do PIB em 4,31% anual (ia passar de 8%, mas houve locaute e sabotagem econômica por mais de 36 dias), saldo positivo da balança de comércio exterior, dívida pública controlada (e dentro da meta), dólar estável, além de um enorme investimento em alta tecnologia. Na grade curricular nacional de 2023, os níveis básico, fundamental e secundário vão ensinar robótica nas escolas. 

Já o lítio mineral está sob total controle da empresa estatal Yacimientos Del Litio Bolivia (YLB) em convênio com um conglomerado chinês CBC. O modelo é vertical, segundo o mandatário boliviano“A diferença é que nossa empresa YLB estará presente em toda a cadeia produtiva, desde a extração, industrialização e comercialização de produtos”. Deste modo, a YLP reproduz o modelo da YPFB (a estatal petrolífera e demais produtos) nacionalizada e verticalizada em 1º de maio de 2006 e chama a atenção do Império dos EUA em sua sina de projetar poder e inviabilizar as sociedades latino-americanas. 

27)   O Comando Sul quer as riquezas da América Latina e começa pelo lítio

Uma militar estadunidense, mulher e general de quatro estrelas, Laura J. Richardson (vejam seu perfil em site oficial em português) está à frente do Comando Sul dos EUA desde o final de outubro de 2021. Vale ressaltar que este comando permanente é o encarregado pelas forças armadas combinadas dos Estados Unidos em projetar poder e “garantir a segurança hemisférica”. Fora o México (sob a ameaça do Comando Norte) e Porto Rico (a ilha invadida no final do século XIX e que segue sendo Estado Associado, ou seja, colônia), todos os países da América Latina e do Caribe estão diretamente ameaçados por esses militares profissionais. Em outras palavras, o pesadelo de um desembarque de fuzileiros navais gringos passa por este alto comando.

Em 21 de janeiro de 2023, a general Richardson fez um pronunciamento para sua própria plateia, tentando ampliar a atenção do Império para o que antes da Revolução Cubana era considerada o “seu quintal”, conforme segue:

“Porque essa região importa. Pelos recursos naturais e minerais, por exemplo. Tem o Triângulo do Lítio – Argentina, Bolívia e Chile – responsável por 60% das reservas mundiais desse minério que é essencial para a tecnologia na atualidade. Também tem as maiores reservas de petróleo cru e leve, descoberto na fronteira das Guianas cerca de um ano atrás. Venezuela também tem muitos recursos, incluindo enormes reservas de petróleo. Na América do Sul tem cobre, ouro. A China compra 36% de suas fontes de alimentos desta região. Tem a Amazônia, o pulmão do mundo. Nesta região concentra 31% dos recursos hídricos do planeta.” 

A sinceridade na fala da militar segue dentro do jogo de poder global, e aponta o crescimento do comércio com a China como um grande problema:

“Tudo isso está fora dos gráficos mais imediatos, mas quando se fala de comércio internacional, é inacreditável o volume da região. Eu falei sobre todos os vínculos e laços que nós temos com o Hemisfério Ocidental. Mas vale ressaltar que a República Popular da China é o principal parceiro comercial da maioria dos países latino-americanos, sendo que os EUA ocupam a segunda posição em grande parte dos casos. Na verdade, nem na maioria dos casos (países), mas com alguns Estados. Entretanto, ao observar o crescimento do volume de negócios da China com a América Latina, saltando de USD 18 bilhões de dólares em 2002 para USD 450 bilhões no ano de 2022, e considerando que a previsão do volume de negócios entre latino-americanos e chineses deve atingir a USD 750 bilhões no futuro próximo, creio que temos muito para pensar.”

Vale observar que para o Departamento de Estado, a América Latina está na subsecretaria do Hemisfério Ocidental. Para os EUA, o primeiro adversário em nosso Continente é a projeção de poder econômico da China e, em segundo posto, a presença da Rússia. E como tal, a general Richardson lista três aliados principais da Rússia na região (Venezuela, Nicarágua e Cuba) e seis outros países que utilizam material militar russo. A “ideia genial” – a mesma que encantou o demitido general Arruda, comandante geral do Exército brasileiro por um brevíssimo tempo – era pedir que esses países façam uma doação de material bélico de padrão russo para a Ucrânia e, assim, os gringos forneceriam equipamento militar em substituição. 

É o jogo “hemisférico”, outrora chamado de “panamericanismo”, onde os EUA tentam implantar sua agenda em tomadores de decisão de instituições-chave da América Latina. Quando não conseguem governos muito aliados, entram pelas beiradas, como foi o caso da Operação Lava Jato, a cabeça de ponte da operação de Lawfare que ainda atinge a Argentina e o Peru. 

28)   Entre a desestabilização e a justa luta social 

Os governos dos países componentes do Triângulo do Lítio podem ser classificados de “progressistas”, amigos da Palestina e propensos à integração latino-americana e, por consequência, ao multilateralismo. Isso basta para que os Estados Unidos “justifiquem” em sua política doméstica alguma medida para desestabilizar essas sociedades. Considerando que a administração Biden tem como inimigo doméstico a Trump e seus aliados, as movimentações geopolíticas se colocam mais delicadas. Ainda assim, dentro do Grande Jogo do Sistema Internacional, os estrategistas do Pentágono e do Departamento de Estado percebem a evidente perda de capacidade de influência sobre a América Latina. 

Compreender que há uma ameaça imperialista não pode implicar em adesismo aos governos Alberto Fernández (Argentina), Luis Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile) ou qualquer outro de maioria social-democrata em nosso continente. A agenda doméstica e as lutas sociais por mais distribuição de renda, reconhecimento e poder de fato são bandeiras permanentes, independente de quem estiver no Poder Executivo. O mesmo se dá na agenda anti-imperialista e a defesa da soberania popular sobre os recursos estratégicos e suas respectivas cadeias produtivas. É preciso ter força social para enfrentar tanto o inimigo interno como as pretensões de Washington em comandar nossos destinos.

A dependência e o colonialismo são tão domésticos como externos, e superar a sina agromineral exportadora são passos necessários para quebrar a hegemonia do capital especulativo composto por parasitas financeiros e empresários golpistas (sempre com forte presença sionista). Se retomarmos o ciclo virtuoso das empresas estatais estratégicas – ao mesmo tempo, tentando torná-las públicas e dotadas de democracia interna – podemos realmente virar o jogo contra a direita colonizada na América Latina.

 

Fonte: Por Micaela F. Moreira, em Outras Palavras

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