Policiando as crises sanitárias no
Antropoceno
No dia 21 de maio de
2020, quinta-feira, uma distribuição de cestas básicas foi interrompida no
Morro da Providência por conta de uma operação da polícia militar fluminense.
Rodrigo Cerqueira da Conceição, jovem negro de 19 anos, estava na fila para
receber alimentos. Ele foi atingido por disparos feitos por policiais durante a
ação, vindo a óbito momentos depois. No dia anterior, João Vitor Gomes Rocha,
outro jovem negro de 18 anos, foi também atingido mortalmente durante uma
operação policial na Cidade de Deus. Esta outra favela também faz parte da
cidade do Rio de Janeiro, e o episódio de vitimização civil também aconteceu
durante uma distribuição de cestas básicas.
Três dias antes da morte de Rodrigo (e dois
dias antes da morte de João Vitor), uma outra operação policial vitimou desta
vez João Pedro Mattos Pinto, um terceiro jovem negro de 14 anos. João estava na
sala de casa quando a residência foi invadida e alvejada pelas polícias civil e
federal mais de 70 vezes, em ação conjunta ocorrida no Complexo do Salgueiro –
conjunto de favelas pertencente ao município de São Gonçalo, na região
metropolitana do Rio. Todas as mortes aconteceram em meio à pandemia da COVID-19,
em momento de profunda agudização da crise sanitária e social no Brasil.
Olhando agora para
trás, pouco mais de 30 anos antes da ocorrência desses episódios, a polícia
civil de São Paulo conflagrou uma ação de policiamento ostensivo denominada
“Operação Tarântula”. Em 27 de fevereiro de 1987, uma sexta-feira, policiais
passaram a prender particularmente pessoas trans e travestis na região central
da capital paulistana. Mais de 300ocorrências foram registradas em apenas duas
semanas de operação, legitimadas juridicamente pelo artigo 130 do Código Penal
brasileiro: “expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato
libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está
contaminado”.
Outras operações
policiais como “Arrastão”, “Cidade”, “Sapatão”, “Limpeza” (todas em São Paulo)
e “Asa Branca” (em Recife) tiveram o mesmo propósito de reprimir pessoas trans
e travestis ao longo dos anos 1980. Todavia, a “Tarântula” marca uma diferença.
O artigo 130 estabelece relação mais direta com o contexto pandêmico da AIDS,
ao embasar a justificativa “sanitária” da ação policial. A manchete do jornal
“Folha de São Paulo” dois dias após a deflagração da operação é muito clara:
“Polícia Civil ‘combate’ AIDS prendendo travestis”.
Se retornarmos ainda
mais ao passado, mais precisamente para os primeiros anos do século XX, a
polícia entra em cena novamente durante o episódio conhecido como a “Revolta da
Vacina”. Entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro testemunhou
a formação de verdadeiras “praças de guerra” em seu espaço urbano. Forças de
segurança e manifestantes se enfrentaram em meio a uma série de tensionamentos
sociais e políticos da época, cujo estopim foi o caráter compulsório da
vacinação contra a varíola. Polêmicas sobre a invasão de residências para o
cumprimento das medidas sanitárias – em especial nos bairros ditos “populares”
– trouxeram a polícia para o cerne da crise mesmo antes do início do motim.
Em um dos seus
epicentros, gritos de “morte aos policiais, abaixo a vacina!” ecoavam entre as
enormes barricadas erguidas por manifestantes no bairro portuário da Saúde. O
lugar chegou a ficar conhecido como “Porto Artur” durante a revolta, em alusão
à violenta batalha ocorrida na guerra russo-japonesa (1904-1905). Em pouco
menos de uma semana, o saldo dos enfrentamentos foi de ao menos 945 prisões,
110 feridos e 30 mortos, com mais de 460 nacionais sendo deportados para outras
regiões do país, com destaque para o estado do Acre.
• Que crise(s)?
Quando tomados em
conjunto, esses três cenários sucintamente descritos me parecem bons “casos
para pensar” a relação entre policiamento e crises sanitárias. Em caráter
introdutório e longe de se pretender conclusivo, pode-se indagar: afinal, qual
é o papel das forças policiais durante momentos de epidemias e pandemias? Se
considerarmos o breve histórico traçado nos parágrafos anteriores, é evidente
que tal relação sempre foi permeada por muitos tensionamentos, sobretudo em um
país como o Brasil, onde múltiplas desigualdades de ordem social, econômica,
política e jurídica se sobrepõem e orientam a relação do Estado para com a
sociedade. Da mesma forma, tal problemática me parece estratégica no debate
público contemporâneo, se levarmos em conta um dos efeitos mais devastadores do
“Antropoceno”: o agravamento da crise ambiental. Mudanças climáticas,
desmatamento, predação de recursos naturais, poluição e o avanço das fronteiras
agrícolas monocultoras são alguns dos mais poderosos combustíveis a alimentar
cenários futuros em que crises sanitárias tendem a ser cada vez mais
comuns.
O momento atual é de
grande confusão. Vivemos em um “estado de crise(s)”, se o leitor preferir. Mas
se hoje cada vez mais a palavra “crise” faz parte do nosso vocabulário
cotidiano, o que a mobilização desta categoria tem a nos dizer sobre o estado
das coisas? Em ensaio intitulado “Crisis”, o antropólogo Didier Fassin
argumenta que os significados atribuídos a esta categoria repousam na relação
indissociável e instável entre um dado momento crítico e a tomada de
consciência sobre ele. Em outras palavras, o autor argumenta que qualquer crise
sempre traz consigo duas dimensões complementares. Por um lado, crises se
relacionam com uma dada situação crítica do “real”, considerada “problemática”
por escapar a certo parâmetro de “normalidade”. Por outro lado, a ideia de
crise também passa a existir a partir dos relatos que são criados e que passam
a circular sobre ela, e que fazem sua presença ser sentida através de
diferentes formas de discurso, ação e representação. Crises, neste diapasão,
possuem um caráter fundamentalmente “criativo” do ponto de vista social.
No entanto, uma outra
questão emerge daí. Em países como o Brasil, onde situações críticas de
variadas ordens estão absolutamente normalizadas na vida das pessoas, como
definir o que é uma “crise” em meio a cenários onde crises são a ordem do dia?
Longe de fornecer uma definição universal para a categoria, a antropóloga Janet
Roitman, em seu livro “Anti-Crisis”, sugere pensar o problema a partir dos
tipos de trabalho que as crises fazem ou deixam de fazer na construção de
formas narrativas. As definições e adjetivações de “crise” servem para balizar
ou designar o que a autora chama de “momentos da verdade”, isto é, momentos
críticos na história quando decisões são tomadas ou eventos são decididos.
A definição e
adjetivação de um momento enquanto “crítico” sempre traz consigo uma vontade de
urgência, vontade esta que, volta e meia, consegue colocar em disputa uma série
de princípios, suposições, premissas, critérios e relações lógicas ou causais
antes já razoavelmente consolidados. Crises tendem assim a sinalizar mudanças,
embora, muitas vezes, elas ajam no sentido contrário de reforçar a máxima
proferida pelo príncipe de Falconeri, retratado no romance “O Leopardo” de
Giuseppe di Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
• Negociando “crises”
A despeito de todas
essas considerações, fato é que diferentes forças policiais vêm sendo
empregadas no reforço e manutenção da “ordem pública” em momentos críticos
pelos quatro cantos do mundo. A instauração de uma crise sanitária tende a
reforçar ainda mais o papel de protagonismo assumido pela polícia nas
narrativas que emergem daí. Isto acontece, pois, diante da magnitude que surtos
epidêmicos e pandêmicos podem adquirir, a vontade de urgência intrínseca a
esses contextos tende a fortalecer instituições cujo mote é justamente oferecer
“segurança” – a exemplo das forças policiais.
Entretanto, tão comum
como testemunharmos a ação direta dos agentes no cumprimento de medidas
sanitárias de exceção, é também percebermos os inúmeros dilemas decorrentes
daí. Enquanto forma narrativa, a mobilização de um “estado de crise” sempre
permite legitimar uma série de ações por parte daqueles capazes de definir as
coisas como tal, a despeito da emergência de outras contranarrativas que nos
falam sobre estigmas de raça, gênero, classe, lugar de moradia, entre tantos
outros marcadores sociais que reforçam a construção social do “elemento
suspeito” aqui e acolá.
Mas se retornarmos particularmente ao contexto
brasileiro, alguns elementos tendem a complexificar ainda mais a situação do
ponto de vista da atuação das nossas forças de segurança. Me refiro
particularmente a dois pontos. Em primeiro lugar, ao papel central desempenhado
pelas polícias na transformação da “segurança” em “mercadoria” nas ruas de todo
país. Em um exercício de pura imaginação, suponhamos que entre 2020-2021 o
Governo Federal e os governos de estados e municípios tivessem realizado ações
mais coordenadas e enérgicas de enfrentamento ao coronavírus.
Tão difícil quanto
imaginar as polícias fora deste quadro é imaginar como a aplicação dessas
medidas sanitárias seria feita nas mais diferentes situações cotidianas.
Se instaurado, qual
seria o impacto, por exemplo, de um lockdown nas negociações para a realização
ilegal de festas que testemunhamos tantas vezes durante a pandemia, ou mesmo
para manter em funcionamento mercados ilegais como o da exploração do sexo ou do
varejo das drogas? Ou ainda, em que medida mecanismos mais sofisticados de
controle – como o rastreamento de infectados por celular, aplicado com sucesso
pelas agências sul-coreanas – poderiam ser comoditizados visando o
salvo-conduto de circulação pela cidade? Em suma: quais os efeitos da
instauração de um “estado de crise” sobre o capital policial em nosso país?
Além disso, um outro
ponto fundamental diz respeito à crescente politização e autonomização das
nossas forças policiais. Me refiro não apenas à transformação de agentes em
políticos profissionais nos parlamentos municipais, estaduais e no Congresso
Nacional, mas também na autonomização do trabalho policial perante mecanismos
de controle civil. Para ficarmos novamente com apenas um exemplo da última
crise pandêmica, vale destacar dois desdobramentos da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 635 – a chamada “ADPF das favelas”.
Embora desde junho de 2020 tal medida restrinja legalmente a realização de
“operações policiais” no Rio de Janeiro, as polícias vêm descumprindo
sistematicamente a decisão do STF, com a ocorrência, inclusive, da maior chacina
policial já praticada no território fluminense.
Mais recentemente,
líderes de entidades empresariais em articulação com a “bancada da bala” se
reuniram com o ministro Gilmar Mendes em Brasília para pedir a anulação
definitiva da arguição. Mesmo com evidências que apontam o contrário, a força
tarefa policial-empresarial justifica o pedido diante do cenário de “crescente
violência e desordem, intensificado pelas limitações impostas às operações
policiais” no Rio de Janeiro. O relator da ADPF 635, o ministro Édson Fachin,
afirmou que o mérito da decisão será analisado ainda neste ano de 2024.
• Espadas independentes
Diante desses
elementos, alguns dilemas emergem como pontos para reflexão. Sabemos
primeiramente que a relação entre crises sanitárias e forças policiais sempre
foi marcada por inúmeros tensionamentos ao longo da história. E sabemos também
que esses tensionamentos tendem a aparecer pelo papel de maior protagonismo
assumido pelas polícias nesses contextos, quando ela assume a responsabilidade
de garantir a aplicação de medidas sanitárias voltadas para a “segurança” e a
“ordem” – a despeito das disputas semânticas que sempre envolvem a definição
desses termos. Todavia, o que dizer sobre o caso brasileiro, onde esses
tensionamentos muitas vezes surgem não em decorrência do papel das polícias em
“aplicar a lei”, mas sim em decorrência do seu papel enquanto “espadas
independentes” em relação à sociedade e ao próprio Estado? Se o pouco controle
exercido sobre as polícias já é parte do nosso imanente “estado de crise”, como
proceder caso medidas mais sérias de enfrentamento às pandemias/epidemias
ocorram no futuro? Como evitar que a discricionariedade policial vire ainda
mais arbitrariedade em “estados de crise”?
É preciso compreender
que as polícias – particularmente e crescentemente no Brasil – são instituições
dotadas de interesses próprios, e que nem sempre atuam em concordância com a
lei ou com outras instituições formais dentro do que se entende por “Estado”.
Como argumentam Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, as forças de segurança
operam em seu cotidiano muito mais através de “malhas” de relações
pessoalizadas, capazes de incorporar agentes que estão em diferentes momentos
de suas carreiras e também em diferentes agências policiais e corporações da
magistratura, do ministério público e do campo jurídico de modo geral.
A polícia pode, por
vezes, disputar a maneira como o Estado se constrói como ação e representação,
reivindicando e auferindo rendimentos através de discursos que afirmam ela ser
Estado. Outras vezes, a polícia pode igualmente reivindicar um conjunto de práticas
que vão contra o Estado em termos da sua racionalidade pretensamente moderna e
normativa, orientada pelos parâmetros de defesa de direitos e segurança
pública. Por mais aparentemente contraditório que isto possa parecer, é
possível perceber ambos os movimentos de muitas maneiras, inclusive através das
narrativas que surgem da relação entre crises sanitárias e policiamento.
Compreender essas
nuances é fundamental para refletir criticamente os papéis a serem ou não
exercidos pelas polícias em momentos de epidemias e pandemias futuras no
Brasil. Queiram ou não, nenhum sinal no horizonte nos indica qualquer
arrefecimento da crise ambiental e seus potenciais desdobramentos sanitários.
Da mesma forma, nenhum sinal no horizonte nos indica quaisquer mudanças no
modus operandi das nossas polícias.
Fonte: Por Eduardo de
Oliveira Rodrigues, no GGN
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