quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Natasha Lennard: ‘A resposta à vitória de Trump é a mobilização radical’

Fiquei sabendo que Donald Trump seria presidente dos Estados Unidos, em 2016, enquanto comparecia ao funeral de um amigo meu, Clark Fitzgerald, que havia morrido em um acidente de carro a caminho de um protesto contra o oleoduto de Dakota em Standing Rock, no estado de Dakota do Norte. 

Na noite do funeral, seu melhor amigo leu trechos que Fitzgerald havia escrito: um governo de Trump parecia improvável para muitos de nós naquele momento, mas Fitzgerald, como outros na esquerda antifascista, tinha uma profunda consciência de que não podíamos confiar nos políticos tradicionais como baluarte contra a opressão.

“Leve em conta necessidades e desejos reais quando fizer mais de um milhão de sacrifícios”, escreveu Fitzgerald, um radical organizador de movimentos, que morava em Nova York, e que conheci durante o Occupy Wall Street. “Lutemos tanto a ponto de não sentir o tempo todo que vamos explodir, transformemos isso novamente no grande passatempo americano.”

Oito anos depois, Trump ganhou novamente.

O Partido Democrata apostou em um apelo aos neoconservadores, incluindo criminosos de guerra, como Dick Cheney, e defendeu políticas de fronteira mais rígidas, reforçando a lógica anti-imigração do Partido Republicano, em vez de confrontá-la. 

Kamala Harris pode ter contado com as mulheres para votarem a favor do direito ao aborto, mas prometeu pouco mais do que o retorno à regulação falha e insuficiente que decorria do caso Roe vs. Wade, na melhor das hipóteses. Como o presidente Joe Biden, ela apoiou um genocídio e não conseguiu se diferenciar dos sionistas extremistas como Trump.

Tenham sido quais forem as vitórias obtidas pelos trabalhadores organizados durante o mandato de Biden — e elas foram dignas de nota — esse não foi o foco dos democratas na disputa de 2024 pela Casa Branca. O plano econômico de Harris era favorável a Wall Street e ao Vale do Silício, embalado na terminologia de “oportunidades” para a mitológica “classe média”, e não um acerto de contas necessário com as demandas de uma classe trabalhadora diversa que habita essa superpotência desesperadoramente desigual.

Fitzgerald não viveu o suficiente para presenciar um, muito menos dois governos de Trump. Mas quando penso no que ele perdeu, não penso na Casa Branca. Penso no que ele gostaria de ter visto. Coisas como as extraordinárias iniciativas de ajuda mútua que mantiveram vizinhos vulneráveis alimentados no auge da pandemia da Covid, ou o movimento de inquilinos que vem crescendo em todo o país, responsabilizando cada vez mais os locadores e mantendo dezenas de pessoas em suas casas. Ele não viu a potência das revoltas do movimento de libertação negra em 2020, nem a resistência em Atlanta contra a construção da Cop City, um enorme centro de formação de policiais. 

Ele não testemunhou os protestos em solidariedade a Gaza, com milhões de pessoas tomando as ruas, ou os bandos de estudantes em todo o país que participaram de acampamentos sob risco de suspensão e expulsão para exigir o fim da cumplicidade de suas instituições no genocídio. Arrisco dizer que Fitzgerald teria ficado encantado com as redes de circulação de comprimidos abortivos e hormônios para quem precisa deles, em estados onde o aborto e os cuidados de saúde de afirmação de gênero já foram proibidos ou muito restritos. 

Contemplando mais quatro anos de um governo Trump, que ameaça usar uma violência totalitária ainda maior do que no primeiro mandato, essas intervenções da sociedade civil nos últimos anos podem parecer pouco consolo, reprimidas e contidas como vêm constantemente sendo. Mas também acabamos de testemunhar, mais uma vez, o fracasso retumbante de um Partido Democrata que atende ao sistema, aparentemente mais comprometido com a triangulação à direita do que em oferecer um programa propositivo para o país, seus cidadãos e habitantes. 

Invoco aqui o falecido Fitzgerald, o movimento de Standing Rock, o Occupy, as redes de ajuda mútua, as revoltas por George Floyd, o ativismo em solidariedade a Gaza — a luta antirracista, antifascista, anti-imperialista, antigenocídio dos últimos anos, de forma geral — porque o sistema dos democratas deixou claro seu compromisso com uma política fracassada de recorrer à direita, para no fim perder para a direita. O mesmo padrão orienta as mudanças políticas à direita, anti-imigração, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Itália, e em tantos outros lugares

A política de direita se reconfigurou e foi normalizada como o centro.

As políticas e os partidos de extrema direita tendem a vencer quando os chamados centristas assumem plataformas conservadoras para tentar supostamente capturar os eleitores brancos insatisfeitos e, assim, manter a extrema direita sob controle; o resultado é que o nacionalismo conservador é tratado como o cerne de toda a política. É isso que a campanha de Harris fez, em especial no que se refere à imigração. Na melhor das hipóteses, como aconteceu com o atual governo do Partido Trabalhista britânico, os conservadores podem ter perdido, mas as políticas de direita foram reconfiguradas como o centro normalizado.

Para os democratas, o recurso à direita tem sido um desastre da realpolitik, especialmente em um sistema eleitoral que favorece estruturalmente os republicanos em qualquer hipótese. Mas, o que é pior, as estratégias do partido fracassaram em prejuízo das comunidades mais vulneráveis, tanto dentro dos EUA, quanto as que sofrem sob o jugo das guerras apoiadas pelos EUA. 

Ainda é muito cedo para dizer se os democratas aprenderão com essas derrotas, ou simplesmente — como já fizeram antes — culparão sem fundamento a esquerda por fracassos que têm pouco a ver com os eleitores de esquerda. Os opositores ao genocídio de Israel são um saco de pancada fácil, mas não são os responsáveis pela vitória de Trump. Os democratas do sistema podem culpar a si mesmos, mas a esquerda não tem tempo para esperar uma autocrítica desse partido previsível.

Há uma necessidade urgente de organizar movimentos de justiça social, fortalecer sindicatos e o poder sindical, enfrentar as estruturas de poder em vez de ceder a elas, e criar amplas redes de cuidado e apoio. Os poderosos movimentos sociais das últimas décadas não se construíram a partir do apoio das lideranças do Partido Democrata, nos governos de Bill Clinton, Barack Obama, ou Joe Biden. Eles também não entraram em colapso durante o primeiro mandato de Trump.

Não há uma forma única de reunir todas as lutas que estão atualmente interconectadas. O movimento de solidariedade palestina, que também se contrapõe à hegemonia dos EUA e às estruturas de poder colonial, é um terreno fértil para trabalhadores da cultura, pesquisadores, e trabalhadores de todos os ofícios — não apenas estudantes e professores. As pessoas que estão na linha de frente para garantir o acesso continuado ao aborto e aos cuidados de saúde para pessoas trans também precisam sempre de mais apoio. Se você é inquilino de um imóvel, pode entrar em um sindicato de inquilinos, ou organizar um; se você é um trabalhador, mesmo precarizado, há sempre espaço para ingressar na luta pela sindicalização e pela organização. Grupos de ajuda mútua surgem em todas as cidades. Em todo o país, governos locais estão construindo centros de treinamento de policiais, que precisam de oposição feroz.

Deixei o apartamento de uma grande amiga no final da noite de terça-feira, com o coração pesado, mas sem surpresa com o provável retorno de Trump ao poder. Também conheci essa amiga durante o movimento Occupy. “Não estamos começando do zero”, ela me lembrou, quando nos despedimos com um abraço. A mobilização da sociedade civil — ciente há muito tempo, e dolorosamente, de que não é possível manter uma forte dependência do sistema do Partido Democrata — é o rumo para onde devemos nos voltar, e continuar a construir.

Não estamos começando do zero.

 

¨      Os democratas destruíram sua chance de barrar a volta de Trump. Por Jonah Valdez

Na manhã de quarta-feira, vários veículos projetaram a vitória de Donald Trump sobre a vice-presidente Kamala Harris na eleição presidencial de 2024 nos EUA.

Espera-se que a volta de Trump à Casa Branca traga uma pauta de direita radical que pode resultar na deportação de milhões de imigrantes, restrição de direitos de pessoas trans, maior restrição dos direitos reprodutivos, e reversão de proteções ambientais em meio à aceleração das catástrofes climáticas. 

Ao contrário de 2016, quando sua vitória sobre Hillary Clinton foi um choque para muitos americanos, Trump não é uma surpresa em 2024. O Partido Democrata teve quatro anos de vantagem para garantir que isso não acontecesse novamente. No entanto, como em 2016, aparentemente os democratas fracassaram na tentativa de ganhar o eleitorado em uma disputa contra um candidato especialmente impopular – que, desta vez, traz nas costas múltiplos pedidos de impeachmentacusações e condenações criminais.

A curta campanha de Biden e a subsequente campanha de Harris decidiram tentar vencer os Republicanos em seu próprio jogo, e se voltaram para a direita em questões como imigraçãojustiça penal e clima. Depois da desistência de Joe Biden, o partido Democrata rejeitou os apelos para deixar de fornecer armas para a guerra de Israel em Gaza. Harris, em vez disso, apreciou o apoio de conservadores como Liz Cheney. Foi uma estratégia para cortejar os moderados e conservadores receosos com um segundo mandato de Trump, mas isso pode ter afastado os principais blocos eleitorais.

“Mesmo deixando de lado esse genocídio, tem sido difícil fazer com que Harris assuma posições firmes sobre outras coisas que me preocupam, como os direitos trans; algum tipo de reforma relevante e humanizada das políticas de imigração; e um posicionamento sobre as mudanças climáticas”, disse na semana passada Meghan Watts, eleitora da Carolina do Norte, ao The Intercept dos EUA. Ela estava indecisa entre Harris e a candidata do Partido Verde, Jill Stein. Na terça-feira, acabou deixando em branco o campo de eleição presidencial da cédula.

(Nota da editora: nos EUA, as cédulas eleitorais trazem, além dos candidatos ao Executivo e ao Legislativo, diversas outras questões sobre as quais os eleitores devem decidir.)

Ao longo da guerra, o governo Biden demonstrou relutância em mudar a sua política de armar Israel, sem praticamente nenhuma salvaguarda frente às crescentes provas de violações aos direitos humanos, tanto em Gaza, como no Líbano. Depois de um ano de protestos contra a guerra em universidades de todo o país, houve um otimismo inicial por parte dos eleitores de que Harris poderia mudar de rumo ao assumir a chapa.

movimento Uncommited reuniu o compromisso de centenas de delegados de Harris em pressionar a campanha a um embargo de armas, e parecia haver estar ganhando força antes da Convenção Nacional do Partido Democrata, em Chicago, em agosto. No entanto, o partido barrou o movimento de todas as formas, e Harris se recusou a oferecer qualquer garantia de que a sua política em relação à guerra seria diferente da de Biden.

As pesquisas têm mostrado consistentemente que impor restrições ou limites ao envio de armas dos EUA a Israel é uma medida popular entre os americanos e, de forma ainda mais esmagadora, entre os democratas. Mas Harris continuou a ignorar os apelos para fazer isso, culminando com a decisão do Uncommitted de não apoiá-la.

“A vice-presidente Harris e sua equipe não aproveitaram a oportunidade de dar força ao Uncommited para apoiá-la e mobilizar os eleitores em sua reeleição”, disse Abbas Alawieh, co-fundador do movimento, em setembro, após anunciar o não apoio. Ele acabou votando em Harris com a esperança de que os eleitores continuassem a pressioná-la por um embargo de armas e um cessar-fogo.

Os democratas passarão anos debatendo quais questões afastaram especificamente os eleitores de Harris e os levaram a Trump – teria sido a guerra, a inflação, o racismo e a misoginia da América, ou outros fatores totalmente diferentes? Mas à medida que o partido examina sua derrota, deve também levar em conta a forma como lida com as vozes dissidentes em suas fileiras.

Reem Abuelhaj, ativista na Pensilvânia pelo movimento No Ceasefire No Vote PA, um grupo que pressiona pela promessa de um embargo de armas, disse temer que um voto em Harris estabelecesse um precedente de que o partido Democrata poderia ignorar seus eleitores que manifestam dissidência sobre violações aos direitos humanos. Ela decidiu esperar até o dia da eleição, com a esperança de que Harris fizesse uma mudança de política de última hora. Essas garantias nunca chegaram.

“Entrei na cabine de votação e não conseguia parar de chorar”, disse Abuelhaj ao The Intercept na noite de terça-feira. “Tudo o que conseguia ver era o rosto de uma criança em Jabaliya” – uma cidade do norte de Gaza – “segurando o corpo do seu irmão mais novo, que foi morto no fim de semana. Votei no restante da cédula, mas deixei em branco a parte de cima.”

Alguns de seus amigos e familiares se uniram a ela, e não conseguiram votar em Harris. Outros, que votaram em Harris, choraram ou se sentiram mal, ela contou. Uma amiga disse que votou em Harris “mas depois rezou pedindo perdão”.

“Este foi um dia de tristeza e destruição”, disse Abuelhaj.

Quando Trump tomar posse, a política dos EUA irá oscilar para a extrema direita. Jesse Myerson, um ativista comunitário em Nova Iorque, resumiu a situação que a esquerda, e uma grande parcela do público americano, provavelmente enfrentará em um segundo governo Trump.

“O ataque violento que o governo [de Trump] vai lançar contra pessoas queer e trans, imigrantes, muçulmanos, pessoas racializadas, judeus, qualquer pessoa cujos direitos reprodutivos estejam sob ataque, ou que esteja na linha de frente das catástrofes climáticas – tudo isso exigirá que estejamos na defensiva em uma série de questões, e isso irá reduzir a capacidade que temos para lutar contra esse genocídio. E, honestamente, dados os planos do Projeto Esther, haverá ainda mais ataques diretos ao movimento pelos direitos humanos palestinos do que há agora”, disse Myerson ao The Intercept na semana passada.

“As possibilidades de avanço, por mais reduzidas que fossem sob Harris, seriam completamente obliteradas sob Trump, e forçariam uma postura tão defensiva que considero que simplesmente perderemos terreno de formas enormes e incompreensíveis.”

 

Fonte: The Intercept

 

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