Hemorragia pós-parto é segunda causa de
mortalidade materna no Brasil
O Brasil registrou
57,7 mortes maternas a cada 100 mil nascidos vivos em 2022, segundo dados mais
recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Embora o
número esteja em tendência de queda, ainda está distante do Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), até
2030, que traça como meta a razão de 30 óbitos por 100 mil nascidos vivos. No
ranking das principais causas, a hemorragia pós-parto (HPP) ocupa o segundo
lugar e chama a atenção por já ter tecnologias que diminuem o risco de morte.
A condição é definida
pela perda sanguínea maior ou igual a 500 ml após parto vaginal e 1 litro após
cesariana. Francisco Mota, professor de ginecologia e obstetrícia da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coordenador do Programa de
Residência Médica de Ginecologia e Obstetrícia da Fundação Hospitalar de Feira
de Santana, ambos na Bahia, explica que a primeira hora da conclusão do parto é
fundamental para observar possíveis alterações que indiquem um quadro
hemorrágico:
“O parto é dividido em
quatro fases: a latência, a fase ativa do trabalho de parto, o período
expulsivo e a primeira hora após o nascimento. É justamente nesse último
período em que a mulher tem um risco maior de sangramentos e eventuais
complicações. Então, é um momento extremamente importante de observação.”
Apesar de a hemorragia
pós-parto ser evitável, as desigualdades sociais que impactam a jornada da
gestante – a taxa de mortalidade materna em 2022 foi o dobro entre mães pretas,
por exemplo –, a limitação de recursos para manejar casos de HPP, como a escassez
de bolsas de sangue, e até mesmo a capacitação de profissionais mostram que
ainda há uma longa jornada para transformar essa realidade. Por outro lado, a
evolução da medicina tem apresentado cada vez mais alternativas tecnológicas,
como novos dispositivos, e demonstrado a necessidade de mudança de perspectiva.
• Fatores de risco da hemorragia pós-parto
A hemorragia pós-parto
está atrelada a uma série de fatores de risco. Alguns desses fatores estão
relacionados ao período gestacional, como quadros de anemia, hipertensão e
pré-eclâmpsia. Outros determinantes são gestações múltiplas e ocorrência de
hemorragia em partos anteriores.
“Hoje, sabemos que
quase tudo tem fator de risco. Alguns são controláveis, outros nem tanto.
Então, por exemplo, um fator de risco controlável na hemorragia pós-parto é o
fato de as mulheres já começarem o pré-natal com anemias. A falta de reposição
de ferro, que poderia ser corrigida facilmente no pré-natal, às vezes não é
valorizada, e se essa mulher sofrer uma HPP, o risco de piora e de óbito é
maior”, explica Mota.
O médico obstetra
explica que os extremos das idades – gestações na adolescência e após os 40
anos – e múltiplas cesáreas são outros determinantes que devem ser levados em
consideração.
Além desses fatores,
questões de natureza social também influenciam no aumento do risco de vivenciar
a HPP. Gestações não planejadas, por exemplo, estão associadas a maiores
chances de ocorrência de hemorragia pós-parto, uma vez que o próprio pré-natal
pode começar mais tardiamente, não ser realizado de maneira adequada e da carga
de estresse.
Outro ponto de extrema
relevância é o fato de que mulheres não-brancas e pobres são as mais
vulneráveis quando falamos em near miss materno (NMM), termo dado para a quase
morte em decorrência de complicações graves durante a gestação, parto ou no
pós-parto. Uma análise descritiva mostrou que no Brasil, entre 2016 e 2019, a
taxa de NMM entre mulheres negras foi de até 2,27 vezes maior quando comparada
a mulheres brancas.
Para o profissional, a
melhor estratégia de combate à condição inclui a educação sexual, que
possibilita a realização do planejamento familiar e a valorização e
conscientização sobre o pré-natal, para que a mulher chegue ao momento do parto
com melhores condições de saúde.
• Desafios do manejo da hemorragia
pós-parto
A principal causa de
hemorragia pós-parto é a atonia uterina, condição na qual o útero não consegue
se contrair de forma adequada, como detalha Mota: “Uma mulher que, por exemplo,
teve múltiplos partos, apresenta uma chance maior de que o útero não se contraia
corretamente. É como se as fibras dele fossem se rompendo ao longo dessas
gestações e ele não tem aquele mesmo poder de contratilidade da primeira
gestação, o que provoca mais chances de sangramento.”
O diagnóstico é feito
com base na estimação da quantidade de sangue perdida e avaliação dos sinais
vitais da gestante. Já o manejo inclui diferentes níveis de estratégias e
avança conforme a eficácia da estratégia anterior em cada paciente. O médico
explica que, diante da suspeita de hemorragia pós-parto, é preciso colocar em
prática o protocolo clínico para conter o sangramento e evitar maiores danos à
saúde da puérpera:
“Os protocolos
clínicos incluem uso de medicação e de soro para tentar barrar o sangramento.
Quando não há resposta, usamos tratamentos mais complexos, como o balão de
tamponamento, que já foi muito usado no passado, e o JADA. As últimas opções,
de fato, são as cirúrgicas, que podem acabar, às vezes, até em histerectomia
[retirada do útero].”
O sistema JADA é um
dispositivo intrauterino que consiste em um tubo de silicone, um balão de
vedação cervical e uma alça de silicone com poros, que atuam para criar o vácuo
e induzir a contração do útero. Criado por um grupo de universitários
norte-americanos, a ideia recebeu financiamento, foi validada e,
posteriormente, adquirida pela Organon.
“De maneira resumida,
esse dispositivo vai criar um vácuo no útero e induzir o órgão ao movimento
fisiológico de contração, que é o desejado”, explica Raffaella Picciotti,
farmacêutica pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora associada de
marketing da empresa. “Quando a paciente está com hemorragia, o profissional de
saúde posiciona a alça dentro do útero, enche o balão e veda o útero. Depois,
ele liga o dispositivo a uma mangueira de vácuo, o que vai provocar um
movimento de sucção pelos poros.”
Em estudo para avaliar
a eficácia e a segurança do dispositivo, 98% dos pesquisadores em contato com a
ferramenta destacaram a facilidade de uso, o que corrobora a ideia defendida
por Mota de que a tecnologia deve, a longo prazo, transformar a realidade da
mortalidade materna por HPP.
“No passado,
avaliava-se que uma vez que a placenta saiu e o útero está em atonia, a lógica
era inserir o balão para sustentar as paredes uterinas. Mas quando você murcha
o balão, o útero vai estar grande e ainda amolecido, e há o risco de sangrar
novamente. O novo dispositivo tem a proposta do vácuo, que estimula a contração
fisiológica, o que vai diminuir absurdamente o risco de uma intervenção
cirúrgica, de perda de sangue e de internações em UTI”, salienta o professor da
UEFS.
Ele chama atenção
também para o papel do dispositivo em um cenário em que os hemoconcentrados
assumem cada vez mais um status de recurso limitado e escasso. “Se você
procurar bancos de sangue em qualquer lugar do país, verá que será raro algum
deles ter estoque para mais do que duas semanas. Depois da pandemia, os
estoques de sangue caíram em todo o país. Ao não conseguir sangue para uma
paciente, podemos ter um óbito”, aponta Mota.
• Capacitação de profissionais e chegada
ao SUS
O JADA foi aprovado
pela ANVISA em 2023, e agora o desafio é ampliar o acesso ao dispositivo
médico. Segundo Picciotti, ações de educação sobre o uso para profissionais de
saúde, diálogo e parceria com sociedades médicas como a Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), são iniciativas que
precisam acontecer.
“Nosso time interno
visita as maternidades e faz o treinamento com o corpo clínico através de
simulações. Essas ações de educação acontecem também nos congressos nos quais
participamos, e temos também parcerias com as duas principais sociedades
médicas de obstetrícia, a Febrasgo e a Associação de Obstetrícia e Ginecologia
do Estado de São Paulo (SOGESP), com as quais colaboramos neste sentido de
aprendizagem”, reforça.
No Brasil, o
dispositivo já foi utilizado em 12 casos de HPP, todos com desfecho positivo.
No sistema público, a expectativa é de chegar à população que mais deve se
beneficiar do dispositivo: mulheres em posição de vulnerabilidade social.
Atualmente, apenas um hospital público possui o equipamento, o Hospital Inácia
Pinto dos Santos, na Bahia, mas o objetivo é construir pontes para dialogar com
os agentes públicos de estados e municípios.
“Temos trabalhado com
órgãos públicos e muitos médicos especialistas em HPP, e profissionais já têm
levado a necessidade de adesão. Sabemos que o processo na rede pública é um
pouco mais demorado, mas estamos trabalhando nessa frente também”, conclui Picciotti.
Fonte: Futuro da Saúde
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