Esquerda Lula x Esquerda Boric: as
diferenças entre os presidentes de Brasil e Chile
Quarenta anos separam
as idades de Gabriel Boric, 38,
e Luiz Inácio Lula da Silva, 78. Esta
poderia ser apenas uma curiosidade trivial sobre os presidentes chileno e
brasileiro, que se encontram a partir desta segunda-feira (5/8) em Santiago — mas explica,
na verdade, muitas das diferenças na postura dos dois presidentes esquerdistas,
segundo entrevistados pela BBC News Brasil.
A crise eleitoral
na Venezuela, onde o
presidente Nicolás Maduro e a oposição disputam as versões sobre o
resultado do pleito do dia 28 de julho, foi o mais
recente episódio a colocar Boric e Lula em papéis diferentes.
O presidente
chileno foi um dos primeiros do mundo a reagir ao anúncio do Conselho
Nacional Eleitoral (CNE) de que Maduro
teria sido reeleito, derrotando o candidato da oposição Edmundo González. Na
rede social X, Boric escreveu que os resultados anunciados eram "difíceis
de acreditar".
No mesmo dia, o Chile
foi um dos países cujo corpo diplomático foi expulso pela Venezuela de seu território por ter questionado os resultados do pleito. Já Lula, em
sua primeira declaração sobre o assunto, minimizou a crise e afirmou que o que
está acontecendo é um "processo normal", onde a Justiça poderia
resolver o impasse.
A crise na Venezuela
deverá ser o elefante na sala do encontro bilateral entre Boric e Lula, que
viajou a convite do chileno e ficará em Santiago até terça (6/8). Os eventos
buscam trazer uma agenda positiva, com a previsão de assinatura de cerca de 20
acordos ou projetos entre os dois países em áreas diversas.
O Brasil é o terceiro
maior parceiro comercial do Chile e principal destino dos investimentos
chilenos no mundo, enquanto o Chile é o sexto maior mercado para exportações
brasileiras.
Espera-se que os
presidentes tratem da situação em Caracas, ao menos em reunião
privada.
Para o cientista
político chileno Patricio Navia, professor na Universidade Diego Portales e na
Universidade de Nova York, justamente nesse capítulo sobre a Venezuela, a
questão da idade— e mais precisamente da experiência —, apareceu.
"Provavelmente, a
reação de Lula [à situação na Venezuela] reflete um pouco mais de experiência
política que a reação de Boric, que tomou uma reação muito mais visceral e
crítica, que de certa forma o deixa fora do espaço para gerar diálogo e negociação
entre o governo e a oposição na Venezuela", diz Navia.
Mas o professor lembra
que, na questão da Venezuela, as diferentes posturas vão além de Boric e Lula,
e têm a ver mais com o papel do Chile e do Brasil no cenário internacional. Ele
destaca a grandeza da população, do território e da economia do Brasil, em
contraste com o tamanho do Chile — apesar deste, em geral, ter índices sociais
melhores.
"O Chile não pode
ser um ator internacional. Se o presidente do Chile disser algo, ninguém vai
prestar atenção. Se o presidente do Brasil fala, prestam atenção, porque é o
maior país da América Latina. Então, o Brasil entende o seu papel no mundo."
Navia exemplifica essa
diferença de importância citando que o presidente americano, Joe Biden, ligou
para Lula, e não para Boric, para falar sobre a situação da Venezuela.
"Por isso, Lula
vem ao Chile e Boric vai querer estar próximo a Lula. Para Boric, uma foto com
Lula será mais valiosa para ele" do que o contrário, brinca o cientista
político sobre o encontro bilateral.
·
Velha guarda e 'nova
agenda'
Lula está em seu
terceiro mandato, e Boric, no primeiro. Quando o chileno assumiu o poder em
2022, aos 36 anos, tornou-se o presidente mais jovem já eleito em seu país.
Entretanto, ele não
poderá buscar um segundo mandato na próxima eleição porque o Chile não prevê
reeleição consecutiva.
Além dos anos de vida
e de experiência política, Navia destaca também as diferentes trajetórias
sociais de Lula e Boric.
"Lula nasceu
pobre, foi líder sindical, trabalhou em fábricas. Boric é de classe média alta,
sempre foi a colégios privados. Boric está disposto a ser um pouco mais
irresponsável porque é mais jovem e vem da burguesia, enquanto Lula entende os
custos da confrontação e a necessidade de criar alianças com quem pensa
diferente", diz Navia, afirmando que Boric tem "muitos
problemas" em conversar com pessoas diferentes ideologicamente.
Dawisson Belém Lopes,
professor de política internacional e comparada da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), endossa essa diferença nas origens, destacando que Lula
ascendeu como líder sindical e Boric, como "filho" do movimento
estudantil.
"O Lula não
estudou formalmente nas universidades, e Boric nasce nas universidades",
ressalta Lopes, destacando que o brasileiro se formou politicamente em um
contexto ainda fortemente influenciado pela Guerra Fria.
"Para o Lula, o
prisma econômico é muito forte. Questões relativas à infraestrutura, aos meios
de produção e aos conflitos de renda pesam muito para ele, no raciocínio dele.
Boric é outra coisa, ele não está tão ligado a esse conflito material — pelo
lugar de fala dele, por vir do movimento estudantil, por ser de um país que já
é mais rico", enumera.
O contexto histórico
da trajetória de cada um também importa, lembra Talita Tanscheit, brasileira e
professora da Universidade Alberto Hurtado.
"O Lula e o PT
fazem parte de uma esquerda que reemerge nos processos de transição à
democracia na América Latina, com o fim das ditaduras militares e a criação ou
o restabelecimento dos partidos políticos de esquerda. Boric e a Frente Ampla
emergem num processo de reinvenção da ação coletiva no Chile nos anos
2010", explica a cientista política.
Ela destaca a adesão
dessa "nova esquerda" à chamada agenda dos novos direitos, que inclui
assuntos como aborto, eutanásia, maconha e saúde mental, e ao identitarismo, um
debate contemporâneo que ressalta e busca recompensar a distribuição de oportunidades
determinada por gênero, raça, entre outros marcadores de diferenças sociais.
"Essa nova
esquerda não é forjada no mundo sindical, então a centralidade do mundo do
trabalho é menor — algo muito relevante no caso brasileiro e do Lula",
afirma Tanscheit, dizendo que, no Brasil, segundo ele, essa "nova
esquerda" tem como representante o PSOL.
No governo Boric, o
identitarismo se reflete numa maior presença de mulheres no governo, aponta
Patricio Navia.
"Lula tem uma
maioria de ministros homens, algo que para Boric é impossível de
entender", destaca.
Entretanto, com as
derrotas em dois plebiscitos para tentar aprovar uma nova Constituição, Boric
também precisou recuar em sua agenda.
"Boric chegou ao
poder querendo reformar drasticamente o Chile. Mas as principais questões
políticas de Boric foram simplesmente abandonadas, porque as pessoas votaram
contra elas nos plebiscitos. Então ele foi muito mais moderado porque foi muito
limitado no que era capaz de fazer", afirma o cientista político.
·
É a economia
Navia destaca que
eventuais diferenças entre Brasil e Chile na política econômica podem ter mais
a ver com as características próprias dos países do que de seus governantes.
"As economias do
Brasil e do Chile são bem diferentes. O Chile é voltado para a exportação e é
um país de 20 milhões de pessoas. Então a economia do Chile precisa de
exportação."
"No Brasil,
sempre houve uma economia doméstica significativa. Presidentes brasileiros de
esquerda e de direita no Brasil têm que se preocupar com protecionismo. Já o
Chile não pode implementar políticas protecionistas porque a economia
simplesmente não é grande o suficiente", diz o professor.
Dito isso, Talita
Tanscheit avalia que, no que diz respeito aos atuais ministros da Fazenda do
Brasil e do Chile — Fernando Haddad e Mario Marcel —, a conduta dos governos
Lula e Boric tem sido bem semelhante.
"Há uma proposta
de estabilizar [o país] e fazer reformas para crescer", diz a cientista
política, destacando a aposta no controle da inflação e nas reformas
tributárias com o argumento de investir em desenvolvimento social.
E, apesar dos
discursos e diferenças entre a velha e a nova guarda da esquerda
latino-americana, Tanscheit destaca que, dentro do próprio governo Boric, elas
não estão tão distantes assim: as figuras e ministros "mais
relevantes" têm origem no governo da ex-presidente Michelle Bachelet.
"É um governo da
nova esquerda dirigida pela velha esquerda chilena", resume.
¨ 'Começou uma nova era' na relação entre 'Brasil e Chile', diz
Lula
Em sua visita oficial
a Santiago, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou o laço histórico e
profundo entre o Brasil e o Chile.
Em um pronunciamento
proferido nesta segunda-feira (5), na capital chilena, Lula destacou a
importância da amizade bilateral, ressaltando que a relação entre os dois
países transcende interesses e se fundamenta em uma parceria sólida e
abrangente.
Lula recordou que,
durante seus mandatos anteriores, visitou o Chile em sete ocasiões e que, desde
seu retorno ao cargo, recebeu o presidente chileno Gabriel Boric duas vezes em
Brasília.
O discurso de Lula
sublinhou a importância da integração regional, mencionando acordos recentes,
como o de isenção de roaming e o reconhecimento mútuo de carteiras de
habilitação. Ele também enfatizou a necessidade de cooperação para enfrentar
desafios comuns, como desastres naturais e crime organizado.
Venezuela e mais
No pronunciamento, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu transparência no processo eleitoral
da Venezuela.
"Expus [durante a
conversa com o Boric] as iniciativas que tenho empreendido com os presidentes
Gustavo Petro (Colômbia) e Lopez Obrador (México) em relação a processo
político na Venezuela. O respeito pela tolerância, o respeito pela soberania
popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O
compromisso com a paz é que nos leva a conclamar as partes aos diálogos e
promover o entendimento entre governo e oposição", afirmou Lula.
O presidente
brasileiro manifestou apoio à proposta chilena de um mecanismo regional de
resposta a desastres e anunciou a assinatura de um tratado de extradição.
A relação econômica
entre Brasil e Chile foi destacada com o avanço na facilitação do comércio e a
criação de novas oportunidades no setor de turismo. Lula mencionou o plano de
trabalho que visa promover o Chile como um destino popular para turistas brasileiros
e a ambição de conectar a América do Sul através de grandes rotas viárias, das
quais duas incluem o território chileno.
O presidente
brasileiro também ressaltou a importância de colaboração nas áreas de
bioeconomia e proteção ambiental, elogiando o compromisso do Chile com a
sustentabilidade e a defesa dos biomas da Amazônia e da Antártida.
Lula reafirmou o apoio
à candidatura de Valparaíso como sede do secretariado do Tratado do Alto Mar e
à eleição de Letícia Carvalho para a Autoridade Internacional dos Fundos
Marinhos.
O discurso incluiu um
convite para que o presidente Boric participasse da Cúpula do G20 no Rio de
Janeiro e a disposição do Chile de integrar a Aliança Global de Combate à Fome
e à Pobreza.
Lula também falou
sobre a necessidade de unir esforços para garantir direitos trabalhistas e
defender a democracia, convidando Boric para a reunião de líderes democráticos
em Nova York.
Ao visitar o Salão
Democracia e Memória em Santiago e ouvir a gravação do discurso de Salvador
Allende, Lula lamentou o apoio do Brasil à ditadura chilena no passado,
reforçando o compromisso com a democracia e a justiça social.
"Como disse Pablo
Neruda, nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança, mas não há lutas
nem esperanças solitárias [...] Começou uma nova era entre a relação Chile e
Brasil", concluiu Lula, destacando a visão compartilhada de um mundo mais
justo e solidário entre Brasil e Chile.
¨ No Chile, Lula defende divulgação de atas eleitorais na
Venezuela; Boric não se pronuncia
O presidente Lula
reiterou nesta segunda-feira (5) o chamado do Brasil para a divulgação das atas
eleitorais na Venezuela, e pediu respeito à soberania popular, durante visita
de Estado ao Chile, país que é forte crítico da vitória de Nicolás Maduro.
"Também expus as
iniciativas que tenho empreendido com os presidentes Gustavo Petro e López
Obrador em relação ao processo político venezuelano. O respeito pela soberania
popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O compromisso
com a paz é o que nos leva a conclamar as partes ao diálogo e promover o
entendimento entre governo e oposição", disse o presidente Lula em
declaração à imprensa ao lado do homólogo chileno, Gabriel Boric.
Da sua parte, o
mandatário chileno evitou comentar as eleições venezuelanas: "Essa visita
é sobre a relação entre Chile e Brasil. Sei que poderá haver perguntas sobre
outros temas, em particular em relação à Venezuela. Vou me referir a isso
amanhã à tarde".
Os presidentes de
Brasil, México e Colômbia pediram na última quinta-feira que a Venezuela
divulgue a apuração detalhada dos votos, em meio a uma disputa sobre o
resultado da eleição presidencial, algo que tem causado protestos no país.
O conselho eleitoral
da Venezuela proclamou Maduro como vencedor da eleição de 28 de julho, com 51%
dos votos, mas a oposição liderada pelo candidato Edmundo Gonzalez não
reconheceu os resultados e o autoproclamou presidente.
Em resposta às
críticas sobre o processo eleitoral, a Venezuela expulsou diplomatas de uma
série de países da região, incluindo o Chile.
A eleição presidencial
na Venezuela foi realizada em 28 de julho, e o Conselho Nacional Eleitoral
declarou Nicolás Maduro como vencedor. No dia seguinte, protestos ocorreram no
país por aqueles que discordavam dos resultados da eleição; confrontos violentos
entre forças de segurança e manifestantes ocorreram em Caracas e outras
cidades, resultando na detenção de mais de 2.000 pessoas. Washington, sem
esperar pelos resultados da contagem dos votos e posterior auditoria, pediu à
comunidade internacional que reconhecesse o líder da oposição Edmundo Gonzalez
como o vencedor da eleição presidencial na Venezuela. Legisladores dos EUA e da
UE, responsáveis por relações internacionais, ameaçaram na última sexta-feira
responsabilizar Maduro se ele não renunciar voluntariamente como chefe de
Estado após a eleição, classificando os resultados como fabricados.
¨ Boric reage à expulsão do corpo diplomático chileno da Venezuela
O presidente do Chile,
Gabriel Boric, reagiu à decisão do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de
expulsar do país o corpo diplomático chileno e de outras seis nações. Em
postagem no X, antigo Twitter, na noite desta segunda-feira (29), Boric declarou:
"o governo da Venezuela anuncia a expulsão de nossa missão diplomática de
seu país com uma série de argumentos inverossímeis e demonstrando uma profunda
intolerância à divergência, essencial em uma democracia. O nosso no Chile é um
governo de aliança entre a esquerda e a centro-esquerda, e defendemos
firmemente os valores democráticos e o respeito irrestrito aos direitos
humanos. Fazemos isso por convicção e por aprendizado de nossa própria história
nacional".
"Neste caso, não
fizemos mais do que sustentar o que acreditamos ser correto: que os resultados
da eleição sejam transparentes e verificáveis por observadores não
comprometidos com o governo atual mediante a publicação integral das atas. Até
o momento em que escrevo estas linhas, isso não aconteceu. É justamente o
respeito à soberania do povo venezuelano, e os efeitos que a diáspora forçada
de parte importante desse povo provocou, que nos leva a exigir transparência.
Nem subordinações, nem cálculos. Princípios. Pelo bem dos venezuelanos comuns,
de toda a América Latina, e além das brigas de adjetivos, esperamos que a
vontade do povo venezuelano seja respeitada, cumprindo com os padrões básicos
da democracia", completou.
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Saiba mais: o governo do presidente da Venezuela,
Nicolás Maduro, expulsou todo o corpo diplomático das embaixadas de Argentina,
Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai. Representantes
dos sete países exigiram divulgação das atas eleitorais pelo Ministério Público
venezuelano, uma cobrança que aconteceu de forma hostil, não diplomática,
segundo o governo de Nicolás Maduro, reeleito presidente.
O Conselho Nacional
Eleitoral (CNE) afirmou nesta segunda-feira (29) que o presidente venezuelano
conseguiu se reeleger, com 51,2% dos votos, para um novo mandato, de seis anos
(2025-2031). O opositor Edmundo González teve 44%, mas seus aliados disseram que
70% dos eleitores votaram nele.
Se o atual presidente
terminar o seu novo mandato, ele terá ficado por 17 anos na Presidência da
Venezuela. O número é superior ao tempo em que seu antecessor Hugo Chávez ficou
no poder (14 anos).
Fonte: BBC News Brasil/Brasil
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