8 de cada 10 clubes de tiro no Brasil estão
a menos de 1 km de escolas
Na rua em que as
filhas de Pedro estudam na Vila Prudente, zona leste de São Paulo, existem dois
clubes de tiro. Um deles divide muro com a escola. O outro fica a 500m de
distância, uma caminhada de sete minutos.
“Por várias, mas
várias vezes mesmo, houve bate boca entre pais de alunos e os chamados CACs,
sempre armados em frente ao clube, ou bem próximo”, me disse Pedro, que pediu
para não ser identificado, pois teme pela segurança de sua família.
Segundo ele, no
horário de saída da escola, em que a rua fica movimentada devido ao embarque e
desembarque dos alunos, é a receita certa para a confusão. “Os frequentadores
do clube quase sempre se dirigem até os seus carros com armas em punho ou de
maneira ostensiva”.
A situação vivida por
Pedro é comum. A cada quatro clubes de tiro no Brasil, três estão a menos de um
quilômetro de escolas e instituições de ensino, segundo uma análise inédita
realizada pelo Intercept Brasil.
Geolocalizamos os
endereços dos 2.386 clubes de tiro que têm permissão do Exército para atuar no
Brasil e cruzamos esses pontos com as coordenadas geográficas de todas as
escolas brasileiras. O resultado: 1.847 clubes de tiro ficam a menos de 1 km de
distância das escolas, especialmente nas maiores capitais brasileiras.
São Paulo é a cidade
com maior número de escolas perto de clubes de tiro no Brasil. Há 808 escolas
no raio de 1km ao redor de 54 clubes, e mais da metade delas conta com ensino
infantil. Apenas dois clubes registrados na cidade não têm escolas por perto.
Uma escola particular
na Mooca tem cinco clubes de tiro a cerca de 800m. Outras 21 têm quatro clubes
de tiro próximos, incluindo a Escola Estadual Theodoro de Moraes, na zona
leste. Há um clube de tiro a 86m do portão onde seus quase 300 alunos, inclusive
do ensino infantil, entram e saem.
Veja nos mapas abaixo
como se distribuem os clubes de tiro nas dez capitais brasileiras com mais
escolas nas proximidades:
Os clubes que ficam a
menos de 1 quilômetro de escolas correspondem a 77% dos clubes existentes no
Brasil, ou mais de três a cada quatro. Em algumas capitais brasileiras, como
Porto Alegre, Fortaleza e Natal, todos os clubes de tiro têm ao menos uma escola
nas imediações.
Hoje, esses clubes
estão em situação ilegal por um decreto do governo federal editado em julho de
2023, que proibiu estabelecimentos de tiro num raio de 1 quilômetro de
instituições de ensino. Na mesma canetada, o governo Lula também restringiu o
porte, permitindo apenas armas sem munição e no trajeto entre a casa do
atirador e o clube de tiro.
Mas isso pode mudar: a
Câmara de Deputados aprovou no fim de maio um projeto de decreto legislativo
que susta essa restrição. Se o projeto passar no Senado, esses clubes terão
carta branca para continuar operando na vizinhança de escolas, creches e universidades.
A justificativa do
autor do projeto, deputado Ismael Alexandrino, do PSD de Goiás, ele mesmo um
atirador esportivo, foi a de que o decreto prejudica a prática do tiro
esportivo ao “inviabilizar a permanência de entidades de clubes de tiro já
consolidadas”. O argumento engrossa o coro de grupos armamentistas de que as
mudanças implementadas no governo Lula “destruiriam” o setor.
Agora, com a mudança,
Pedro pensa em tirar as filhas da escola em que estudam há anos. Ele teme que
uma briga de trânsito ou uma tentativa de roubo ao clube acabe em tiroteio,
como ocorreu em frente a um clube de tiro na mesma região em 2018.
• ‘Parecem metralhadoras’
A escola onde Marcio
dá aulas, na região metropolitana de São Luís, no Maranhão, fica ao lado de uma
avenida movimentada, com corredor de ônibus. Ainda assim, é possível ouvir o
barulho de tiros sendo disparados em um estande de tiro que fica do outro lado
da avenida, a 300m da escola. Vizinha à escola de Marcio, há ainda uma outra
instituição de ensino.
Ao Intercept, Marcio,
que também pediu para não ser identificado por medo de represálias, disse que
embora não sejam em um volume absurdo, os estampidos atrapalham um pouco.
“Só gera aqueles
comentários pelos meninos: ‘parece metralhadora’ ou ‘éguas, agora foi alto’.
Ele disse que o barulho é pior aos sábados, dia de maior movimento no clube.
Aos sábados, professores e docentes trabalham na escola e, eventualmente,
alunos participam de atividades.
Só o barulho já pode
ter um impacto importante no desenvolvimento de crianças, explicou ao Intercept
o advogado Pedro Mendes, do Instituto Alana. “Nós temos que reconhecer crianças
enquanto pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento, mais suscetíveis a
influências externas”, disse Mendes. Os ambientes que a criança frequenta, as
pessoas ao redor e os estímulos serão determinantes para essa vida da vida e
para as próximas, explicou.
Ter um clube, com
propaganda e barulho de tiros, nas proximidades da escola – um lugar que
crianças frequentam quase todos os dias – também pode levar a uma normalização
de uma lógica bélica, armamentista, explicou Mendes. “Ela passa a entender que
esse é o normal da sociedade, quando na verdade não é”.
A socióloga Carolina
Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz, enumera três riscos
principais na proximidade de estabelecimentos de tiro com escolas.
Existe o risco de uma
bala perdida atingir a escola ou uma pessoa, há o impacto acústico que pode
atrapalhar o processo de aprendizagem dos alunos e, por fim, existe um possível
estímulo que poderia levar as crianças a se interessarem pelo universo das armas
ao serem expostas diariamente a clubes de tiro ostensivamente identificados.
Os dados analisados
pelo Intercept mostram que, mesmo que o raio de restrição a clubes de tiro
fosse muito reduzido – digamos, para 300 m em torno das escolas –, ainda assim
haveria 1.172 clubes de tiro na ilegalidade, no Brasil inteiro.
Isso representa 49%
dos clubes autorizados a funcionar. Num raio perigosamente próximo, a 100
metros das escolas, ainda haveria 271 clubes.
Entidades da sociedade
civil como o Sou da Paz entendem que o fechamento de clubes teria um impacto
econômico, por isso a posição defendida por eles neste momento é mais por uma
fiscalização e regulação mais eficiente.
“O que a gente quer é
que os donos de clube sejam responsáveis ao estarem ao lado de estabelecimentos
de ensino, sobretudo escolas municipais, estaduais ou particulares, se
comprometem a garantir a máxima segurança possível”, disse Carolina Ricardo, do
Sou da Paz.
Para a socióloga, a
falta de uma fiscalização adequada por parte do Exército faz com que os clubes
operem sem atender a requisitos mínimos de segurança. Ela cita como exemplo “a
quantidade enorme de armas vendidas para as pessoas com antecedentes criminais,
condenadas por homicídio e outros”.
O Tribunal de Contas
da União divulgou relatório de auditoria, em maio deste ano, que apontou
fragilidades no controle pelo Exército do acesso a armas de fogo. O órgão “foi
incapaz de fornecer dados confiáveis relacionados à quantidade de vistorias e
fiscalizações de CACs e de entidades de tiro”, diz um trecho do documento.
• O ‘decreto da vingança’
A derrubada da
restrição de distância atende em cheio aos interesses do lobby pró-armas no
Brasil. Desde a troca de governos, no início de 2023, grupos armamentistas
vinham criticando as medidas tomadas pelo governo Lula que retomam um controle
mais rígido na política armamentista.
Segundo Carolina
Ricardo, era esperado que o lobby pró-armas tivesse uma atuação forte. “O que
não era esperado era o baixo protagonismo do governo na defesa da política”.
Falando no púlpito da
Câmara dos Deputados rodeado de nomes conhecidos da extrema-direita como Julia
Zanatta, do PL catarinense, e Bia Kicis, do PL do Distrito Federal, o deputado
federal Marcos Pollon, PL do Mato Grosso do Sul, disse estar emocionado com a
aprovação do PDL.
“Pela primeira vez
desde que tomei posse, eu poderei repousar a cabeça no travesseiro”, disse
Pollon, advogado que fundou o Pró-Armas, movimento armamentista inspirado no
National Rifle Association, o NRA dos Estados Unidos.
Em seus discursos,
deputados do PL agradeceram e parabenizaram Pollon pelo trabalho no âmbito do
projeto de decreto legislativo. Em seu Instagram, Pollon comemorou o “fim do
decreto da vingança”.
Pollon é figurinha
carimbada do lobby armamentista. Mesmo antes de ser eleito para a Câmara, o
advogado já circulava pelos corredores do Congresso Nacional exercendo
influência sobre os trabalhos legislativos e, graças à proximidade com a
família Bolsonaro, tinha entrada até mesmo com diretores de órgãos federais
como a Polícia Rodoviária Federal.
Como o PDL 206/2024,
existem dezenas de proposições que tentam fazer frente às medidas do governo
federal para retomar o controle na política de armas. Desde o início da atual
legislatura, foram apresentados 72 projetos de lei e projetos de decreto legislativo
que tratam do tema de armas. Metade são de autoria de deputados do PL.
Fonte: Por Laís
Martins e Marcelo Soares, em The Intercept
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