Para uma
transição verde, desmercantilize a eletricidade
Nos
dias inebriantes de 2018-2020, a política climática sofreu uma mudança
acentuada. Com Donald Trump na presidência, e após os fracassos da tecnocracia
que precificou o carbono no governo Obama, um movimento se uniu em torno da
ideia de um programa de empregos e investimento liderado pelo setor público,
denominado New Deal Verde. A referência histórica ao New Deal não foi
acidental: este é o período em que o governo dos EUA assumiu um papel central
na economia porque os capitalistas se recusaram, em grande parte, a investir.
As ideias de livre mercado foram completamente desacreditadas na sequência da
depressão econômica e do desemprego em massa.
Crucial
para o período subsequente do capitalismo social-democrata foi o papel do
governo como investidor. O Estado tinha capacidade fiscal e perspectivas de
longo prazo para se envolver no que o historiador Robert D. Leighninger chama
de “ investimento público de longo prazo”. Dado que o mundo
ainda depende cerca de 80% dos combustíveis fósseis, a questão da
descarbonização é em grande parte uma questão de investimento e infraestruturas
de longo prazo. Parecia óbvio que o investimento do setor público teria de
impulsionar uma transição verde.
No
entanto, aqui estamos em 2024 e parece que muitos se esqueceram desta premissa
básica do New Deal Verde. Ao assumir o cargo, a administração Biden afirmou que
queria adotar um compromisso “de todo o governo” para lidar com a crise
climática. Mas, sob a liderança do ex-aluno da BlackRock, Brian
Deese, a abordagem centrou o setor privado e não o setor público no
desafio do investimento.
Tal
abordagem culminou com a Lei de Redução da Inflação (IRA). Apesar de toda a
crítica dos funcionários da administração e dos especialistas liberais sobre a
política industrial, o IRA se assenta em grande parte na premissa de confiar no
setor privado, com generosos créditos fiscais, para fornecer investimentos
à escala histórica mundial necessária para a transição verde. Embora alguns
possam rotular o IRA de “pós-neoliberal”, ele mantém a fé neoliberal de que os
entes privados – sejam consumidores ambientalmente conscientes ou investidores
em energia verde – farão as escolhas certas se receberem os incentivos
adequados; nenhuma coerção ou planejamento público é necessária.
Neste
contexto, o novo livro do geógrafo Brett Christophers, The
Price Is Wrong: Why Capitalism Won’t Save the Planet, não poderia ser mais
importante. O livro argumenta de forma contundente e convincente que, quando se
trata de energias renováveis, não podemos confiar que o setor privado investirá
na escala e velocidade necessárias.
Mas
a contribuição marcante do livro é a forma como Christophers apresenta o
argumento. Embora tenha havido recentemente uma cacofonia de vozes entre
ambientalistas e especialistas em política celebrando a queda vertiginosa
dos preços da energia solar e eólica, Christophers oferece uma perspectiva
mais profunda: ele nos lembra que o investimento capitalista é impulsionado não
pelo preço ou custo da energia, mas sim por sua rentabilidade. É
neste terreno que Christophers mostra que os investimentos em energia solar e
eólica ainda não conseguem gerar o nível de retorno atraente para os
investidores. (E como noticiou o Financial Times , o capital concorda em grande parte!)
Este
elegante argumento por si só é motivo suficiente para que todos leiam o livro,
mas há duas outras conquistas significativas que merecem ser mencionadas de
imediato. Primeiro, ele elucida de maneira extremamente útil a infraestrutura
elétrica e os mercados. Esses sistemas são incrivelmente complexos, mas
Christophers não presume que o leitor entenda a complexidade e a expõe de
maneira clara. Em segundo lugar, o livro apresenta um âmbito geográfico
surpreendentemente amplo, percorrendo todo o mundo para explicar padrões de
investimento na China, na Índia, na Austrália, nos Estados Unidos e na Europa.
Se as alterações climáticas são um problema global e a eletricidade
o setor chave da descarbonização, ele nos oferece uma avaliação
verdadeiramente global.
Outro
ponto forte do livro é seu foco na economia política do investimento solar e
eólico. Mas descarbonizar a eletricidade é mais complicado do que simplesmente
construir infraestruturas de energia solar e eólica. Como argumento abaixo, a
esquerda socialista precisa de uma compreensão mais holística da eletricidade
como infraestrutura socializada – reivindicando um “modelo de utilidade” – para
combater adequadamente os mercados neoliberais que Christophers detalha com
precisão especializada.
·
Energias renováveis baratas, lucros baixos
Baseando-se
em geógrafos marxistas como Doreen Massey e David Harvey , o trabalho
anterior de Christophers mostrou as consequências devastadoras de uma economia
capitalista cada vez mais impulsionada por “rentistas” financeiros que procuram
rendimentos elevados acima de tudo – mesmo quando engolem os
“ ativos ” fundamentais para a reprodução da vida humana e um futuro
planetário viável (habitação, terra e, o tema de The Price Is Wrong ,
energia).
Christophers
corrige aqueles que chama de “discípulos do custo [renovável] baixo”, ao levar
a sério as implicações mais amplas dos seus argumentos. Desde que muitos
assumiram que energias renováveis “baratas” significa que são agora mais “competitivas” em relação à energia dos combustíveis fósseis, os críticos apontaram para outras explicações não econômicas para
a escala relativamente fraca da penetração desse tipo de energia (por exemplo, o poder político dos gigantes dos combustíveis fósseis, ou a falta de
planejamento elétrico para integrar
energias renováveis na rede).
Christophers
não nega que estas forças mais políticas desempenhem o seu papel, mas argumenta
que a economia ainda coloca barreiras básicas ao investimento, apesar de toda a
ostentação de custos ou preços baixos. De acordo com Christophers, o obstáculo
central é “o lucro esperado: o lucro que uma entidade que planeja um
investimento comercial em nova capacidade solar ou eólica espera poder obter em
virtude desse investimento”.
Para
Christophers, o foco equivocado no preço barato das energias renováveis reflete a essência da economia neoclássica, com a sua fixação na oferta, na procura e nos custos marginais. Teoricamente,
ele se baseia mais na tradição da economia política clássica – como Karl Marx, cuja definição de capital como M-D-M’ coloca o lucro no centro. Ele também se baseia em Anwar Shaikh, cujo trabalho, “ao contrário do neoclassicismo
do lado da oferta ou do keynesianismo do lado da procura”, implanta o que ele chama de teoria do
capitalismo do “lado do lucro”.
Com
estas ferramentas teóricas, Christophers explica sistematicamente por que razão
o investimento em energias renováveis continua a
ser pouco atraente para o capital, recorrendo em particular à sua pesquisa sobre os capitalistas de quem
os promotores de energias renováveis dependem para obter financiamento. Ele chama o financiamento de “ponto de estrangulamento final” que determina se os projetos renováveis serão efetivados.
Um
dos aspectos mais valiosos do livro é a demolição completa do que ele chama de
“fetiche LCOE”. LCOE refere-se ao conceito estatístico “custo nivelado de
energia” (levelized cost of energy, em inglês), que permite aos
analistas comparar os custos de vida de diferentes tecnologias energéticas (e
muitas vezes ignorarem os seus valores de utilização ou capacidades
materiais fundamentalmente diferentes). O declínio do LCOE das energias renováveis
levou a comentários muito entusiasmados –
até mesmo de analistas sérios como Adam Tooze, que Christophers cita como tendo
dito “a energia solar e eólica oferecem energia a um custo imbativelmente
baixo” – sobre o inevitável dilúvio da penetração solar e eólica.
Christophers
mostra como tal medida não leva em conta os “custos de sistema” reais do
fornecimento de energia renovável a partir de áreas remotas (com custos de
terreno associados) e os custos de armazenamento e backup de “firmar” a sua
intermitência. Embora o LCOE seja apresentado por inúmeros especialistas em
política nos debates sobre a transição energética, Christophers diz que não é
um fator para o capital: “Michael Cembalest, do JP Morgan, descreveu a métrica
como uma ‘irrelevância prática’. Ele estava expressando uma posição amplamente
defendida entre seus pares no setor financeiro.” Christophers também explica de
maneira habilidosa como, independentemente do custo, as diferentes formas de
geração de eletricidade são “maçãs e laranjas” em termos de oportunidades de
receitas disponíveis. Em última análise, o “fetiche LCOE” é semelhante
ao fetiche da mercadoria na forma como ofusca as relações materiais e
sociais de produção.
Outro
fator chave que levou a uma incerteza substancial sobre a “rentabilidade
esperada” do investimento em energias renováveis é a volatilidade dos preços dos mercados de eletricidade recentemente reestruturados.
Christophers fornece um dos modelos explicativos mais claros que encontrei
sobre como os preços reais da
eletricidade são formados. Para
resumir a história, o gerador com os
custos marginais mais elevados tende a definir o “preço de equilíbrio do mercado” para todos os geradores. Na maioria dos mercados,
isto é impulsionado pelo preço volátil do gás natural; portanto, o preço que os
geradores podem receber pela sua eletricidade pode variar enormemente.
Christophers conta como, em agosto de 2022, na Suécia, enormes picos de preços
do gás natural (e condições de vento desfavoráveis) permitiram que o preço da
eletricidade disparasse de 38 €/MWh no dia 21 para 372 €/MWh o dia 22.
Christophers
explica também como as políticas governamentais destinadas a atrair
investimento em energias renováveis conduzem
muitas vezes a uma enxurrada de participantes no mercado, o que acidentalmente
resulta na superprodução de energia solar e eólica e na queda de preços e lucros.
Mais uma vez, vemos que a necessidade de lucro dos capitalistas significa que
as energias renováveis mais baratas não conduzem necessariamente a um aumento sustentado do
investimento.
Me
pergunto se existe outra razão mais fundamental pela qual os capitalistas
investiram tão pouco em energia solar e eólica. A análise de Andreas
Malm em Fossil
Capital de quase uma década atrás, na qual Christophers se baseia
por vezes, argumentava que os capitalistas podem mais facilmente encerrar,
mercantilizar, controlar e “armazenar” recursos energéticos como combustíveis
fósseis (carvão, petróleo e gás). Em contraste, os “recursos de fluxo” – como a
energia hídrica, na discussão de Malm, e a energia solar e eólica hoje – são
notoriamente difíceis para os capitalistas delimitarem o acesso privado. (Malm
sugere que o aproveitamento da energia hídrica exigiria infraestruturas
coletivas pelas quais os capitalistas não querem pagar.)
O
que Christophers chama de “presentes gratuitos da natureza” – tempo ensolarado
ou ventoso – leva ao resultado paradoxal de que quando as condições são mais
favoráveis é precisamente o momento em que todos os
geradores capitalistas procurarão vender a sua energia solar/eólica no mercado, deprimindo assim os preços e os lucros. A abundância na natureza é um problema para um mercado capitalista dependente da escassez socialmente produzida.
Embora
muitos tenham caracterizado The Price is Wrong como um caso de “propriedade pública”, é
mais uma análise dos problemas com a propriedade privada e decisões de
investimento baseadas em sinais de preços marginais. No entanto, Christophers
termina o livro com alguns gestos em direção ao potencial do poder público,
discutindo especificamente a perspectiva de investimento público em energias
renováveis na Build
Public Renewables Legislation do Estado de Nova Iorque.
·
Eletricidade é infraestrutura social
Ofoco
do livro na energia solar e eólica é um grande ponto forte. A precisão
analítica sobre um objeto central de análise permite que Christophers forneça
detalhes incríveis sobre a complexa economia política do investimento solar e
eólico e seu papel nos mercados de eletricidade recentemente reestruturados.
Mas este foco restrito é uma faca de dois gumes. Eu diria que a fixação na
energia solar e eólica também é a maior fraqueza do livro.
Christophers
deixa claro que não escolheu esse ponto por causa de suas preferências pessoais
por determinada tecnologia de geração de eletricidade. Seu raciocínio é
diferente:
[O
livro] adota esse foco porquê. . . os poderes constituídos. . . aparentemente
decidiram que o caminho a seguir será predominantemente solar e eólico,
devidamente apoiado por uma combinação de mecanismos de armazenamento de
eletricidade e uma ou mais fontes alternativas de geração de carbono zero –
como a nuclear – para quando o sol não brilha e o vento não sopra.
Poderíamos
questionar se é metodologicamente correto basear a análise nas preferências dos
“poderes constituídos”, mas o problema maior é que Christophers não especifica
quem são exatamente os “poderes constituídos”. Claramente, o livro se concentra
nos blocos cruciais de poder nas finanças, mas existem outros “poderes
constituídos” – cientistas do sistema energético modelando o que é
necessário para uma “descarbonização profunda”, sindicatos observando
que os empregos na energia solar e eólica tendem a ser uma droga, e até
mesmo a administração Biden com a sua abordagem “todas as opções acima” à
eletricidade – que reconhecem que a descarbonização da rede é um desafio muito
mais amplo do que simplesmente construir parques solares e eólicos.
Na
verdade, Christophers reconhece isto ao mencionar o armazenamento e outras
fontes de carbono zero, como a nuclear. Mas temo que o enfoque analítico do
livro sobre a razão pela qual o capital não está construindo parques solares e
eólicos omite a questão crítica da descarbonização do setor eléctrico. Não se
trata de construir um único tipo de tecnologia de geração de energia, mas de
reconstruir toda uma infraestrutura social .
O
estudioso jurídico William Boyd explica : “[A rede elétrica dos EUA]
foi descrita como a máquina mais complexa já construída”. De acordo com
a Energy Information Administration, é na verdade um fluxo pulsante de
elétrons, “composto por mais de 7.300 usinas de energia, quase 160.000 milhas
de linhas de energia de alta tensão e milhões de quilômetros de linhas de
energia de baixa tensão e transformadores de distribuição, conectando 145
milhões de clientes em todo o país.” Esta “máquina” deve ser sempre mantida em
equilíbrio, onde a oferta se equaliza com a procura. Isto significa que a
eletricidade, por necessidade física, requer níveis quase soviéticos de
planejamento central e monitorização estatística e projeção das necessidades
sociais (ou seja, a demanda por eletricidade).
Portanto,
mesmo que o capital obtivesse enormes lucros construindo geradores solares e
eólicos, isso seria apenas uma peça do maior quebra-cabeças infraestrutural da
construção de outras empresas de geração, linhas de transmissão de longa
distância e infraestruturas de distribuição com “carbono zero” – e, a maioria
dos especialistas reconhece, algum grau de energia de gás natural com
captura e sequestro de carbono (uma tecnologia em si que exigirá a sua
própria infraestrutura de gasodutos de capital fixo em grande escala). Na verdade, muitas destas tecnologias
necessárias, como a captura de carbono e a energia nuclear, são bloqueadas pela
mesma dinâmica que Christophers explica para a energia solar e eólica: os
investidores não as consideram suficientemente lucrativas.
Christophers
analisa muitas destas tecnologias necessárias para complementar a intermitência
da energia solar e eólica, e discute os “custos do sistema” não integrados em
energias renováveis LCOE supostamente baratas. Mas, no geral, ele não presta muita atenção à questão de quem deve
pagar por estes custos do sistema, e como o desafio de atribuir estes custos é
também uma grande barreira à descarbonização da rede. Esta não é uma das
barreiras “políticas” ou de “planejamento” que Christophers deixa de lado, mas
precisamente a barreira econômica do financiamento do investimento em
infraestruturas.
O
principal problema de investimento é comum quando se trata de infraestruturas
de “longo alcance” – os custos devem ser socializados. Há uma razão pela qual o
setor público assumiu o sistema rodoviário interestadual, a infraestrutura de
saneamento de água e, em muitos países, como relata Christophers, a rede
elétrica.
Este
problema dos custos das infraestruturas sociais está atormentando a recente
tentativa dos Estados Unidos de desenvolver energia limpa. Os promotores
privados que pretendem construir parques solares e eólicos devem submeter as
suas propostas aos operadores da rede que gerem algo chamado “fila de
interligação” (num processo de aprovação que demora em média cinco anos).
Um resultado deste processo é que é solicitado aos promotores privados o
pagamento da totalidade dos custos de atualização da “interligação” e, sem
surpresa, muitas vezes eles se recusam. Em alguns países europeus, como os
Países Baixos e a Alemanha, os promotores de projetos eólicos offshore se
beneficiam do fato de o governo socializar inteiramente os custos das
atualizações de transmissão.
“Não
se trata de construir um único tipo de tecnologia de geração – trata-se de
reconstruir toda uma infraestrutura social.”
Christophers
chega exatamente à teoria certa para explicar este problema: a teoria das
“mercadorias fictícias” de Karl Polanyi. Segundo Polanyi, a terra, o trabalho e
o dinheiro são mercadorias fictícias na medida em que não são
produzidos como mercadorias, mas, no entanto, tratados como tal.
A
eletricidade é uma mercadoria fictícia por excelência : é uma
infraestrutura partilhada que não pode ser armazenada, mas
concebemos sistemas elaborados para a comprar e vender como se fosse
um mero pacote de widgets. Como Gretchen Bakke colocou em seu excelente
livro The Grid: The Fraying Wires Between Americans and Our Energy
Future, a eletricidade e uma mercadoria comum, como uma banana, “poderiam
muito bem ter se originado em diferentes universos físicos”, mas os esforços
para comercializar a eletricidade significam que “nós agora os tratemos e
negociemos de maneira quase idêntica.” Mas isto implica que não podemos tratar
o investimento em eletricidade como qualquer mercadoria antiga, e a distinção
analítica entre preço e lucro, embora extremamente útil, pode levar à impressão
de que Christophers está de fato tratando a eletricidade dessa forma. (É
instrutivo que, num exemplo que ilustra como estruturas de custos mais baixos
não conduzem a lucros mais elevados, Christophers utilize a mercadoria
decididamente não fictícia de um smartphone.)
Por
outras palavras, se apenas prestarmos atenção aos lucros esperados dos
produtores de eletricidade isolados, podemos perder de vista as elaboradas
estruturas jurídicas e institucionais – estruturas que Christophers explica bem
– que tornam possível, em primeiro lugar, a venda de eletricidade com fins
lucrativos. A descarbonização da eletricidade dependerá menos do fato de um
único tipo de produção de energia ser barato ou rentável (ou ambos) e mais da
transformação fundamental dessas estruturas subjacentes.
Teria
sido bom se Christophers levasse Polanyi um passo adiante através
da teoria da “segunda contradição do capitalismo” do marxista-polaniano James O’Connor. O’Connor argumenta que o capital privado, pela sua própria
natureza, tende a minar as “condições de produção”. A maioria das pessoas se
concentra na discussão de O’Connor sobre “condições ecológicas”, mas ele também
fala sobre “condições comunitárias” – isto é, infraestruturas sociais. O caso
da falha da empresa de serviços públicos PG&E na modernização de uma
linha de transmissão com quase cem anos de idade, que conduziu a incêndios
florestais catastróficos e mortais, é um exemplo notável. Mas o facto de os
promotores privados de energias renováveis não pagarem pelas infraestruturas de rede
social necessárias é outro problema.
Existem
outras razões pelas quais o foco de Christophers na energia solar e eólica é
politicamente importante. Em primeiro lugar, esse enfoque pode ameaçar
exacerbar a divisão na esquerda que Fred Stafford e eu
identificamos entre, por um lado, uma esquerda verde (liderada por ONGs e
acadêmicos) que pensa que a descarbonização consiste apenas em aumentar a
energia solar e eólica e, por outro lado, os sindicatos, que estão mais
preocupados com um conjunto mais amplo de tecnologias (nuclear, captura de
carbono e hidrogênio) necessárias para a descarbonização “profunda” da rede e
para abordar as preocupações maiores de confiabilidade. The Price Is
Wrong tem muito a ver com capital, não com trabalho, e não se encontra
nele quase nada sobre os verdadeiros trabalhadores e sindicatos do sistema
elétrico.
Em
segundo lugar, existem preocupações mais práticas. Embora Christophers esteja
certo ao afirmar que os “poderes constituídos” esperam que a descarbonização
seja predominantemente realizada através da tecnologia solar e eólica, grande
parte desta expectativa se baseia em modelos e não na realidade. No mundo real,
não há exemplo de uma rede realmente existente que seja capaz de obter a grande
maioria da sua energia a partir de energia solar e eólica intermitente.
(Um relatório recente do operador de rede MISO afirma que surgem
“desafios significativos” e que é necessário “pensamento transformador” sobre
uma penetração de apenas 30 por cento.)
A
geração solar e eólica pode ser bastante elevada quando as
condições são adequadas (e bastante baixa quando não são), mas,
em última análise, qualquer rede com energia solar e eólica substancial também
depende de alguma combinação de importações de outras regiões, hidrelétricas,
nucleares e, acima de tudo, geração de gás natural para manter as luzes acesas.
Como observa Christophers, grande parte da “expectativa” de que isto será
resolvido depende de avanços competitivos ainda não realizados no “armazenamento de longa duração”,
particularmente para lidar com a incômoda realidade do inverno. Enquanto
esperamos para resolver muitos desafios restantes de uso do solo e construção
de transmissão para uma rede viável baseada em energia solar e eólica, vale a
pena lembrar que muitos países como a França e a Suécia já alcançaram a
descarbonização quase completa da rede através de uma forte
dose de investimento público em energia hidrelétrica e nuclear.
Terceiro,
como detalha Christophers, fora do caso notável da China, o desenvolvimento
solar e eólico é em si um produto da reestruturação neoliberal do mercado de
eletricidade (“desregulamentação” ou “desagregação”), que tentou dividir grande
parte do sistema de rede em pequenas partes e submetê-las à concorrência
privada. Em outras palavras, os promotores solares e eólicos são geralmente
capitalistas isolados — “produtores independentes de energia” — sem mandato
público ou interesse em investir em eletricidade como infraestrutura.
Christophers
salienta que no mundo “em desenvolvimento”, apenas 28% das energias renováveis são propriedade pública; nos países “desenvolvidos” ricos esse número é de 4%. Como ele diz,
com razão, estes capitalistas
não foram “concebidos para fazer o trabalho” de descarbonização. Mas um foco exclusivo apenas neles deixa
a pessoa insegura sobre quem poderia fazer o trabalho.
·
Recuperando a eletricidade como serviço
público
Um
foco analítico estrito também pode levar a visões estritas de alternativas.
Grande parte da política de esquerda em torno da eletricidade é centrada na
necessidade de propriedade pública. Mas se procurarmos colocar apenas um
aspecto da rede sob propriedade pública de forma isolada, subordinando o resto
à concorrência e a investimentos descoordenados, não conseguiremos avançar para
uma política mais holística da eletricidade como infraestrutura
social.
Christophers
aponta para a campanha bem sucedida que permitiu à Autoridade de
Energia de Nova Iorque (NYPA) “Construir Energias Renováveis Públicas” como uma possível solução para a falta de rentabilidade do desenvolvimento privado de
energias renováveis. A legislação é uma grande conquista para a propriedade pública no setor elétrico. Para canalizar o sóbrio realismo de Christopher, contudo,
deveríamos questionar
seriamente as perspectivas
de uma rápida descarbonização com um promotor público competindo num mar de “produtores de energia
independentes” privados, tudo no contexto do mercado atacadista
desregulamentado de Nova Iorque.
É
por isso que Stafford e eu argumentamos recentemente que a esquerda
precisa não apenas defender o poder público em abstratamente, mas sim recuperar
a eletricidade como um sistema de “utilidade” mais amplo (como gás, água,
estradas de ferro, e assim por diante). Emergindo dos juristas progressistas do
início do século XX, a lei da “utilidade pública” argumentava que havia certos
serviços essenciais (isto é, infraestruturas sociais) demasiado importantes
para serem deixados apenas aos mercados.
No
contexto dos EUA, é surpreendente como o modelo de utilidade pública nos dá
realmente uma resposta direta ao problema identificado em The Price Is
Wrong . Os serviços públicos de propriedade de investidores privados —
sujeitos à regulamentação pelas comissões de serviços públicos (PUCs) — têm
taxas garantidas de retorno sobre os investimentos se
aprovados por essas comissões. A questão dos lucros esperados simplesmente não
é um problema no setor de serviços públicos. E a fonte de lucros não é
simplesmente a compressão do trabalho e a subestimação da concorrência, mas o
desenvolvimento de infraestruturas. Além disso, os serviços públicos costumavam
ser “monopólios naturais” verticalmente integrados, possuindo e planejando toda
a infraestrutura física ao longo da produção, transmissão e distribuição.
O
exemplo histórico das empresas de eletricidade mostra que quando precisamos de
um crescimento maciço de infraestruturas socializadas – e não nos enganemos, os
especialistas acreditam que a descarbonização exigirá um “crescimento de carga”
massivo – os capitalistas comuns não estão à altura das tarefas. Christophers
tem razão ao apontar para o fato de que as empresas de serviços públicos
verticalmente integradas têm ativos irrecuperáveis em infraestruturas fósseis e, portanto, têm interesse em mantê-los. Mas também estão especialmente
equipados para construir (e lucrar com) novos
investimentos. Tal como na era pós-guerra de crescimento da eletricidade,
precisamos de diferentes estruturas institucionais orientadas para o
investimento socializado e o crescimento para a descarbonização do século XXI.
No
contexto dos EUA, nos raros casos em que as empresas de serviços públicos são
autorizadas a construir produção de energia limpa, estão se mostrando bastante
capazes. Embora a inflação dos custos da cadeia de abastecimento tenha levado
os estados a cancelar contratos privados de energia eólica offshore, a
empresa regulamentada Dominion está avançando com o seu próprio
grande projeto. Uma lei única que permite que as concessionárias construam
estruturas para captação de energia solar fez com que a Flórida se tornasse
o estado que mais cresce no desenvolvimento desse ramo energético. E
foram apenas empresas de serviços públicos como a Tennessee Valley
Authority e a Georgia Power que concluíram efetivamente as
centrais nucleares neste século. Finalmente, o IRA reverte os
desincentivos de décadas para que os serviços públicos e as entidades de poder
público se beneficiassem plenamente dos incentivos à energia limpa, tornando
isso mais, e não menos, provável nos próximos anos.
A
noção de que a eletricidade como um todo é um serviço público foi
sistematicamente destruída no último meio século de desregulamentação e
separação, mas uma política elétrica socialista deve colocar a inversão deste
processo no centro do nosso projeto político. Christophers afirma que “o mundo.
. . está se aproximando, e não se afastando, dos mercados spot de
eletricidade.” Infelizmente, este é provavelmente o caso, mas embora os
estudiosos tenham procurado compreender o mundo, a questão é mudá -lo. Me
parece que a política elétrica se dirige para outro ponto crucial da história
mundial, como o início dos anos 1900 ou 1970, onde todo o modelo deve ser
repensado.
Para
ser justo, muito disto está fora do âmbito expressamente declarado da análise
de Christophers. E, certamente, ele está correto ao afirmar que qualquer mundo
descarbonizado incluirá um aumento considerável na geração solar e eólica. Ao
nos fornecer uma análise tão analiticamente focada sobre a razão pela qual o
investimento em energia solar e eólica não está se desenvolvendo à escala e
velocidade exigidas, The Price Is Wrong levará os leitores a
pensar por si próprios sobre que outros arranjos poderiam ser mais adequados
para o trabalho.
Fonte:
Por Matt Huber, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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