Como a
'tecnologia' do filtro de barro está ajudando a combater o calor extremo
Nandita
Iyer odeia água gelada. E, no entanto, quando as temperaturas dispararam na
Índia em maio deste ano, até mesmo na sua cidade natal, Bengaluru, atingindo um
recorde, a autora do livro de receitas e blogueira de culinária sabia que
precisava fazer algo para se manter hidratada.
Foi
então que ela recorreu a um dos seus acessórios favoritos na infância: o matka
– um pote de barro composto por dois tipos diferentes de argila e projetado
para funcionar como bebedouro em casa.
“Tenho
dentes sensíveis, então beber água refrigerada é um choque para o meu sistema;
o matka mantém a água fria o suficiente para que bebê-la seja reconfortante”,
diz ela, lembrando como um pano de musselina molhado em cima do pote ajudou a
diminuir ainda mais a temperatura da água.
"Lembrei
como essa água naturalmente gelada era agradável nos verões quentes de Mumbai
quando eu era criança, então, quando o clima de Bengaluru começou a se
comportar como o de Mumbai, decidi comprar um pote semelhante."
A
matka tem raízes antigas. Quando a água enche o pote de barro, ela penetra em
todos os poros e fendas. À medida que a água presa dentro desses poros evapora,
o processo retira lentamente o calor latente da água interna. O pote esfria
depois de perder o calor por evaporação e assim a água restante dentro dela
também esfria.
Durante
séculos, portanto, as zonas rurais da Índia recorreram a potes de barro para as
suas necessidades de arrefecimento – com os primeiros registos conhecidos a
remontarem à civilização Harappa, há mais de 3.000 anos. No Brasil, os filtros
de barro são uma tradição nas cozinhas, sendo usados até hoje para estocar água
limpa e fresca.
Como
alguém que cozinha muito e autora do livro Everyday Superfoods (“Superalimentos
no dia a dia”, em tradução livre) Iyer diz que quase não há espaço em sua
geladeira para resfriar várias garrafas de água, então sua matka acaba
economizando um espaço precioso também.
Mas
nos últimos anos, à medida que a Índia enfrenta um calor extremo, a necessidade
de frio se torna mais urgente. As ondas de calor na Índia neste verão foram
implacáveis, com uma estação meteorológica em Delhi registrando temperaturas de
até 52,3°C, o que pode ser um recorde, se confirmada. De 2019 a 2023, a
necessidade de ar condicionado em dias muito quentes fez com que a demanda
média de energia do país aumentasse 28%.
Com
soluções de refrigeração agora vitais para a sobrevivência, a antiga aplicação
do barro está encontrando um novo uso muito além das cozinhas domésticas.
• Vida nova
para uma tecnologia antiga
Terracota
significa "terra cozida" em italiano e teve destaque no mundo antigo,
desde a cerâmica chinesa e grega até a arte egípcia. Em português, é o nome
dado à argila cozida no forno. Em 2014, Monish Siripurapu, fundador e principal
arquiteto da CoolAnt, parte do Ant Studios perto de Nova Delhi, se viu
recorrendo a esse material antigo com novos olhos.
Um
de seus clientes, um fabricante de eletrônicos, teve um problema. Um gerador a
diesel nas suas instalações expelia tanto ar quente no espaço entre dois
edifícios que o calor era insuportável para os funcionários, causando dores de
cabeça e náuseas. Siripurapu queria ver se a terracota, combinada com novas
técnicas, poderia ajudar: “Mantendo a natureza como foco central em todo o meu
trabalho, quis explorar tecnologias emergentes”.
A
ideia do matka passou pela cabeça de Siripurapu. "A água no pote de barro
é naturalmente fria porque, quando evapora, suga o calor do pote. Mas e se eu
invertesse esse processo? Me ocorreu que poderíamos resfriar o ar ao redor do
barro da mesma maneira", ele diz. No projeto do Siripurapu, a água
reciclada é bombeada sobre a terracota. À medida que a água evapora de dentro
dos poros do barro, ela esfria o ar ao seu redor.
Chamado
de Beehive, entre 800 e 900 cones de barro foram feitos à mão e organizados
pela CoolAnt em um design de favos de mel, montado em torno de uma estrutura de
aço inoxidável. “Empilhar os cones como uma colmeia melhora a área de
superfície necessária para um resfriamento eficaz”, diz Siripurapu.
Desde
a sua primeira instalação em colmeias, a empresa criou 35 torres de
resfriamento em escolas, espaços públicos, aeroportos e edifícios comerciais em
todo o país, de Pune a Jaipur. Além do desenho da colmeia, eles também
experimentaram designs que empilham o barro em diferentes formatos, e até mesmo
um que não utiliza água.
Os
pesquisadores também fizeram experiências com protótipos de resfriamento de
barro. Estudantes de engenharia mecânica de Maharashtra, na Índia, construíram
um ar condicionado de barro, que usava um ventilador para sugar o ar e
expulsá-lo sobre a argila molhada. Isso resultou em uma queda de 1,5°C na
temperatura ambiente, relataram.
As
empresas de arquitetura na Índia afirmam que as suas instalações em barro
produziram quedas de temperatura muito mais significativas – acima dos 6ºC, e
podem arrefecer espaços exteriores e edifícios inteiros de forma mais natural.
Por
meio de vídeos enviados por clientes e visitas ao local, a CoolAnt afirma ter
registrado uma queda de até 15°C, usando designs como o Beehive. “Foi muito
melhor do que esperávamos”, diz Siripurapu. No entanto, essa queda na
temperatura depende das temperaturas do bulbo úmido de uma área (uma medida do
calor e da umidade na atmosfera).
Se
já estiver muito úmido, não pode haver uma queda tão acentuada, porque o
potencial de evaporação é menor, observa Siripurapu. (Pense no céu sobre uma
cidade como uma esponja molhada – se já houver água demais, não é possível
absorver mais água.) E, no entanto, mesmo uma queda de alguns graus na
temperatura pode fazer uma diferença crucial.
• Edifícios
que respiram
O
Ant Studio também está longe de ser a única empresa de arquitetura que utiliza
o barro como solução de resfriamento.
"Nos
últimos 100 anos, as tecnologias modernas revolucionaram o nosso arrefecimento
do ar. No entanto, tiveram um impacto negativo no nosso ambiente", afirma
Avinash Ankalge, arquiteto e um dos co-fundadores do A Threshold, um escritório
de arquitetura com sede em Bengaluru que tem experimentando argila reciclada
para construir sistemas de refrigeração passivos para edifícios.
“Estamos
recorrendo ao barro em muitos dos nossos projetos recentes”, diz Ankalge.
"Nós usamos isso de muitas maneiras." Por exemplo, telhas recuperadas
de uma fábrica próxima foram usadas para criar telas de terracota. Os designs
são inspirados na natureza e envolvem os edifícios como uma pele protetora, diz
ele.
Em
um edifício comercial no sul de Bengaluru, um dos projetos do A Threshold para
espécie de treliça de barro foi instalado no lado sul do edifício, para
proteger do sol.
“Entre
o meio dia e as três da tarde, quando o sol está mais intenso, a sombra do
ladrilho superior é projetada sobre o fundo, garantindo que o brilho não
penetre no edifício”, diz Ankalge. "Chamamos isso de princípio de
sombreamento mútuo. Isso foi usado em muitas cidades indianas mais antigas no
Rajastão - especialmente em Jaipur e Jaisalmer. Foi usado em casas, palácios,
em todos os lugares - há quase 500 anos."
Em
projetos modernos que utilizam este princípio, o edifício principal começa de
91 a 121 cm depois da tela de barro. Os ladrilhos estão dispostos como o bico
aberto de um pássaro, o de cima projetando sombras profundas. Um sistema de
sprinklers – como aqueles que são ativados em prédios em casos de incêndio,
para jorrar água - suspenso, programado para funcionar nos horários mais
quentes do dia, garante o resfriamento evaporativo.
"A
terracota, sendo um material natural, é sempre dominada pela vegetação, o que
tem um efeito refrescante adicional. Ela sustenta a vida e uma biodiversidade
saudável. Ainda há muita luz fluindo dentro de casa, mas não calor", diz
Ankalge. "Estamos criando um microclima dentro de uma casa – e moderando o
calor extremo lá fora. É também uma tela acústica, porque corta o ruído externo
e proporciona privacidade aos ocupantes.".
Em
uma fazenda a 40 km de Bengaluru, o escritório A Threshold fez experiências com
tijolos de barro como alternativa aos tijolos normais para resfriamento. São
mais baratos e melhores para o meio ambiente, diz Ankalge. Os tijolos de
terracota assam entre 600 e 700°C, metade das temperaturas necessárias para
assar tijolos normais, e observaram uma queda de temperatura de 5-8°C dentro
dos edifícios resultantes.
• Insights
artesanais
Na
sua missão de refrescar os espaços, os escritórios de arquitetura também contam
com a ajuda dos artesãos de argila indígenas da Índia.
Um
deles é Dolan Kundu Mondal, que mora em Calcutá e cuja obra de arte em argila
ganhou um prêmio nacional. Quando criança, Mondal passava os dias coletando
argila na margem do rio para moldar pequenas bonecas, animais, pássaros e
cabanas. A casa dela também foi construída com barro, mas sem nenhuma
impermeabilização, então a cada temporal, a casa ficava completamente
destruída. “Minha avó, minha irmã mais velha e eu cortávamos pedaços de palha
para misturar no barro e reconstruíamos a casa para morarmos.”
Mondal
diz que sempre sonhou em esculpir algo novo com argila e recentemente recebeu
uma oferta para trabalhar em uma tela de terracota para uma casa. “Desde muito
cedo sempre vivi no abraço do barro e do barro no meu abraço”, diz Mondal.
Soumen
Maity, vice-presidente de alternativas de desenvolvimento, um think tank com
sede em Gurugram, no norte da Índia, diz que é animador que as construções em
barro proporcionem meios de subsistência aos artesãos rurais – mas existem
algumas desvantagens.
As
estruturas adicionais de argila nos edifícios – como telas e painéis – podem
ocupar muito espaço em cidades já apertadas. Além disso, a eficiência do
resfriamento pode diminuir com o tempo: os microporos do barro podem ficar
obstruídos por depósitos minerais, tornando essenciais a limpeza e a manutenção
meticulosa.
Se
a argila for usada mais amplamente como material de construção e fabricada em
escala nas fábricas, então também poderá haver outro custo oculto: mais energia
necessária para o transporte, aponta Niyati Gupta, associado sênior em Nova
Delhi do programa climático do think tank Instituto de Recursos Mundiais.
“As
telhas de barro industriais tendem a ser mais pesadas do que os tijolos de
argila convencionais que os artesãos fabricam à mão, e consumirão solo fértil
[que de outra forma poderia ser usado para a agricultura]”, diz Gupta.
Ladrilhos de barro fabricados localmente e cozidos no local oferecem uma
solução mais ecológica, mas à medida que as necessidades de resfriamento
aumentam, a produção em escala industrial pode ser inevitável.
Para
quem não tem planos de construção, armazenar água em uma simples matka continua
a ser algo básico no verão da Índia – uma homenagem ao antigo costume.
Nandita
Iyer menciona em seu livro Everyday Superfoods como potes de barro são usados
na culinária e que garrafas de barro de um litro com tampa agora também são
usadas para armazenar água.
Para
manter as garrafas de água de barro em boas condições, Iyer aconselha:
“Esfregue bem [os utensílios de barro] a cada dois ou três dias com uma escova
de coco e coloque-os ao ar livre, ao sol, para evitar que acumulem musgo”.
Fonte:
BBC Future
Nenhum comentário:
Postar um comentário