Maria
Aparecida A. Abreu: ‘Sobre o direito reprodutivo das mulheres’
Na
última semana, o debate político brasileiro teve como principal foco o PL
1904/2024, que rapidamente ganhou o nome de “PL dos estupradores” e mobilizou a
campanha “Criança não é mãe”. Diante da contundência da reação da sociedade
brasileira, seja nas ruas, seja nas redes sociais e no próprio site da Câmara
dos Deputados, o acordo entre a bancada evangélica e o presidente da Câmara,
Arthur Lira, para que tenha sido aprovado o regime de urgência na tramitação do
PL, perdeu sua força.
Contudo,
a iniciativa do projeto não pode ser esquecida. A história brasileira recente
mostrou que, na política parlamentar, urros legislativos de desumanidade não
são apenas frutos de rompantes, mas uma prática estratégica para demonstração
de poder. Com frequência, a sexualidade, ou o direito reprodutivo das mulheres,
e em especial o direito à prática segura do aborto, é o principal tema
utilizado para espalhar o horror no debate político. A pergunta é, por que,
dessa vez, foi este o PL apresentado?
Este
artigo se soma aos esforços de muitas pesquisadoras (e pesquisadores que, tenho
certeza, não se incomodarão com o plural no feminino) em estabelecer balizas
humanas e razoáveis ao debate sobre o tema do PL, que não pode ser deixado de
lado.
Atualmente,
no Código Penal brasileiro, cuja parte que define os tipos criminais é de 1940,
prevê possibilidades em que o aborto constitui uma prática legal. Tais
possibilidades são as situações em que a saúde da mãe está em risco ou em que a
gravidez foi decorrente de estupro, a qualquer tempo de gravidez.
O
PL 1904 propõe que, após 22 semanas, tanto a mulher grávida quanto o
profissional de saúde que auxiliar a prática sejam criminalizados pela prática
do aborto, ainda que a gravidez seja decorrente de estupro.
O
projeto é de autoria de Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e contou com mais 31
assinaturas, nesta ordem:
1
Dep. Sóstenes Cavalcante (PL/RJ)
2
Dep. Evair Vieira de Melo (PP/ES)
3
Dep. Delegado Paulo Bilynskyj (PL/SP)
4 Dep. Gilvan da Federal (PL/ES)
5 Dep. Filipe Martins (PL/TO)
6 Dep. Dr. Luiz Ovando (PP/MS)
7 Dep. Bibo Nunes (PL/RS)
8 Dep. Mario Frias (PL/SP)
9 Dep. Delegado Palumbo (MDB/SP)
10 Dep. Ely Santos (REPUBLIC/SP)
11 Dep. Simone Marquetto (MDB/SP)
12 Dep. Cristiane Lopes (UNIÃO/RO)
13 Dep. Renilce
Nicodemos (MDB/PA)
14
Dep. Abilio Brunini (PL/MT)
15
Dep. Franciane Bayer
(REPUBLIC/RS)
16 Dep. Carla Zambelli (PL/SP)
17 Dep. Dr.
Frederico (PRD/MG)
18
Dep. Greyce Elias (AVANTE/MG)
19
Dep. Delegado Ramagem (PL/RJ)
20
Dep. Bia Kicis (PL/DF)
21 Dep. Dayany Bittencourt (UNIÃO/CE)
22 Dep. Lêda
Borges (PSDB/GO) CÂMARA DOS DEPUTADOS
23 Dep. Junio Amaral (PL/MG)
24
Dep. Coronel Fernanda (PL/MT)
25
Dep. Pastor Eurico (PL/PE)
26
Dep. Capitão Alden (PL/BA)
27
Dep. Cezinha de Madureira (PSD/SP)
28
Dep. Eduardo Bolsonaro (PL/SP)
29
Dep. Pezenti (MDB/SC)
30
Dep. Julia Zanatta (PL/SC)
31
Dep. Nikolas Ferreira (PL/MG)
32 Dep. Eli Borges (PL/TO)
A
primeira justificativa da proposta invoca a pretensão de dar ao texto do Código
Penal de 1940 um texto que estivesse mais adequado à vontade do legislador da
época. Essa invocação, para além da extemporaneidade, conta com uma tentativa
de atualização fazendo referência a um programa do apresentador Ratinho de
1998, a partir de notícias de fatos ocorridos em observância a um protocolo
médico válido àquela época.
Depois
dessa tentativa de atualização, outros casos são narrados, de forma
fragmentada, e é mencionada uma tentativa legislativa de descriminalizar o
aborto – na redação do projeto de Lei, “legalizar o aborto”.
Em
seguida, menciona-se um documento do Ministério Público de Santa Catarina, de
2023, em que há a seguinte recomendação: “Quando há viabilidade fetal,
orienta-se que seja realizado o procedimento de indução de assistolia fetal
previamente à indução do parto, cabendo aos serviços organizarem-se para que
este procedimento seja garantido”.
A
partir de tal documento, o temor do propositor do PL é o de que: “Os
Ministérios Públicos, em todo o Brasil, provavelmente se unirão para forçar os
hospitais que realizam procedimentos de aborto a seguirem estas recomendações.
Qualquer gestante poderá realizar um aborto, em qualquer idade gestacional,
bastando afirmar haver sido vítima de violência, sem necessidade de apresentar
provas ou documentos.
Que
poderia acontecer, depois disto, nesta sequência? O próximo passo já desponta
no horizonte, através da ADPF 442, que tramita no Supremo Tribunal Federal,
para a qual a então Ministra Relatora Rosa Weber já apresentou o seu voto, no
final de 2023”.
Fica
claro, então, em que debate está inserido o Projeto de Lei: no da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 442, proposta pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL), que contou com um exímio voto da ex-ministra do
STF, Rosa Weber, que colocou em pauta o julgamento dessa ADPF antes de sua
aposentadoria.
De
forma sintética, a argumentação de Rosa Weber estava centrada na dignidade da
vida e no caráter constitucional do princípio da dignidade humana e de seu
atrelamento na proteção à vida, com fundamentos tanto em dados empíricos,
quanto nos autores constitucionais contemporâneos.
Na
Justificativa do PL 1904, busca-se confrontar esse princípio com o do respeito
do direito absoluto à vida. Para isso, é invocada a Declaração de Independência
estadunidense e a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, invocando que esta
foi pactuada para evitar que governos nazistas relativizassem o direito à vida
ou o restringissem de qualquer forma.
Em
suma, o propositor do Projeto de Lei e seus cossignatários defendem, com
argumentos um tanto obtusos, que o direito absoluto à vida tem peso maior que o
direito à vida digna, que diz respeito, inclusive, à vedação de qualquer
procedimento que signifique tortura.
A
deslealdade da argumentação dessa Justificativa tem de ser denunciada à
exaustão, pois ela evidencia a inconstitucionalidade do Projeto de Lei, que
está sendo requerida justamente por parlamentares e já foi apontada pela Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) em parecer aprovado por seu Conselho Federal.
A
sociedade brasileira atual tem como referência jurídico-normativa principal a
Constituição de 1988 e suas diversas emendas, bem como sua interpretação dada
pelo Supremo Tribunal Federal.
Em
relação ao aborto, o movimento que a sociedade brasileira vem demandando e vem
sendo reconhecido pelo STF, com ministros que são indicados por presidentes da
República eleitos majoritariamente, é de ampliar a autonomia da mulher sobre o
seu corpo, e não de restringi-la. Qualquer tentativa em sentido contrário é de
índole punitiva e de aversão às mulheres.
Esta
índole ficou revelada nas reações do autor do Projeto de Lei às críticas a ele
destinadas:
(i) propor um projeto de lei para aumentar
a pena de estupradores;
(ii) ressaltar que meninas não serão presas,
mas condenadas a medidas socioeducativas, como se essa pena fosse razoável para
alguém que foi vítima de violência.
Esse
tipo de reação é de alguém que pretende propor normas em um mundo abstrato, que
não se sustentam quando confrontados com a realidade contemporânea,
especialmente a brasileira.
Ao
contrário do que é apontado na Justificativa, a declaração de independência
estadunidense, de 1776, não é a única base do constitucionalismo moderno. A
nação estadunidense que se fundou em 1787 admitia, entre outras práticas, a
escravidão. No século XVIII, o direito ao voto, em nenhuma parte do mundo, era
universal.
A
humanidade caminhou muito desde então, na direção da inclusão democrática e da
não tolerância à violência, sendo a pior delas a tortura. A tortura é
manifestação de crueldade, atributo humano que agrava qualquer relação social,
qualquer crime.
Não
por acaso, a Organização Mundial de Saúde equipara a obrigatoriedade da
gravidez em caso de estupro à tortura e a Ordem dos Advogados do Brasil, em
parecer aprovado pelo Conselho Federal da entidade e publicado no dia 17/06/24,
considera da mesma forma as medidas propostas pelo PL 1904.
Diferentemente
do que é apontado na Justificativa, o constitucionalismo brasileiro também, ou
até mais, é influenciado pelo constitucionalismo francês que, diferentemente do
estadunidense, recentemente, abrigou o direito das mulheres à interrupção
voluntária de gravidez. Tal mudança constitucional foi celebrada no último dia
8 de março, Dia Internacional das Mulheres.
Ainda
no debate francês, em 1974, Simone Veil, uma mulher judia, sobrevivente do
Holocausto, então ministra da saúde, discursou para a assembleia nacional: “é
também com a maior das convicções que defenderei um projeto por muito tempo
refletido e deliberado pela totalidade do governo, um projeto que, segundo os
próprios termos do presidente da República, tem como objetivo ‘pôr fim a uma
situação de desordem e injustiça e trazer uma solução proporcional e humana a
um dos problemas mais difíceis do nosso tempo’. (…) Eu afirmo com toda a minha
convicção: o aborto deve continuar a ser a exceção, o recurso último para
situações sem solução. Mas como tolerá-lo sem que ele perca esse caráter de
exceção, sem que a sociedade pareça encorajá-lo? Eu gostaria, antes de tudo, de
compartilhar com os senhores uma convicção de mulher – peço desculpas por
fazê-lo diante desta Assembleia quase exclusivamente composta por homens:
nenhuma mulher recorre com alegria ao aborto. Basta escutar as mulheres. O
aborto sempre é um drama e permanecerá sempre um drama”.
E,
depois de apontar as diversas evidências da realidade francesa da época, Veil
concluiu seu discurso, que antecipou a aprovação da descriminalização do
aborto, pela assembleia nacional francesa: “As novas gerações nos surpreendem,
às vezes, por serem tão diferentes de nós; nós mesmos as educamos de maneira
distinta da que fomos educados. Mas essa juventude é corajosa, tão capaz quanto
as outras de entusiasmo e sacrifício. Saibamos confiar nela para conservar a
vida seu valor supremo”.
Pois
o que o PL 1904 pretende é, ao contrário de confiar, roubar das meninas a sua
juventude e a sua infância, tornando seus traumas e as violências de que são
vítimas ainda mais insuportáveis. Essa
ausência de confiança, contudo, não parece ser partilhada por boa parte da
sociedade brasileira, ao menos a que tem se manifestado nos fóruns públicos de
debates sobre o tema.
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Às 19h22 do dia 17/06/2024, a enquete aberta no site da Câmara dos Deputados
foi aberta uma enquete a respeito do PL 1904.
Na
enquete, foram disponibilizadas cinco alternativas de manifestação sobre o PL:
concordo totalmente, concordo na maior parte, estou indeciso, discordo na maior
parte, discordo totalmente. As respostas se concentraram nos extremos: discordo
totalmente, com 12% das manifestações (119.036); e concordo totalmente, com 88%
das manifestações (191.242), totalizando mais de 200 mil manifestações.
O
ponto positivo do PL indicado no site que teve mais apoio, com 13.435 curtidas,
foi o seguinte: “Impede assassinato de bebês/fetos por causa de um crime não
cometido por eles”.
Em
relação a este ponto, algumas considerações têm de ser feitas. Nenhuma lei, de
qualquer tipo, impede condutas de alguém. O que se pode fazer, por meio de lei,
é estimular, orientar e, no limite, penalizar uma conduta. A pena tem função
moral, no sentido de classificar uma conduta como inaceitável, como também pode
desestimular comportamentos.
No
comentário acima, uma preocupação é indicada: a de que alguém (um bebê/feto)
seja assassinado em razão de um crime não cometido por ele próprio. Ora, mas
para que esse alguém, que ainda é, corporalmente, um devir, sobreviva, outrem
tem de sacrificar-se de forma desumana. A partir do que sugere a lei: é
razoável exigir que alguém violentada seja ainda obrigada a suportar as
consequências da violência da qual foi vítima até o fim de sua vida? É razoável
obrigar uma vítima de estupro gestar por nove meses um embrião/feto decorrente
dessa violência?
Outro
comentário, este a respeito do ponto negativo do PL é o seguinte: “Esse PL
misógino tenta criminalizar mulheres que recorrem à interrupção da gravidez
como último recurso. O aborto é uma questão de saúde pública e não religiosa.
As mais penalizadas são as mulheres pobres, que não dispõem de recursos para
pagar clínicas seguras. Muitas mulheres que recorrem ao aborto são menores de
idade, vítimas de violência e estupro. O PL é uma violência contra as mulheres.
É inacreditável que os deputados gastem recursos públicos para atacar os
direitos das mulheres”.
Este
comentário, com 191.242 curtidas, sintetiza os diversos argumentos apresentados
por feministas e pesquisadoras do tema. Ele indica que parte substantiva da
sociedade está informada e percebe o descalabro que uma proposição como o PL
1904 representa. Aos argumentos apresentados neste comentário, pode-se
acrescentar que, se for considerada a raça predominante das vítimas de estupro,
o PL é ainda racista, pois a maioria das vítimas é negra. Este ponto foi
reconhecido também pela OAB, no parecer aprovado por seu Conselho Federal.
O
debate sobre este PL pode ser a oportunidade que o Brasil tanto necessita para
que tenhamos uma discussão madura sobre aborto e sobre a dignidade da
vida. Este debate é extremamente
importante neste ano, de eleições municipais.
Como
exemplo dessa importância, em São José dos Campos, município do interior do
estado de São Paulo, com população de 697.054 pessoas, também na última semana,
houve a notícia do recolhimento nas escolas do livro “Meninas Sonhadoras,
Mulheres Cientistas”, de autoria de Flávia Martins de Carvalho. Durante uma
sessão na Câmara Municipal, no dia 11 de junho, o vereador Thomaz Henrique (do
PL, mesmo partido do propositor do PL 1904 e de vários cossignatários) cobrou a
retirada do livro das escolas ao afirmar que uma das referências do livro é
Débora Diniz, defensora do aborto.
Débora
Diniz, uma das pesquisadoras mais relevantes a respeito do tema do aborto no
país e uma ativista incansável na defesa do direito das mulheres à assistência
adequada em todos os procedimentos que envolvem o aborto, foi o principal alvo
dessa perseguição política intolerável.
É
de Débora Diniz uma postagem que explica a razoabilidade de que não se
criminalize a busca pela interrupção voluntária de gravidez após 22 semanas de
gestação: “Ouço essa pergunta de todos os lados. Por que garantir o aborto por
estupro ou risco de vida em diferentes tempos da gravidez? Uma revisão da
literatura de uma década, publicada no British Medical Journal, mostrou que 90%
dos abortos são realizados antes o limite das doze semanas de atraso menstrual.
Repito: 9 em cada 10 abortos são realizados nas primeiras semanas. O mapeamento
foi feito em países onde o aborto é descriminalizado ou legalizado e há acesso
ao aborto por medicamentos. O estudo descreve como “países ricos”.
“Nove
em cada dez mulheres buscam o aborto logo após saberem que estão grávidas. Esse
é também o resultado que encontramos na primeira edição da Pesquisa Nacional do
Aborto qualitativa no Brasil: as mulheres realizavam o aborto, mesmo na
clandestinidade, até a décima quarta semana. Então, por que falarmos em
períodos mais avançados? Porque são as situações mais dramáticas, como as de
meninas violentadas na casa e mantidas sob controle do estuprador; casos de
violência doméstica com estupro marital; risco de vida decorrente da gravidez”.
“Além
disso, as meninas e mulheres enfrentam barreiras injustas para chegar aos
serviços. Médicos duvidam de sua palavra, as intimidam, há faltas de serviço e
as vítimas são obrigadas a viajar entre estados. Há falta de acesso à
informação, além do trauma do estupro. Mesmo que um aborto mais raro no
contexto da magnitude do aborto, o aborto tardio é o que se configura como um
cuidado em saúde extremo. É o que cuidará de uma menina miúda vítima de
violência; o que salvará uma mulher para que possa se manter viva, seja para
não morrer ou ainda cuidar de outros filhos. Use a ciência para este debate
público. Não podemos cair na animosidade do pânico moral: é sobre a vida de
meninas”. (Referência para o
artigo: Review: Trends in the method and gestational age of abortion in
high-income countries doi 10.1136/bmjsrh-2018-200149 Journal: BMJ Sexual &
Reproductive Health).
O
ataque à dignidade das mulheres se dá em escala nacional por meio de Projetos
de Lei que violam direitos das mulheres já conquistados, mas também de forma
pulverizada e capilarizada em legislativos municipais e estaduais. Na busca de
uma guerra moral cujas derrotadas são sempre as mulheres, parlamentares de
todos os níveis apostam no retrocesso do país sob a roupagem de partidos
políticos.
Por
conta desse cenário, não podemos deixar de lado a crueldade e a deslealdade que
tal Projeto de Lei e a índole de seus propositores invoca. Ressaltar a
importância da dignidade da vida, do afastamento de um punitivismo cruel e da
razoabilidade na proposição de legislação, em um país que tanto precisa de
justiça social, é medida de urgência. Urgente é inviabilizar todas as formas
indignas de existência e de fazer política.
Nosso
poder legislativo, em todas as suas esferas, precisa ser arejado e apostar no
futuro. Nossa sociedade demanda avanços e direitos ampliados e efetivados, não
mais culpa e mais punição. Aos políticos profissionais, ao invés da posição de
oportunistas, de algozes e de chantagistas, é necessária a posição da
responsabilidade. Essas são algumas das necessidades a serem consideradas nas
eleições municipais que se aproximam.
Fonte:
A Terra é Redonda
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