Como
Conselho Federal de Medicina se tornou pivô dos embates sobre aborto legal no
Brasil
A
nova onda de debates sobre o direito ao aborto legal no Brasil tem um poderoso
protagonista, o Conselho Federal de Medicina (CFM), uma entidade com orçamento
milionário e poder para cassar registros profissionais que sofre acusações de
ter alinhamento político.
Foi
uma resolução do CFM restringindo o aborto após 22 semanas, emitida em março e
logo depois neutralizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que catapultou a
mobilização pela criação de um projeto de lei no Congresso sobre o tema.
O
texto em tramitação na Câmara prevê penas de até 20 anos de prisão para quem
fizer um aborto após 22 semanas de gestação, até mesmo em casos de estupro,
situação em que a interrupção da gravidez é permitida em lei no país.
O
tema voltou a jogar luz sobre a atuação do CFM, provocando divisão na classe
médica e acusações de alinhamento a grupos políticos de direita, como ocorreu
durante a pandemia do coronavírus.
Naquela
ocasião, o CFM defendeu o direito de médicos prescreverem medicamentos sem
eficácia comprovada contra a covid-19, ecoando bandeira do então presidente
Jair Bolsonaro.
Dessa
vez, o conselho recebeu fortes críticas após aprovar, em março deste ano, uma
resolução que impedia o uso da assistolia fetal em abortos em idade gestacional
avançada.
A
técnica, recomendada pela Organização Mundial de Saúde para esses casos de
interrupção da gravidez, consiste em usar medicamentos para interromper os
batimentos do feto, garantido que ele não seja retirado do útero com sinais
vitais.
Fim
do WhatsApp
Críticos
do procedimento dizem que ele consiste num "assassinato de bebês" e
que deveria ser protegida a vida do feto. Já seus defensores dizem que a
técnica é um procedimento ético para realizar abortos após 22 semanas de
gestação e que é uma violência obrigar a gestante a manter uma gravidez
decorrente de estupro.
A
resolução sobre aborto, porém, foi rapidamente suspensa por uma decisão liminar
do ministro STF Alexandre de Moraes, em uma ação movida pelo PSOL. Ele entendeu
que o CFM extrapolou sua competência ao fixar limites para o aborto legal, que
não estão previstos na lei brasileira.
Mas
quais são as competências legais do Conselho Federal de Medicina?
O
CFM não é uma associação de profissionais privada. A entidade é uma autarquia
criada por lei em 1957 para regular e fiscalizar a atuação da categoria no
país.
Entenda
abaixo as prerrogativas do conselho, as críticas dentro e fora da classe médica
e a reação no Congresso provocada pela resolução sobre aborto suspensa pelo
Supremo.
• O que diz o CFM e seus críticos sobre
a resolução
A
resolução do CFM foi alvo de críticas de associações médicas e da área da
saúde, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação
Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), e a Sociedade
Brasileira de Bioética.
Já
a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em
inglês) publicou uma manifestação na segunda-feira (17/6) em que "expressa
profunda preocupação com a recente resolução emitida pelo Conselho Federal de
Medicina do Brasil que proíbe a indução de assistolia para abortos induzidos
legalmente".
"Essa
proibição no Brasil é antiética e contradiz as evidências médicas",
continuou a federação internacional, da qual faz parte a Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Em
manifestação por escrito enviada à BBC News Brasil, o presidente do CFM, o
obstetra José Hiran, negou que o Conselho esteja alinhado ao campo político da
direita.
"Trata-se
de um órgão de Estado, que, como tal, não serve a Governos. Em 68 anos de
funcionamento, o CFM tem sido instrumento para oferecer à população brasileira
acesso a serviços e atendimento de qualidade. O compromisso do CFM é com a
medicina, a saúde e a vida, trabalhando sempre atento aos limites e
possibilidades colocados pela legislação, a ciência e a ética", afirmou.
Questionado
sobre o posicionamento do CFM sobre o projeto de lei que criminaliza o aborto
acima de 22 semanas com penas de até 20 anos de prisão, Hiran respondeu que
"o Conselho Federal de Medicina não contribui com a elaboração desse
PL" e que "o tema ainda está sendo analisado internamente".
"De
qualquer modo, entendemos que este é um assunto que deve ser discutido no
âmbito do Congresso Nacional, que deve ouvir todos os segmentos envolvidos,
promovendo um amplo debate com a sociedade sobre o tema", disse ainda.
Na
segunda-feira, Hiran participou de uma sessão temática no plenário do Senado
sobre o tema. Ele disse, segundo a Folha de S. Paulo, que na interrupção de
gravidez após 22 semanas, mesmo em caso de estupro, a “autonomia da mulher
esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a
vida de qualquer um, mesmo um ser humano formado com 22 semanas".
• Projeto de lei com 'reação' do
Congresso à derrubada da norma do CFM
O
deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) afirma que a derrubada da resolução pelo
STF gerou uma "reação" do Congresso.
Foi
assim que ele e mais 32 deputados apresentaram um projeto de lei (PL 1904/2024)
que tenta equiparar abortos realizados no Brasil após 22 semanas de gestação ao
crime de homicídio, até mesmo em casos de estupro. Pela proposta, a gestante e
o médico que realizar o procedimento poderá ter que cumprir pena de até 20 anos
de prisão.
"Na
verdade, o projeto é uma reação à ação do PSOL junto ao Supremo Tribunal
Federal. Assistolia é um procedimento médico que é colocar uma injeção no
coração do bebê e ele tem um infarto fulminante. Nós estamos tratando aqui não
de embriões no primeiro, no segundo mês, nós estamos tratando de vidas com 5
meses e 2 semanas. São as 22 semanas", disse, ao programa Fantástico, da
TV Globo.
A
proposta teve sua tramitação acelerada, inicialmente, com apoio do presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mas acabou sendo freada após a reação negativa
de parte da sociedade.
O
conselheiro Raphael Câmara Medeiros Parente, médico obstetra e autor da
resolução contra o aborto aprovada no CFM, reconhece que a iniciativa estimulou
a atuação do Congresso, mas afirma que o Conselho "não tem nada a ver com
esse PL".
"O
ministro Alexandre de Moraes [ao derrubar a resolução do CFM] não falou que era
função do Congresso [legislar sobre o direito ao aborto], que não era nossa? O
que o Congresso fez? Pegou para eles e fizeram. Só que o PL é bem além do que a
nossa resolução propõe", disse à BBC News Brasil.
Câmara,
que foi secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde no
governo Jair Bolsonaro, afirma que não concorda com o que chamou de "pena
surreal" de até 20 anos estabelecida no PL e que teme que a proposta possa
dar margem para criminalizar mesmo médicos que realizem abortos em situações em
que há risco de morte para a gestante.
Por
outro lado, ele defende que o Congresso aprove outra proposta que proíba a
interrupção da gestação acima de 22 semanas em casos de estupro, transformando
em lei o que previa a resolução do CFM suspensa pelo STF.
Além
disso, o CFM tenta reverter a decisão de Alexandre de Moraes, mas ainda não há
data para o caso ser julgado pelo plenário da corte.
Para
Câmara, não se pode falar em aborto após 22 semanas porque a partir dessa idade
gestacional o feto já tem viabilidade fetal, ou seja, já pode sobreviver fora
do útero.
Apesar
disso, segundo o portal do Colégio de Obstetras e Ginecologistas, associação
dos Estados Unidos, a maioria dos fetos que nascem no intervalo de 23 a 25
semanas de gestação e sobrevivem "enfrenta deficiências graves, muitas
vezes permanentes".
Câmara,
porém, defende que, caso a gestante vítima de estupro não queira manter a
gravidez e o feto tenha mais de 22 semanas, seja feito um parto antecipado.
"O
foco da resolução é proibir matar bebê acima de 22 semanas com assistolia
fetal", defendeu.
"O
que seria feito [após as 22 semanas]? Você tira o bebê e ele vai ser cuidado.
Se a mulher não quiser ficar com ele, vai para adoção. É simples", disse
também.
Para
o ginecologista Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e um
dos poucos médicos que hoje realizam abortos legais no país após as 22 semanas
de gestação, seria uma “violência obrigar uma mulher estuprada a dar à luz um
filho com sérias sequelas.”
Ele
nega que a assistolia fetal seja dolorosa para o feto, como simulou uma atriz
em sessão sobre a assistolia fetal no Senado Federal, realizada na
segunda-feira (17/6) com participação do CFM.
"Mentem
quando dizem que a assistolia é dolorosa. Doloroso é um prematuro ir para a
UTI, entubar, fazer dissecção de veia, fazer cirurgia. Isso é doloroso",
afirmou à BBC News Brasil.
• Quem faz aborto após 22 semanas?
Segundo
Moraes, a maioria dos abortos são realizados antes de 22 semanas e, os que
ultrapassam esse período, demoram a ser feitos pela dificuldade das mulheres em
ter acesso ao aborto legal no país.
Outro
fator que contribuí para a demora são as gestações de crianças e adolescentes
vítimas de estupro, diz o médico. Nesses casos, a gestação pode demorar a ser
descoberta, seja porque a menina abusada não entende que está grávida, seja
porque ela tem medo ou vergonha de avisar a família.
Segundo
o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2023, mais de 60% das
vítimas de estupro têm até 13 anos. E, nesse grupo, 86% dos agressores são
conhecidos, sendo que 64% são familiares – o que dificulta ainda mais a
denúncia.
• CFM diz que não se opõe ao 'aborto
legal'
Em
manifestação por escrito à reportagem, o presidente do Conselho Federal de
Medicina disse que "é importante corrigir uma narrativa distorcida que
coloca o CFM como opositor ao chamado aborto legal".
"Isso
não é verdade. Nunca, a edição da Resolução CFM nº 2.378/2024 [que trata da
assistolia fetal] teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em
hospitais da rede pública. Trata-se de programa incorporado pelo Estado
brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de
acesso definidos em lei", disse ainda José Hiran.
Sua
manifestação não aborda, porém, o fato de o Código Penal brasileiro, ao
garantir o direito ao aborto no caso de estupro, não estabelecer o limite de 22
semanas, como fixa a resolução do CFM, ao proibir a assistolia fetal.
Hiran
criticou, ainda, os poucos serviços de aborto legal disponíveis no país.
"É
evidente que culpar o CFM e a Resolução pelos problemas do aborto legal no
Brasil configura uma forma de lançar cortina de fumaça sobre um debate que tem
como foco principal a proteção dos direitos da mulher e do nascituro",
respondeu à reportagem.
"Se
o governo fizesse sua parte, assegurando o funcionamento da rede do aborto
legal, o martírio das vítimas de estupro poderia ser reduzido. No entanto, os
problemas da gestão do SUS têm contribuído pela dupla penalização da mulher
violada. Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da
inoperância do Estado, por meios de seus representantes na gestão da rede de
saúde", acrescentou.
• CFM terá eleições em agosto
Como
autarquia criada por lei, o Conselho Federal de Medicina deve regular e
fiscalizar a atuação da categoria no país.
O
órgão tem poder de aprovar resoluções e pode cassar registros de médicos que
não sigam suas regras, impedindo sua atuação profissional.
A
instituição é financiada, principalmente, por taxas obrigatórias pagas pelos
mais de 600 mil médicos registrados e obteve R$ 276,6 milhões em receitas em
2023.
Um
médico tem de pagar R$ 859,00 em 2024 ao CFM (valores reajustados a cada ano),
enquanto empresas de serviços médicos têm de contribuir de acordo com o seu
capital social – para empresas com capital social maior que 10 milhões de
reais, a contribuição deste ano é de R$ 6.873.
O
órgão, que tem autonomia administrativa e financeira, é fiscalizado pelo TCU
(Tribunal de Contas da União).
A
crítica que algumas associações médicas e da área da saúde levantam contra o
CFM é que o conselho estaria atuando de forma politizada, ignorando a ciência,
seja na postura adotada na pandemia, seja agora na questão do aborto.
"Lamentavelmente,
nos últimos anos, a partir do governo passado, houve uma cooptação do conselho.
Foram eleitas pessoas que deturparam completamente a função do CFM",
crítica Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
e professora da Faculdade de Medicina da Unicamp.
"Passamos
pela vergonha de ter um conselho que defendia ivermectina para tratar
covid", disse ainda à reportagem, em referência a remédios sem eficácia
que foram usados na pandemia, com anuência do CFM.
A
última eleição para a composição do CFM foi realizada em 2019. A nova gestão,
que comandará o conselho pelos próximos cinco anos, será escolhida pelos
médicos em agosto.
Cada
Estado elege dois conselheiros federais, um efetivo e um suplente. Depois,
esses conselheiros escolhem, entre si, os que ocuparão a direção da
instituição.
Também
crítico da atual gestão, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela
Democracia (ABMMD) lançou o manifesto "Muda CFM", apoiando chapas de
oposição.
Entre
os princípios do manifesto, estão "a defesa de uma medicina baseada na
ciência" e " a independência e autonomia do CFM em relação a partidos
políticos e a governos".
Além
disso, a associação defende "a democratização das atividades do CFM, com
viabilização de amplos debates com a categoria e com instituições científicas
da saúde coletiva e da bioética em relação a temas polêmicos e sensíveis".
À
BBC News Brasil, o oncologista e médico sanitarista Arruda Bastos, integrante
da coordenação da ABMMD, acusou o CFM de adotar a resolução sobre assistolia
fetal sem debate com outras instituições.
"Discutiram
entre quatro paredes e foi feita essa resolução, contra, inclusive as
associações que congregam especialidades médicas, de ginecologia e
obstetrícia", ressaltou.
A
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)
chegou a publicar uma nota crítica a resolução do CFM, mas depois a retirou do
ar.
Segundo
o portal Metrópoles, a manifestação dizia que "a resolução não atende ao
propósito alegado de ‘proteção à vida’. Ao contrário, amplia vulnerabilidades
já existentes e expõe justamente as mulheres mais carentes e mais necessitadas
do apoio e da assistência médica".
Procurada
pela BBC News Brasil, a federação não explicou o motivo de ter tirado a nota do
seu site. Solicitada a se manifestar para a reportagem, respondeu que "não
é competência da Febrasgo manifestar-se sobre ou julgar o posicionamento de
qualquer entidade médica".
O
conselheiro Rafael Câmara minimizou as críticas de outras entidades ao CFM.
"Só
existe uma instituição no Brasil que tem legitimidade para falar pelo 600 mil
médicos do país: é o Conselho Federal de Medicina. Nós fomos eleitos para
representar os médicos. Eu, por exemplo, represento os 80.000 médicos do Rio de
Janeiro", disse.
Ele
também respondeu às críticas sobre a atuação do CFM na pandemia. Segundo
Câmara, o conselho sempre se colocou a favor da vacinação.
Ele
também disse que a instituição não se posicionou a favor de medicamentos
ineficazes contra a covid, mas defendeu a liberdade de atuação médica.
"O
parecer 04 (de 2020) simplesmente dizia que o médico poderia fazer uso da
autonomia médica para prescrever o que achasse correto", afirmou.
Segundo
o próprio CFM, esse parecer, de abril de 2020, "estabelece critérios e
condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes
com diagnóstico confirmado de covid-19".
O
documento dizia que não havia comprovação sobre a eficácia das substâncias, mas
que ela poderia ser prescrita, após o consentimento do paciente, com os devidos
esclarecimentos sobre a falta de comprovação científica e eventuais efeitos
colaterais.
Além
disso, estabelecia que, "diante da excepcionalidade da situação e durante
o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que
utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em
pacientes portadores da COVID-19".
Para
Rosana Onocko, da Abrasco, o CFM fez uma defesa incorreta da autonomia médica,
alinhado com o discurso do então presidente Bolsonaro.
"O
bom médico é obrigado a proceder de acordo com as evidências científicas.
Então, quando o CFM torna suprema a opinião do médico, quer dizer que a
liberdade do médico está por cima das evidências científicas acumulada no
planeta Terra? Isso não é possível", criticou.
Fonte:
BBC News Brasil
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