A
investida reacionária e seus limites
A
Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12), sem o registro de
votantes, o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, proposto no dia
17 de maio pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares.
Este projeto de lei equipara o aborto de uma gestação com mais de 22 semanas ao
crime de homicídio.
Com
a urgência aprovada, o projeto poderá ser votado diretamente no Plenário, sem a
necessidade de passar previamente pelas comissões da Câmara. Ele é o resultado
de uma investida do campo autodenominado conservador, porém melhor denominado
como reacionário, uma vez que se apresenta nos cenários nacionais e
internacionais sob a bandeira de restaurar os pilares da sociedade tradicional,
baseada na família patriarca.
Neste
sentido, é crucial destacar que, também no dia 17 de maio, o Supremo Tribunal
Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM)
que impede o uso de uma técnica médica (assistolia fetal) para interromper
gestações de mais de 22 semanas resultantes de estupro. A decisão provisória
foi concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF
1141).
Em
torno disso, compreendemos que no sistema patriarcal no qual estamos ainda
inseridos, os corpos situados na base da pirâmide são frequentemente
selecionados para serem sacrificados em nome de projetos de poder que não lhes
pertencem. Este sistema perpetua desigualdades ao impor sacrifícios
desproporcionais sobre cidadãos que carregam em seu ser os marcadores sociais
da diferença, cujas necessidades e direitos são frequentemente ignorados.
O
projeto de poder em questão envolve uma série de estratégias políticas
calculadas para consolidar influência e testar limites. O avanço de iniciativas
demandadas por bolsonaristas na Câmara tem sido interpretado por alguns como
uma estratégia de Arthur Lira (PP-AL) para garantir o apoio do PL, que conta
com 95 deputados, e fortalecer a escolha de seu sucessor na liderança da
Câmara. Em vista disso, é possível entender que Lira está demonstrando seu
poder e capacidade de controlar os rumos da Casa, mesmo sem o apoio do governo
e do PT.
Além
disso, essa ação também visa testar a posição do Presidente Lula sobre um
possível veto ao projeto. Ao avançar rapidamente com uma proposta controversa,
os proponentes buscam forçar o Presidente a se posicionar, o que pode ter
implicações significativas para sua base de apoio e para a opinião pública. É
importante destacar que o Palácio do Planalto tem enfrentado semanas
consecutivas de derrotas em votações ideológicas que favorecem agendas
bolsonaristas.
Neste
contexto, Villazzón (2014) infere que atores religiosos, especialmente
protestantes, mas também católicos, atuam em prol da defesa das pautas morais
como uma reação aos avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.
Machado (2015) argumenta, neste sentido, que a política pode ser utilizada como
instrumento pelos atores que mobilizam o cristianismo para realizar essa performance através
de duas frentes: (a) defesa da família tradicional (patriarcal e heterosexual),
em contraposição aos direitos LGBTQIAPN+ e à tentativa de transformação das
relações de gênero; (b) defesa da vida, fortalecendo os discursos antiaborto.
Em
torno disso, Luna e Owsiany (2019, p. 1) explicam que no Poder Legislativo “o
debate sobre aborto ocorre em termos de disputas por reivindicações de direitos
e no reconhecimento ou não de entes como sujeitos”. Contudo, como afirmado por
Judith Butler (2017), parte do problema da vida política contemporânea é que
nem todo mundo conta como sujeito.
A
criminalização do aborto, e a tentativa de deslegitimar mesmo as exceções
legais, é aqui analisada como uma forma de impedir que as mulheres exerçam
plena autonomia sobre seus corpos (Biroli, 2014), reduzindo-as a instrumento de
suporte para o desenvolvimento do feto, considerado e afirmado como pessoa
(Luna; Owsiany, 2019). Isto é, o Estado, apoiado por segmentos da sociedade e
grupos religiosos, coloca-se como detentor de certo controle e autoridade sobre
a mulher.
Frente
a isso, a estratégia do campo progressista tem se dividido em duas abordagens
distintas. Fora do governo, a esquerda tenta impor sua própria versão e
linguagem, centrada em direitos reprodutivos, direitos das minorias e
questionamento da biologia, sem diálogo ou escuta, resultando em uma arrogância
moral.
Essa
abordagem se mostra ineficaz entre os pobres, para quem a linguagem de direitos
não ressoa, levando à baixa efetividade dessa estratégia. No governo, a
esquerda evita disputas culturais e foca exclusivamente na temática econômica,
o que tem produzido resultados insatisfatórios e queda de popularidade. Essa
situação é comparável ao campo da segurança pública, onde tanto a falta de uma
abordagem abrangente quanto a ausência de uma narrativa inclusiva resultam em
desempenho fraco e perda de apoio popular.
·
Tendências e
prognósticos no contexto político brasileiro
Considerando
essa conjuntura, Mattos e Paradis (2014, p. 108) afirmaram que “as nossas
históricas forças conservadoras (especialmente as religiosas e políticas)” já
haviam identificado que essas iniciativas estavam transformando as relações
entre Estado brasileiro e sociedade civil. As autoras acertaram: mesmo com a
reeleição de Dilma Rousseff em 2014, o governo petista perdia força em parte da
sociedade civil, nos setores da burguesia e, especialmente, no campo político.
Dessa
maneira, em agosto de 2016, nossa primeira Presidenta foi impeachmada. Em 2018,
como ápice de um processo de reconfiguração de forças na sociedade civil que
deu vazão aos sentimentos e grupos conservadores, Jair Bolsonaro chegou à
presidência. Em 2022, a extrema direita é derrotada na disputa presidencial em
uma eleição apertada. Não obstante a isso, quando se trata do campo legislativo
nacional, não é possível dizer que houve uma derrota: o Congresso Nacional
permanece dominado por partidos da direita e da extrema direita.
Tanto
o Senado Federal como a Câmara dos Deputados continuam a ser presidido por seus
expoentes. Diante desse panorama, torna-se evidente a essência segregatória da
democracia brasileira (Sacchet, 2012), uma vez que a agenda parlamentar
encontra-se submetida a conservadores que integram uma elite política
hegemônica em termos de classe social, raça e gênero.
Em
conclusão, o Supremo Tribunal Federal se apresenta como o último bastião diante
de uma maioria conservadora, atuando como um poder contramajoritário, similar
ao papel desempenhado por forças resistentes durante a Segunda Guerra Mundial –
quando as constituições passaram a materializar a esperança de que um diploma
jurídico assegurasse a todos uma vida digna, pacífica e livre. Em contraste, o
parlamento se mostra vulnerável a maiorias iliberais, com o uso de expedientes
como o requerimento de urgência reforçando o enfraquecimento do modelo liberal,
onde o parlamento deveria ser o locus dos processos de formação de consenso.
Esse
problema é agravado pelo fato de que muitos parlamentares concentram-se mais em
alimentar suas próprias redes sociais, visando aumentar seu poderio de
influência virtual, do que em legislar em benefício do público. Assim, as
iniciativas no parlamento refletem mais projetos de poder individualizados e
desvinculados da ideia de bem comum, comprometendo a integridade do processo
democrático.
As
reações de diferentes personalidades públicas e da sociedade, em manifestações
realizadas em diferentes cidades do Brasil, podem ser o início de um processo
importante, já inaugurado com o rechaço massivo à PEC 3/2022, relatada pelo
Senador Flávio Bolsonaro, que visava privatizar as praias. Nele, a sociedade
parece ter começado a desenhar os limites do que seria aceitável em relação ao
avanço do conservadorismo.
Para
além dos campos progressistas, nesses eventos, houve uma reação de integrantes
do próprio campo conservador, a despeito do silêncio e mesmo do posicionamento
defensivo de suas lideranças. Ao campo progressista, cabe investir nesse
desencontro entre as manifestações de lideranças que falam em nome dos
evangélicos, mas que na maioria das vezes não expressam os reais interesses de
pessoas que são evangélicas, mas também são pessoas negras, são mães e definem
suas preferências políticas a partir desses vários marcadores sociais.
¨
O punho erguido pelas
mulheres. Por Luiz Marques
A
ditadura civil-militar concentrou o poder e confrontou a teia de direitos
trabalhistas e territoriais forjados na Revolução de 1930 que, com a liderança
de Getúlio Vargas, abriu novos canais de poder: Ministério da Educação, Justiça
do Trabalho, Previdência Social. O autoritarismo (1964-1985) coincidiu com a
vinda das fábricas multinacionais, que compraram terras aqui. O preço da mão de
obra obedeceu às condições desiguais entre classes e regiões; inferior ao pago
em países “civilizados”. A depreciação dos salários deveu-se à suspensão do
direito de greve e à perda de estabilidade, por tempo de serviço. A indenização
por dispensa desceu a ladeira da precarização.
A
Junta Militar aposentou Fernando Henrique Cardoso de modo compulsório. São
conhecidos os males contra as liberdades. Surpreendente foi ver FHC, na
Presidência da República, afirmar que se orgulhava de pôr fim à Era Vargas.
Assim, entrelaçou o autoritarismo e o neoliberalismo, redivivos no impeachment “sem
crime de responsabilidade”, para outro ataque ao trabalho na contrarreforma
trabalhista e previdenciária e nas terceirizações.
Fernando
Henrique Cardoso reprimiu a greve dos petroleiros sob pretexto de que os
sindicalistas extrapolavam seu papel, acrescentando a bandeira “Não à
Privatização da Petrobras” às demandas salariais. Para o “príncipe dos
sociólogos”, aquela era uma pauta para o Congresso Nacional, pela delegação de
poder à representação. Os comuns deviam ficar de fora.
A
crença de que a sociedade é a plateia da luta de classes e não lhe cabe
imiscuir em conflitos do governo com funcionários da estratégica estatal,
estava embutida no desmonte do varguismo pela sanha privatista. Não obstante,
na ditadura verde-oliva e na modernização tucana frações fora do restrito
círculo governamental incidiam no processo decisório – comunicações,
aristocracia rural, corporações industriais e financeiras. Nisto houve
continuidade, não ruptura. A Independência feita por um colonizador, a Abolição
por uma escravista, a República por um monarquista (ex-ministro do imperador) e
a Redemocratização pelo filhote ditatorial reproduziram as mudanças, pelo alto.
A
década do povo sujeito da história é a de 1980, quando em três momentos a
soberania popular foi reafirmada: (a) na fundação do PT / Partido dos
Trabalhadores em 10 de fevereiro de 1980, após ampla mobilização para cumprir
os requisitos legais; (b) na fundação da CUT / Central Única dos Trabalhadores
em 28 de agosto de 1983 e; (c) na promulgação da Constituição em 5 de outubro
de 1988, alimentada pelas lutas massivas que influenciaram a formatação da
Carta Magna cidadã. As deliberações de direitos chanceladas pelos
constituintes, onde a esquerda era minoritária, garantiram o SUS / Sistema
Único de Saúde universal e gratuito – o baluarte iluminista da luta por
igualdade.
·
A revolução para
completar
Agora,
o salto no tempo. Em 2022, a cidadania derrotou a corrupção do Erário e as
finanças, que esqueceu o déficit zero na campanha eleitoral. O ato fascista de
8 de janeiro edificou o dique à conversão em republiqueta. Esconjurou-se a
volta da repressão policial-militar, e o sangue com a reação previsível das
forças alinhadas aos ideais da civilização. As “elites” vira-latas em apoio de
um retrocesso institucional lixam-se para as liberdades individuais, políticas
ou sociais. Zelam pela liberdade do dinheiro, no más, disfarçada
com eufemismos para enganar os bobos. As correntes do atraso, cuja produção
mira o mercado externo, se recolheram então – por medo, não convencidas.
Na
internet circula o CNPJ das marcas dispostas ao regime de exceção. Para a
viralatice crônica, a democracia tem um reles valor tático, descartável na
ótica da exploração. Não há compromissos republicano e democrático; nenhum
sentimento de empatia com o sofrimento das comunidades de periferia; nenhum
respeito às urnas eletrônicas (ou não); nenhum pejo com a vigarice miliciana da
extrema direita. Constam apenas ódio e ressentimento na agenda das obscenidades
bolsonaristas.
Mantém-se
o diagnóstico de Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil (1974). As
mudanças ocorreram no patamar econômico. Na questão nacional, na questão
fundiária e na questão democrática não se mexeu. Manteve-se a estrutura
neocolonialista de dominação e subordinação. “Os véus que nos prendem ao
passado recente ficaram encobrindo a realidade, embora algo tenha sido
definitivamente desmascarado”, anota o ex-deputado petista no Prefácio à
segunda edição. Parafraseando-o, podemos dizer que não está ao nosso alcance
descrever uma sociedade ideal, mas está o de descrever o que na sociedade
existente não serve de ideal para a existência humana.
A
mídia corporativa se repete ao posicionar-se, em 2023, ainda contra a Nova
Indústria do Brasil (NIB) – o programa de reindustrialização sustentável com
300 bilhões de financiamento – dada a adesão orgânica ao rentismo do Banco
Central. Quer o país com as desigualdades e as hierarquias de raça e gênero, na
posição subalterna de posto comercial das grandes potências.
A
meta é um protetorado neocolonial com sinal de Wi-Fi. A era de
modernização não exprime a evolução interna do mercado capitalista; carrega os
indeléveis vícios do antigo sistema colonial. Em grande medida, ao revés, o
governo Lula 3.0 oportuniza o avanço, se não na consecução, na direção da
autêntica nação com participação social. A revolução brasileira
segue incompleta. O desafio é completá-la.
·
A roda da história se
move
A
história surrealista da América Latina e do Brasil, porém, não cansa de nos
surpreender para pior com o rebotalho da política nacional, que tornou Deus e a
religião reféns de oportunistas, cuja fé espuma pelos cantos da boca toda
perversidade da tradição misógina – para legislar contra o sexo feminino. É o
que demonstra o estapafúrdio “PL dos estupradores”, que deveria ser enquadrado
como um crime por trazer embutido a legalização de uma indisfarçável forma de
discriminação.
O
Projeto de Lei (canalha) está abrigado sob as asas do presidente da Câmara
Federal, Arthur Lira, que as manifestações nas principais cidades brasileiras
já identificaram e responsabilizaram pela ignomínia suprema, aprovada em
“regime de urgência”. A extrema direita não é só uma ideologia monstruosa; é
também uma patologia criminosa pelo que se depreende do fato. Propagadas pelo
bolsonarismo, com o esgoto aberto, as pragas que vieram à tona estão muito
longe de esmorecer.
A
novidade, no caso, não é a reprodução do habitus autoritário e
totalitário da sociedade patriarcal, performado pelas figuras bizarras que se
arvoram donos das almas e dos ventres de inocentes. A boa notícia é a
mobilização civilizatória imediata das mulheres na vanguarda da contraofensiva
política e ideológica de rejeição da restauração reacionária, tão estúpida
quanto hipócrita.
A
soberba da irracionalidade dinamizou o espírito progressista para impedir a
cruzada das bestas, dentro e fora dos gabinetes. Como no Grande sertão:
veredas, “Cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele,
retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira
alguma?”
A
prontidão da resposta é a prova da consciência construída pelo movimento
feminista, ao longo de décadas. O “Não” à barbárie é um ato de dignidade. O
aborto, além de um grave problema de saúde pública, é um direito democrático
inalienável independente das circunstâncias. Trata-se de um tema de foro íntimo
que deve ser decidido com autonomia, e não por heteronomia.
Pastores
evangélicos e/ou legisladores fundamentalistas, ao trazer para si a decisão,
abusam das prerrogativas espirituais e/ou legais. A deliberação sobre o assunto
é indissociável da liberdade individual. Os próceres do liberalismo clássico
foram os primeiros a reconhecer que os indivíduos têm a “propriedade” de seu
corpo; não as famílias, as Igrejas ou o Estado. Na democracia que queremos, tal
não é negociável.
O
Maio de 1968 nasceu do protesto de estudantes contra a divisão de dormitórios
por gênero, na Universidade de Nanterre, na França. Não é a primeira vez e nem
será a última que a roda da história se move, tendo à frente o punho erguido
pelas mulheres contra o ultraconservadorismo. Depois da globalização do
capital, quiçá estejamos assistindo o alvorecer de uma globalização da rebeldia
com o sujeito mais denegado, através dos séculos: bem-vindo o otimismo da
vontade.
Fonte:
Por Giulia Gouveia e Mayra Goulart, em A Terra é Redonda
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