A
controvérsia em torno do julgamento de civis por tribunais militares no Brasil
Em
uma parte de mata pertencente ao instituto cultural Ricardo Brennand, no Recife, em Pernambuco, é comum que moradores do
bairro entrem ali para colher jaca, jamelão e macaíba das árvores.
Em
novembro de 2021, dois irmãos deixaram a casa de um cômodo e banheiro externo
na qual viviam com outros seis membros de sua família e foram catar frutas e
pescar na área, que dá acesso a um riacho.
Mas
eles entraram sem saber em uma área militar, sob os cuidados do
4º Batalhão de Polícia do Exército.
A
propriedade abriga uma estação meteorológica abandonada, não é totalmente
murada e há pouquíssima sinalização — há apenas uma placa indicando ser uma
área do Exército, fixada em uma parte onde há muro e portão e pela qual os
irmãos não passaram ao entrar.
Encontrados
dentro da propriedade por militares que faziam a patrulha, eles foram acusados
do crime de "ingresso clandestino", previsto no Código Penal Militar.
Os
irmãos não têm qualquer ligação com as Forças Armadas, mas, mesmo assim, foram processados na
Justiça Militar.
Podiam
receber uma pena de 6 meses a 2 anos de prisão — equivalente às punições
aplicadas aos crimes de abandonar um recém-nascido e instigar o suicídio,
previstos no Código Penal comum.
O
julgamento de civis por tribunais militares é uma raridade em países
democráticos e uma prática condenada pela Corte Interamericana dos Direitos
Humanos.
Há
também questionamentos se isso seria permitido pela Constituição brasileira.
Apesar
disso, não são raros no Brasil casos como o dos dois irmãos, em que civis são
processados, julgados e muitas vezes condenados por esse ramo da Justiça.
Em
casos assim, os acusados podem acabar recebendo penas mais severas do que
aquelas que seriam consideradas cabíveis se os casos fossem apreciados pela
Justiça comum ou condenadas por crimes que sequer existem na lei civil.
Além
disso, a pessoa pode acabar sendo julgada por militares sem qualquer formação
jurídica.
Isso
porque os tribunais da Justiça militar são compostos por alguns juízes civis,
formados em direito, e uma maioria de militares que não precisam ter nenhuma
formação jurídica, explica o defensor público federal Gustavo de Almeida
Ribeiro.
"Na
primeira instância da Justiça Militar, um civil precisa ser julgado por um dos
juízes civil. Mas se ele recorrer, vai para um colegiado (conjunto de
magistrados) em que os militares são maioria", afirma Ribeiro.
Para
além disso, os críticos desta prática apontam que o julgamento de civis por
militares desvirtua o propósito deste ramo da Justiça.
A
Justiça Militar existe para julgar crimes cometidos por oficiais durante o
cumprimento de suas funções. O principal elemento que tenta proteger são a
disciplina e a hierarquia militares
"O
próprio Superior Tribunal Militar explicita que a regra que pauta a Justiça
Militar é a teoria do escabinato, que reforça a hierarquia e a disciplina
militar no exercício dessa Justiça", diz Gabriel Sampaio, diretor de
Litigância e Incidência da Conectas, entidade que participa como amicus curiae
(não é parte do processo, mas um terceiro interessado no resultado) na ação que
questiona a competência da Justiça Militar no Supremo.
"Se
você pega casos como o de um civil que está numa área militar, qual é o sentido
do julgamento pautado por esses valores? Se são esses princípios e se a maioria
na Justiça Militar é a classe militar, essa esfera não tem condições de julgar
essas causas."
No
caso dos irmãos, a Defensoria Pública Federal em Pernambuco conseguiu fazer um
acordo para evitar a continuação do processo e eles não foram condenados.
"Eles
não apresentavam nenhum perigo para a instituição militar", diz o defensor
Gustavo Ribeiro.
"Também
não estava cometendo nenhum crime comum, tinham o objetivo apenas de colher
frutas naquela área, que é aberta."
Antes
disso, no entanto, a defensoria havia argumentado que a Justiça Militar não
teria competência para julgar os réus - mas o pedido de encaminhamento do caso
para a Justiça comum foi negado.
No
momento, há uma ação em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que
questiona se o julgamento de civis pela Justiça Militar, de maneira geral, é
constitucional, mas o processo está parado, esperando voltar à pauta da Corte.
Enquanto
o tema não é apreciado de forma mais ampla pelo Supremo, no entanto, diversas
decisões judiciais sem repercussão geral (ou seja, que não valem para todos,
somente para os casos específicos) confirmaram a competência da Justiça Militar
para ações do tipo.
Uma
delas foi do próprio STF, em 2023, no julgamento de um habeas corpus de um
civil acusado de pagar propina para um oficial militar. Por 6 a 5, o Supremo
decidiu que o caso deveria continuar na Justiça Militar.
Nos
últimos anos, a competência da Justiça Militar foi sendo ampliada por uma série
de leis que tornaram cada vez mais situações e pessoas passíveis de seu
julgamento.
Em
2018, por exemplo, foi criada uma nova lei que determinou
que juízes militares têm competência para julgar civis monocraticamente, ou
seja, por meio de uma decisão individual, nos casos em que eles são acusados em
conjunto com militares.
Essa
ampliação do uso da Justiça Militar para julgar civis é considerada um problema
por muitos juristas, magistrados, pesquisadores, advogados, organizações de
direitos humanos e defensores públicos.
O
Código Penal Militar e a maneira como o processo corre na Justiça Militar são
muito diferentes da Justiça comum. Isso é prejudicial para um réu civil que
está sendo julgado na Justiça Militar, diz Gustavo Ribeiro.
Segundo
ele, embora seja mais antigo, o Código Penal, em vigor desde 1940, é bem mais
atual do que o militar, porque foi sofrendo diversas alterações e modernizações
ao longo dos anos pelas quais o código militar não passou.
Além
disso, diz Ribeiro, há uma série de práticas normais na Justiça comum que ainda
não foram amplamente aceitas no ramo militar.
“É
muito mais difícil de conseguir um acordo para que uma pessoa não seja
processada criminalmente. Embora ele também seja possível na Justiça Militar, é
algo com o qual eles estão menos acostumados”, afirma.
Outro
exemplo é a atualização sobre crimes sexuais. No Código Penal Militar, não há
nenhuma das mudanças recentes feitas na legislação comum, como a inclusão do
crime de importunação sexual, por exemplo, explica a advogada criminalista
Débora Nachmanowicz de Lima, que pesquisa a Justiça Militar na pós-graduação na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Além
disso, no código militar, existem penas diferentes para crimes equivalentes no
Código Penal - crimes de desrespeito à hierarquia, por exemplo, são punidos de
forma bastante severa no Código Penal Militar.
Um
caso emblemático é o do advogado condenado em 2019 por
"desobediência" e "oposição à ordem de sentinela" após
estacionar em frente ao 28° Batalhão de Infantaria Leve, em Campinas, e
discutir com os militares ali presentes, que diziam ser proibido parar ali.
No
processo, os tenentes disseram que ele “parecia embriagado”, que tentou “dar
carteirada” e dizer que “só poderia ser preso com presença da OAB [Ordem dos
Advogados do Brasil]”.
Já
o advogado disse que estava apenas cortando caminho pela avenida e que parou
para mostrar o prédio à namorada.
Parar
em local proibido é uma infração do Código de Trânsito que pode gerar uma multa
de R$ 195 e punição de cinco pontos na carteira de habilitação.
A
Justiça Militar condenou o advogado a 6 meses de prisão.
O
Ministério Público Militar diz que entende que o julgamento de civis pela
Justiça Militar é compatível com a Constituição e cita as recentes decisões do
STF sobre o assunto.
De
acordo com o subprocurador-geral de Justiça Militar Marcelo Weitzel, secretário
de Relações Institucionais do MPM, a quantidade de habeas corpus e recursos em
que o STF chancelou essa hipótese mostra que o tema "está
pacificado", ou seja, que existe uma maioria no tribunal que pensa nesse
sentido, embora o tem ainda não tenha sido julgado na ação específica que
questiona a constitucionalidade.
“Como
bem ressaltado em parecer da Procuradoria-Geral da República e em manifestações
do próprio Ministério Público Militar acerca da ADPF 289, são situações
excepcionais (nas quais civis são julgados pela Justiça Militar)", disse
Weitzel em nota à BBC News Brasil.
"Não
será em qualquer hipótese que o civil será julgado por um crime militar, apenas
naquelas que ofendem os principais bens jurídicos que alcançam as Forças
Armadas, a hierarquia, a disciplina, sua rotina e sua atividade militar.”,
·
Para que serve a
Justiça Militar?
O
Código Penal Militar em vigor foi criado em 1969, no auge da repressão da
ditadura — regime de exceção no qual, inclusive, era frequente o julgamento de
civis pela Justiça Militar.
Mas
esse ramo judicial existe desde o período imperial no Brasil e foi mantido pela
Constituição Federal de 1989.
A
ideia é existir uma Justiça especializada devido às particularidades das
funções e deveres dos militares, explica Nachmanowicz, para proteger a
hierarquia e a disciplina.
Segundo
Sampaio, da Conectas, o julgamento de civis pela Justiça Militar é incompatível
com um regime democrático. "É um resquício da ditadura", diz ele.
Em
uma decisão sobre o assunto em um habeas corpus em 2010, o
então ministro do STF Celso de Mello defendeu uma visão restritiva do uso da
Justiça Militar, ao dizer que o julgamento de civis só poderia acontecer em
casos muito excepcionais.
A
Constituição não proíbe expressamente o julgamento de civis pela Justiça
Militar, mas garante o direito de todos os brasileiros de serem julgados por um
juiz competente, o chamado “juiz natural”.
Isso
significa que as autoridades competentes para julgar os cidadãos são somente
aquelas previstas pela Constituição, para garantir que todos tenham direito a
um juiz independente e imparcial.
Segundo
Celso de Mello, “sujeitar civis arbitrariamente” à Justiça Militar em tempos de
paz é uma “anomalia” e “uma clara violação ao princípio constitucional do juiz
natural”.
Para
Natália Viana, autora do livro Dano Colateral (Objetiva,
2021), para o qual ela analisou casos na Justiça Militar, nos julgamentos no
Superior Tribunal Militar, os argumentos são “realmente argumentos militares”.
“E
aí você tem os juízes civis, que são a minoria, e que tentam trazer um pouco
uma perspectiva civil, mas não acaba sendo assim”, afirma Viana, que também é
diretora-executiva da Agência Pública.
"[O
que predomina] é uma visão militarizada do que deve ser a decisão sobre um
crime ou não. Não é uma Justiça para fazer justiça, é uma Justiça para
preservar a hierarquia."
Para
Nachmanowicz, a Justiça Militar deveria ter escopo de atuação muito reduzido —
e no qual o julgamento de civis estaria fora de cogitação.
“A
gente deveria ter um uso cada vez mais restrito, como em países onde a Justiça
Militar só existe em tempos de guerra, ou então existir em tempos de paz, mas
só para julgar militares em delitos relacionados à função, à conduta, à
disciplina”, afirma a pesquisadora.
“Não
para julgar outros crimes que não têm a ver com desrespeito à hierarquia ou à
disciplina. Casos em que militares cometem crimes de direitos humanos contra
civis, por exemplo, também deveriam ser julgados pela Justiça comum.”
Natália
argumenta que, enquanto a Justiça Militar condena civis por crimes leves,
militares que cometem graves violações de direitos humanos e operações de
segurança pública são absolvidos.
“Geralmente
as punições para quem quebra a hierarquia e a ordem, para quem, sei lá, roubar
gasolina ou fuma maconha no exército, são enormes. E aí, quando você vai para
outros tipos de crimes, como crimes (de militares) contra civis, mas que têm o
respaldo tácito dos superiores, a punição não se equipara, nem se compara.”
Muitos
dos casos de civis julgados pela Justiça Militar, alis, são de situações
envolvendo as operações de Garantia de Lei e da Ordem, em que as forças
militares atuam na área de segurança pública.
A
Agência Pública mapeou 144 casos só nessa categoria
entre 2011 e 2019.
"Se
um militar for truculento e você discutir com ele, pode acabar sendo processado
na Justiça Militar. É um absurdo", diz Gustavo Ribeiro.
·
Divergência
Para
quem não enxerga o julgamento de civis pela Justiça Militar como
inconstitucional, um dos argumentos é de que esse ramo não é “propriamente
militar”, por ter também juízes civis em sua composição.
Esta
é a visão, por exemplo, do ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do
STF.
No
julgamento do habeas corpus em 2023, por exemplo, Barroso, citou o fato de que
uma lei de 2018 determinou que o julgamento de civis na Justiça Militar seja
feito somente pelo juiz federal (civil) que faz parte das cortes desse ramo
judicial.
“A
Justiça Militar brasileira não faz parte do Poder Executivo e não integra as
Forças Armadas, sendo efetivo órgão do Poder Judiciário”, escreveu o ministro
em seu voto.
No
entanto, entidades como a Conectas apontam que esta regra, de que o juiz civil
deve julgar sozinho os civis na Justiça Militar, não se aplica à segunda
instância.
O
defensor Gustavo Ribeiro explica que, a partir do momento em que o réu civil em
um processo militar recorre da decisão do juiz civil, o caso será analisado por
um grupo de magistrados composto também por juízes militares e sem a
necessidade de formação jurídica.
“De
que adianta o civil ser julgado pelo juiz federal na primeira instância se
quando ele recorrer o caso vai ser analisado por um colegiado onde a maioria é
militar?”, questiona Ribeiro.
O
ministro Alexandre de Moraes votou no mesmo sentido que Barroso, mas destacou
outro argumento.
Para
Moraes, o Código Penal Militar “não tutela a pessoa do militar, mas sim a
dignidade da própria instituição das Forças Armadas” e por isso já votou tanto
por ter militares julgados pela Justiça comum quanto por ter civis julgados
pela Justiça Militar.
No
caso do inquérito que investiga os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de
2023, por exemplo, ele reafirmou a competência da Justiça comum para lidar com
os integrantes das Forças Armadas envolvidos.
No
julgamento de 2023 em que o civil pedia a declaração da incompetência da
Justiça Militar, no entanto, ele manteve o caso neste ramo da Justiça com base
no mesmo argumento.
“Da
mesma maneira que ‘crimes de militares’ devem ser julgados pela Justiça Comum
quando não definidos em lei como crimes militares, ‘crimes militares’, mesmo
praticados por civis, devem ser julgados pela Justiça Militar quando assim
definidos pela lei e por afetarem a dignidade da instituição das Forças
Armadas”, escreveu o ministro.
A
BBC News Brasil encontrou centenas de casos de civis sendo julgados por
militares que chegaram à segunda instância ou ao Superior Tribunal Militar - ou
seja, que não foram julgados exclusivamente por juízes civis com formação em
direito.
É o
caso de uma paciente diagnosticada com transtorno bipolar e transtorno de
personalidade compulsiva que se desentendeu com uma servidora em um hospital de
Brasília em 2019.
Alguns
dias antes do Natal, enquanto esperava por sua consulta no pronto socorro, a
paciente achou que a atendente estava passando pessoas com senhas não
preferenciais na sua frente.
Ela
começou a reclamar, falar de forma agressiva e, segundo testemunhas, xingou a
profissional.
O
episódio também acabou gerando um processo criminal na Justiça Militar, apesar
de tanto ela quanto a atendente serem civis.
Isso
porque o hospital em que tudo aconteceu é o Hospital das Forças Armadas de
Brasília, um estabelecimento militar.
Por
isso, a promotoria militar entendeu que ela cometeu um crime militar —desacato
a um funcionário em lugar sujeito à administração militar —, e a Justiça
Militar aceitou a denúncia.
·
Como funciona em
outros países?
Em
sua decisão de 2010, Celso de Mello afirmou que submeter civis à Justiça
Militar não é uma tendência de países de perfil democrático.
Diversos
chegaram a simplesmente eliminar esse ramo da Justiça, exceto em tempos de
guerra. É o caso da Argentina, de Portugal e do Uruguai, entre outros.
Tratados
internacionais condenam expressamente o julgamento de civis por cortes
militares.
“As
diretrizes do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas determinam que o
Estado deveria garantir que os civis acusados de cometer crimes de qualquer
natureza sejam julgados por cortes civis”, diz Nachmanowicz.
“O
sistema interamericano de direitos humanos também já enfatizou isso de uma
forma consistente.”
Uma
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), de 2005, por
exemplo, determinou que o Chile adequasse sua legislação aos padrões
internacionais e adotasse medidas para impedir, EM quaisquer circunstâncias,
que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares”.
A
Corte IDH vai além: diz que a Justiça Militar também não é competente para
investigar militares acusados de violar direitos humanos.
Nos
Estados Unidos, o uso de Justiça Militar contra civis é proibido mesmo em tempo
de guerra, se houver tribunais civis em funcionamento.
A
corte marcial também não se aplica a crimes cometidos por militares contra
civis, e não existe a figura do juiz militar no país, explica Nachmanowicz.
Em
um artigo publicado em 2017, a pesquisadora apresentou também o funcionamento
da Justiça Militar na Europa.
Na
Espanha, em tempos de paz, os tribunais julgam apenas delitos relacionados à
defesa e segurança nacionais, aponta. Na Bélgica, os crimes cometidos em tempos
de paz por militares são julgados pela Justiça comum.
“A
Itália não prevê código de processo penal militar e não tem, assim como a
França, magistrados militares, ainda que a França preveja um sistema específico
e pouco democrático para julgamento de crimes cometidos por militares”,
escreveu Nachmanowicz.
No
entanto, existem países onde civis são julgados por tribunais militares com
frequência.
Na
América Latina, a Venezuela é o único país com esta prática, segundo a pesquisa
de Nachmanowicz.
De
acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, entre 2014 e 2021, pelo
menos 870 civis venezuelanos foram submetidos à jurisdição militar.
Um
caso conhecido foi o do líder sindical e membro da oposição Rubén González,
que, em 2020, teve condenação de cinco anos e 9 meses de prisão confirmada por
uma Corte Marcial de Caracas.
Fonte:
BBC News Mundo
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