Portugueses falando 'brasileiro'? Como
variante do idioma usada no Brasil influencia Portugal
No final de janeiro,
uma postagem feita por uma página portuguesa de conteúdos anti-imigração no X
(antigo Twitter) denunciou a existência de uma placa de trânsito escrita em
“português brasileiro” em Sintra, na área metropolitana de Lisboa.
“Sinal rodoviário
escrito em português brasileiro diz que é proibida a circulação excepto a
‘trens’ e bicicletas”, diz a postagem, que traz também uma foto da placa que
supostamente “assassina a língua de Camões que é o português europeu”.
O grande problema,
segundo o autor do post, é que a palavra "trens" teria sido retirada
do português usado no Brasil, já que em Portugal o meio de
transporte ferroviário é chamado de “comboio”.
O fato, porém, é que a
palavra "trem" existe também no português europeu, mas com um
significado distinto.
Em Portugal, pode ser
“um carro de cavalos destinado ao transporte de pessoas”, ou uma carruagem, de
acordo com a definição do dicionário da Porto Editora.
Levando em conta a
localização da placa, a palavra "trens" se refere às carruagens
puxadas por cavalos que fazem passeios com turistas por Sintra.
O episódio faz eco a
muitos outros casos de portugueses "puristas" que cada vez mais
rejeitam a presença de vocabulários e construções brasileiras na língua falada
em seu país.
Esse repúdio fica
claro em muitas das reações às notícias e manchetes de jornal que denunciam há
alguns anos a influência dos conteúdos produzidos por brasileiros nas redes
sociais e no YouTube nas crianças e jovens portugueses.
Enquanto alguns veem a
cobertura da imprensa como exagerada e apontam o peso da xenofobia nas visões
propagadas, outros fazem coro às queixas e temem que a presença cada vez maior
dos vocábulos importados seja sinal de um "apagamento" da cultura
local.
Há ainda quem aponte
o grande e crescente fluxo migratório - havia 360 mil brasileiros em Portugal em 2022, segundo o
Itamaraty - como outro fator que contribui para isso.
Mas por que a
possibilidade da variante usada no Brasil ser encontrada em Portugal provoca
tanta indignação entre alguns cidadãos? E qual a verdadeira extensão dessa
influência?
Para Fernando
Venâncio, linguista português que estuda o tema há décadas, há sim uma presença
cada vez maior de traços importados do outro lado do Atlântico no idioma falado
em terras portuguesas. Mas isso não é novidade.
“Desde finais dos anos
1970 e princípios dos anos 1980, houve uma aquisição de brasileirismos
gigantesca”, diz Venâncio, autor do livro O Português à Descoberta do
Brasileiro.
Na época, isso foi um
reflexo principalmente do sucesso das novelas brasileiras em Portugal, explica
o linguista. Agora, há um fenômeno novo em curso, que envolve principalmente as
crianças e adolescentes.
"Em Portugal,
eles veem cada vez mais youtubers brasileiros, às vezes, por
muitas horas”, diz Venâncio.
·
‘Aficionada pelos
youtubers brasileiros’
A portuguesa Paula
Lourenço é professora de escolas de ensino fundamental em Sintra há 24 anos.
Ela dá aulas para
crianças entre 9 e 10 anos e diz que o uso de expressões e palavras brasileiras
pelos seus alunos é cada vez mais evidente.
“Neste momento, na
escola, tenho um caso de um aluno que fala ‘brasileiro’ apesar de os pais serem
portugueses”, conta.
A professora relata
que esse aluno começou a ser vítima de uma espécie de bullying, com
colegas implicando com a forma como ele fala.
"Por fim,
descobrimos que ele ficava até altas horas da noite sem supervisão a ver
vídeos, principalmente aqueles shorts [vídeos curtos] que são
reproduzidos um atrás do outro.”
Segundo Paula, o gosto
pelos vídeos produzidos por influenciadores e youtubers do
Brasil é compartilhado por praticamente todos os seus alunos.
“Houve um boom principalmente
durante a pandemia. Até eu já estou um pouco aficionada pelos youtubers brasileiros,
porque comecei a ver para acompanhar o que meus alunos gostam”, diz a
professora.
Mesmo nas aulas de
inglês, a professora Teresa de Gruyter nota a repetição dos “brasileirismos”.
“Usamos muito a
palavra ‘giro’ em Portugal quando queremos falar de uma coisa que achamos
engraçada ou interessante. Mas quase não ouço mais. Hoje em dia, utiliza-se
mais ‘é bonitinho’, que é muito mais brasileiro”, conta a portuguesa, que dá
aulas principalmente para adolescentes em uma escola de línguas em Cascais.
Teresa nasceu em
Portugal e se mudou para a África do Sul na década de 1990.
“Quando saí do país há
25 anos, estávamos muitos expostos ao português brasileiro através das
telenovelas e das músicas", diz.
"Mas, desde a
minha volta há menos de 10 anos, começo a notar que todo este mundo dos youtubers e tiktokers [produtores
de conteúdo da rede social TikTok] influenciam muito mais a maneira de estar e
a maneira de falar das crianças no geral.”
Graça Rio-Torto,
professora de Linguística da Universidade de Coimbra, vê, no entanto, as novas
construções e palavras aprendidas pelas crianças e jovens portugueses como
aprendizados positivos.
“Essas palavras novas
enriquecem o léxico dessas crianças e não há mal nenhum nisso”, diz ela.
"Mas se os pais
portugueses têm preocupação com o fato dos seus filhos estarem a falar mais
abrasileirado, lamento. Mas os responsáveis são eles. Não é tanto o contato com
colegas brasileiros na escola que fazem com que elas falem assim, mas o número
de horas que os pais permitem que elas fiquem na internet."
A professora Paula
Lourenço concorda: “Essa influência é boa pelos conhecimentos que transmite na
área no enriquecimento do vocabulário, da globalização e de conhecer outras
culturas”.
“O problema são os
casos extremos em que já não sabem utilizar as expressões corretas nem no
português do Brasil, nem de Portugal”, afirma Lourenço.
Para a professora, são
o uso excessivo de telas sem supervisão e o isolamento das crianças e
adolescentes que prejudicam o aprendizado e a compreensão de textos.
Venâncio diz que o
fato de jovens portugueses usarem expressões brasileiras não deveria ser motivo
de alarde.
“As crianças deixam
sair uma ou outra palavra que ouviram no YouTube, mas é exagero dizer que
passaram a falar ‘brasileiro’.”
·
‘Uma deturpação do
português’
Entre os destaques do
YouTube que servem de referência para o sucesso brasileiro em Portugal estão os
canais dos irmãos Felipe e Luccas Neto, com respectivamente 46 e 42 milhões de
inscritos.
Ao mesmo tempo, o
canal de humor Porta dos Fundos atrai o público adulto português há alguns
anos.
Para a linguista
brasileira Jana Behling, doutoranda na Universidade de Coimbra que estuda o
tema, o “impacto do brasileiro” também pode ser notado por meio da popularidade
de cantores como Marília Mendonça e até da literatura produzida por autores
contemporâneos, de Itamar Vieira Júnior a livros com conteúdo religioso.
“Coimbra é sempre mais
conservadora, mas ainda assim desfila o ‘brasileiro’ no Poetry SLAM, que é uma
competição em que poetas leem ou recitam um trabalho original”, ressalta.
Esse sucesso não
acontece sem conflitos. Apesar dos consecutivos shows esgotados em Portugal,
Luccas Neto já foi repudiado por popularizar na fala portuguesa palavras
brasileiras, como "geladeira" no lugar de "frigorífico",
"ônibus" no lugar de "autocarro" e assim por diante.
“Alguns portugueses
enxergam essa popularidade como se emporcalhasse a língua europeia”, avalia
Behling.
“Isso sem falar nas
gírias, típicas do despojamento de qualquer língua, mas que as xenofobias ainda
olham com desdém.”
As professoras Paula
Lourenço e Teresa de Gruyter afirmam ouvir com frequência reclamações de pais
sobre as novas expressões adotadas pelos filhos.
“Alguns pais mais
tradicionais reclamam ou corrigem os filhos quando os ouvem dizer palavras mais
à brasileira”, diz de Gruyter.
“Mas tem outros pais
que são bastante flexíveis, principalmente na zona do país onde eu vivo, em que
existem tantos estrangeiros”.
Lourenço acrescenta
que, por outro lado, muitos pais não dão atenção a isso.
“As pessoas estão tão
sobrecarregadas com o trabalho que deixam os filhos ficarem horas na frente das
telas e não percebem como isso os está influenciando.”
O linguista Xoán
Lagares, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), nota que ainda “há
muito preconceito em relação ao português do Brasil porque ele se diferencia em
muitos pontos, sobretudo na sintaxe do que é a tradição normativa portuguesa constituída
em Portugal”.
“Então, para muitos
portugueses, as diferenças são identificadas como erros, como uma deturpação do
português”.
Mas, segundo Lagares,
especialista em história social e cultural das línguas, não existe uma versão
mais correta da língua.
“No caso do português,
não há uma gramática oficial. Há uma tradição normativa que se manifesta em
gramáticas e dicionários”, explica.
Essa tradição tem sua
origem em Portugal e foi elaborada a partir dos usos considerados de prestígio
no país.
“O que aconteceu é que
no Brasil foram se desenvolvendo outros usos de prestígio em relação à
gramática”, diz o professor.
Por isso, vigora hoje
no Brasil uma tradição normativa autoral e interpretativa, que pode variar
conforme a gramática e a visão dos seus autores.
Para alguns
linguistas, as diferenças entre as variedades que se estabeleceram dos dois
lados do Atlântico já são tão grandes que deveria haver uma separação
definitiva entre o português e o brasileiro.
“Não dá mais para
dizer que falamos português do Brasil”, opina a linguista Jana Behling.
“Dou aula de
'brasileiro' hoje em dia, porque algumas pessoas acham o brasileiro mais fácil
do que o português. Isso para mim indica uma ruptura.”
Xoán Lagares, porém,
afirma que ainda é difícil falar em suas línguas separadas.
“Em termos de
descrição linguística, não há um critério para dizer em que momento duas
variantes se tornam línguas diferentes. Esse é um problema em várias partes do
mundo. Por isso, muitas vezes, é apenas uma questão política.”
·
‘É uma moda como outra
qualquer’
Mas qual a real
influência do português do Brasil em Portugal, para além das críticas embutidas
nas manchetes de jornais e dos "brasileirismos" denunciados nas redes
sociais?
Segundo os
especialistas consultados pela BBC News Brasil, é difícil prever o impacto que
isso pode ter ao longo do tempo.
Até o momento, há
poucas pesquisas publicadas que analisam o fenômeno – e novas expressões,
palavras e estrangeirismos surgem e desaparecem nas línguas a todo tempo.
“Alguns youtubers brasileiros
têm muita qualidade, e não é por acaso que as crianças assistem e também
aprendem com eles”, diz Fernando Venâncio.
“Mas é impossível
dizer se esse fenômeno novo vai ter futuro, porque também há alguns youtubers portugueses
que estão a aprender bastante com os brasileiros e estão a produzir mais coisas
com alguma qualidade.”
Para Xoán Lagares, a
influência atual se dá sobretudo na sintaxe e a partir de algumas construções
específicas. Ou seja, não engloba toda a língua.
“É difícil que eles
mudem, por exemplo, a colocação pronominal por conta da forma usada no Brasil.
Essas coisas demoram e são difíceis de acontecer”, diz.
“Veja no Brasil, onde
ensinamos a questão da ênclise e até hoje não se consolidou, muitos alunos
precisam ser corrigidos na escola e em redações.”
O linguista afirma
ainda que o próprio preconceito demonstrado por alguns portugueses em relação à
variedade brasileira deve barrar qualquer influência maior.
“Há muitas questões
identitárias, de reconhecimento da própria variedade e de lealdade linguística
envolvidas”, afirma.
Por sua vez, a
linguista Graça Rio-Torto avalia que o inglês exerça uma influência hoje mais
forte em Portugal do que o português falado no Brasil, sobretudo nas linguagens
técnicas e da área de informática.
Ela é categórica ao
afirmar que o português falado em Portugal não sofrerá mudanças profundas e
permanentes a partir dessa influência, ao menos por enquanto.
Para ilustrar seu
argumento, ela ressalta que Portugal passou por séculos de dominação
estrangeira e foi colonizado por árabes e espanhóis.
"Esses fatos
tiveram alguma influência sobre a língua, mas não alteraram o rumo principal
das mudanças linguísticas em curso”, diz ela.
"Como linguistas,
não esperaríamos que em tão pouco tempo e em um conjunto numericamente não tão
significativo assim de falantes pudesse ter uma influência decisiva sobre a
língua."
Havia essa mesma
preocupação, segundo ela, nos anos 1970, quando as novelas brasileiras eram
muito populares.
"Também se dizia
que muitas construções lexicais e até gramaticais iriam ser introduzidas na
variedade portuguesa. Mas não foi tanto assim", diz.
"É uma moda como
outra qualquer, circunscrita no tempo."
Fonte: BBC News Brasil
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