Por uma política feminista que se estenda
aos estados e municípios
Diariamente grupos de
mulheres se manifestam publicamente por direitos. Saem às ruas portando
cartazes onde expõem “nem mortas, nem presas”, #criança NãoÉMãe”, “o direito ao
aborto seguro é um direito humano!” – frases que se referem a ações
autoritárias do Estado contrarias à interrupção da gravidez.
Essas frases remontam
aos escândalos noticiados pela mídia quando uma clínica é fechada pela polícia
por realizar um aborto, ou quando, em 2020, a própria ministra da Mulher
Damares Alves tentou intervir em um hospital onde uma menina de 11 anos, vítima
de estupro, ia se submeter a um aborto legal, ou ainda, a total desobediência
aos direitos civis e políticos das mulheres que decidem pela intervenção.
Embora os direitos
políticos e sociais já estejam inscritos na Constituição de 1988 ou na
legislação ordinária, pessoas de todas as idades se movimentam para garantir
seu cumprimento. Por que os direitos humanos das mulheres são relegados,
descumpridos, precisam constantemente ser reivindicados na vida coletiva? Por
que o corpo da mulher não lhe pertence? Por que em pleno século XXI o corpo
feminino é um “bem de uso” de alguns homens?
Proponho repensar o
controle do Estado sobre decisões supostamente pessoais: estupro, violência
doméstica, feminicídio, são do campo das relações individuais e pessoais,
porém, são controlados através da estrutura política nas quais estão situadas.
Até a década de 1950,
o Estado brasileiro estimulava o crescimento populacional para ocupação do
extenso território. Na década de 1960, com a urbanização, ampliação do mercado
de trabalho, e o parco conhecimento de métodos antirreprodutivos começaram a se
implantar no país, à revelia da política governamental, uma redução no processo
de crescimento populacional.
As mulheres procuravam
diminuir o número de filhos, embora o processo tivesse consequências fatais:
elevou-se a mortalidade feminina em decorrência de abortos absolutamente
precários. Apesar das políticas de estado pro-natalistas, as mulheres reduziram
o número de filhos, num processo irreversível.
Sem nenhum programa
adequado, o aborto passou a ser o “método” mais utilizado. O poder público se
somou às Igrejas cristãs proibindo-o. Ligar o aborto ao pecado foi um mecanismo
pouco eficiente: 56% das católicas, 25% das evangélicas recorreram à interrupção.
Dados do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), fórum global composto de
pesquisadoras/es e ativistas de vários países e regiões do mundo, mostram que
uma em cada sete mulheres, aos 40 anos, já passou por aborto no Brasil e 52%
delas dizem tê-lo feito com menos de 19 anos.
Matéria publicada na
Agência Brasil em 2023 mostra que “apesar de serem mulheres comuns, que estão
em todos os lugares, há uma concentração maior no grupo das mais vulneráveis.
São mulheres negras, indígenas, residentes no Norte e do Nordeste, com menor escolaridade
e muito jovens”.
Em resumo a
consequência é macabra: a cada dois dias morre uma mulher em consequência de
abortos mal-feitos e somam dois milhões as internações hospitalares em 10 anos.
Exceção, é claro, da camada de mulheres de classes mais abastadas que recorrem
ao aborto em hospitais e cuidados médicos remunerados.
Desde a
redemocratização os governos e a população se articularam construindo um novo
diálogo. Foram criados ministérios, conselhos estaduais, municipais,
secretarias, e associações nos bairros para enfrentar a violência de gênero
entre outras questões. Associações médicas, psicológicas, de direito, da
sociedade civil, ampliaram as ações fortalecendo as políticas públicas.
Situações muito inovadoras foram elaboradas junto às polícias estaduais, às
delegacias e criadas as delegacias da mulher.
A sociedade se
retroalimentou e inovou, substituindo a pena prisional por processos
educacionais para homens violentos. Mas o que levou décadas para ser construído
foi deliberadamente desmontado em poucos anos por um governo autoritário. No
campo científico, proibiram o conceito de gênero, introduziram definições
falsas antepondo-se ao que a ciência desenvolve praticamente em todos os
países; reduziram em 70% a verba destinada às delegacias da mulher, aos
programas de orientação contra a violência de gênero, as casas abrigo, e
cortaram até mesmo a verba do excelente programa de telefone de atendimento a
situações de perigo de vida da mulher no Brasil e até no exterior.
Os moldes autoritários
da estrutura política federal se estenderam aos estados e municípios. O estado
de São Paulo elegeu um governo de igual orientação autoritária. E imediatamente
iniciou um programa municipal, estadual e até mesmo federal visando as futuras
eleições. Dentro de poucos meses teremos eleições municipais. Vereadores/as são
futuras bases para as políticas estaduais e logo a seguir federais. Na mídia
pode-se aquilatar as disputas entre os partidos, as diretrizes que serão
propostas em seus programas. O que estamos nós mulheres, nós feministas,
preparando para essas eleições?
A direita, no campo
das mulheres, o governador de São Paulo, autoritário, substitui a secretária
Estadual da Mulher, Sonaire Alves, que é antifeminista e contra as questões de
gênero pela deputada estadual Valeria Bolsonaro. Esta presidiu na Comissão de Defesa
e dos Direitos das Mulheres da Alesp uma homenagem às “mulheres patriotas, que
transformam o Brasil e as causas femininas, que não têm partido e ideologia”.
(Lembro que essa deputada apoiou a proibição da exigência de apresentação do
cartão de vacinação contra a covid no Estado de São Paulo).
Ou seja, estão
substituindo uma parlamentar que atribui o feminicídio às feministas (Sonaire
Alves) por outra parlamentar que homenageia as mulheres patriotas afirmando que
estas “não tem partido nem ideologia”.
Enquanto isso nós,
feministas, junto a importantes associações, estamos lutando para mostrar que é
inconstitucional/ilegal a Resolução 2.378 contra o aborto, estabelecendo uma
data para que seja realizado. Indiscutível a posição da Febrasco, das Católicas
pelo Direito de Decidir e de mais sete ou oito organizações, mas não podemos
postergar nesse momento as decisões partidárias que serão definitivas para o
futuro das políticas de gênero.
Nesse momento sombrio
identifico nas palavras de Ruy Castro, no artigo a “A ameaça – ainda – sem
nome”, o sentimento que me assombra: trata-se do avanço da “extrema direita, do
populismo, do nacionalismo, do discurso moral e religioso”, do desprezo pelos
partidos políticos, do negacionismo, da rejeição as teses identitárias, mas
também da “xenofobia, do repúdio aos imigrantes e do racismo”. E que ele me
permita acrescentar: do antissemitismo.
Ainda é tempo! Temos
de resgatar os valores democráticos e propor uma plataforma igualitária e
feminista.
Fonte: Por Eva
Alterman Blay, no Jornal da USP
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